quarta-feira, 14 de maio de 2014

O seu a seu dono



«O cão que ao pescoço leva o jantar do dono»
É mais uma fábula do La Fontaine
Reveladora de que o mais escrupuloso,
No cumprimento de um qualquer dever,
Se deixa muitas vezes pela maioria vencer,
Caindo no jeito guloso,
Ambicioso,
Do compadrio sem brio
E com muita lata,
Que se apodera do bem alheio
O que é bastante feio.
Mas é um ver se te avias de participação
No festim destinado ao dono
E que para si e os outros reverteu,
Ficando o dono a ver navios,
Desapossado do seu pitéu.
Mas o meu e o teu são discussão
Bem antiga, por sinal,
E nunca lhe poremos ponto final,
Cada um achando que o que os outros têm
É fruto sabe-se lá de quê,
E o que ele próprio tem provém
Do seu mérito, do seu trabalho, do seu talento,
E que não quer dar a ninguém
Do que tem.
Porém
 Nem sempre isso é verdadeiro,
Como se verá no exemplo certeiro
Que La Fontaine cita com tanta tinta
Do seu tinteiro:

«Nós não temos os olhos à prova das belas,
Nem as mãos à prova do ouro:
Poucos guardam um tesouro
Com fiel precaução.
Um cão
Levava ao dono o almoço,
A asa do cabaz presa ao pescoço
Como um colar de estimação.
Ele praticava a temperança mais do que lhe apetecia
Quando via um pitéu da sua simpatia.
Mas enfim, ele era assim,
Enquanto que nós
Nos deixamos tentar pelos bens.
Coisa estranha! Ensinamos a temperança aos cães
E não conseguimos ensiná-la aos homens.
Indo assim este cão equipado,
Passa um mastim que lhe cobiça o jantar.
Não teve logo o êxito esperado:
Para melhor proteger o tesouro,
Durante a luta,
O cão tirou o cesto do pescoço.
Grande combate! Outros cães chegam.
Eram daqueles que vivem a provocar o público
E pouco receiam os golpes.
O nosso cão, vendo-se muito fraco contra todos eles,
Quis receber a sua parte. E sensatamente, lhes disse:
“- Nada de cóleras em excesso, Senhores,
O meu bocado me é bastante:
Façam bom proveito do restante.”
E cada um de servir-se, a matilha, o mastim,
Cada qual melhor; todos festejaram;
Todos participaram no festim.

Creio ver neste caso a imagem de uma cidade
Onde se põem os dinheiros à mercê das gentes.
Magistrados, chefe dos comerciantes,
Tudo deita a mãozinha: o mais hábil
Dá o exemplo. E é um passatempo
Vê-los limpar um monte de pistolas.
Se algum escrupuloso por razões frívolas
Quer defender o dinheiro e diz a menor palavra,
Respondem-lhe que ele é parvo.
Não lhe custa render-se.
E é, em breve, o primeiro a encher-se.»


Vem a calhar esta história
À nossa glória,
Pois também por cá se vê e se viu,
O que até se traduziu
Por sete cães a um osso,
Mesmo sem este estar ao pescoço.
Mas isso era antigamente.
Evoluímos de tal maneira
No politicamente correcto,
Que, presentemente,
Preferimos pela calada obter o osso,
E não cairmos na asneira
De nos lançarmos  a ele
À vista de toda a gente.
Também,
Todos dizemos amen a quem
Nos ajuda temporariamente,
Embora à espera , como seria de prever,
Que a dívida fosse paga devidamente.
Mas chegou a altura de pagar,
E… adeus minhas encomendas!
Preferimos gritar,
Lembrar as vilas morenas
E continuar a sorver,
Do osso,
Fingindo acreditar
Que o meu e o teu
São para relativizar.
Mais o teu do que o meu, todavia,
Explicamos com sabedoria:
Porque o que é teu também é nosso
E o que é meu o trago ao pescoço,
Como colar de estimação,
Tão difícil de arrancar como de retirar
Um pedregulho de um fundo poço.

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