Como diria Carlos
Pinto Coelho, no seu programa cultural do 2º Canal, extinto há muitos anos já,
como, de resto, o seu apresentador. Acontece. Não só o mal acontece. Acontece o amor, dizem os cantores amantes, e
os que não cantam e o vivem apenas. Mas Carlos Pinto Coelho era de leituras e
intelectualidades que gostava, é a leituras que me refiro, que ajudam a
atravessar a vida aprazivelmente.
O primeiro
texto que me “aconteceu” ler foi o do Público de 29 de Junho, de Vasco
Pulido Valente. Sobre Sócrates que também nos “aconteceu” e a quem o PS
jamais se atreveu a responsabilizar por danos pátrios, um PS vivendo em
genuflexão contínua perante o sábio que amplificou generosamente a nossa
dependência económica do exterior. Agora que se dividiu, PS já responsabiliza
Sócrates, sem pejo e sem cicuta. Esta é fornecida por Pulido Valente, na
caracterização que faz do visado e dos da sua classe partidária:
À revelia
Vasco
Pulido Valente 29/06/2014
Depois da derrota de
Sócrates, nunca mais no PS se falou do que o partido e o seu primeiro-ministro
tinham feito com a sua maioria absoluta. Não se falou da “obra”, nem do
“programa” (admitindo que existia um), nem dos métodos do “animal selvagem”,
que várias vezes roçaram o intolerável. O governo de Sócrates desapareceu do
universo mental dos socialistas. Ninguém o criticou, quando ele era
todo-poderoso, ninguém abriu a boca a seguir para lhe encontrar o menor defeito.
Parece que Sócrates mostrara uma grande vontade “reformadora” e que a crise
financeira fora exclusivamente provocada pela crise internacional. No homem,
ele próprio, não se podia tocar, tanto mais que ele com a sua conhecida
modéstia se recolhera a Paris para escrever uma tese sobre, calculem, filosofia
política.
O pretexto para esta extraordinária abstenção estava
como sempre na necessidade de garantir a unidade do partido e de lhe conservar
um resto de prestígio. Não se conhece um exame tranquilo e sério dos quatro
anos de Sócrates. Tirando um ou outro comentário vaguíssimo na televisão,
António Costa não disse nada, António José Seguro também não e as personagens
menores ficaram caladas como lhes competia. Ou seja, os socialistas não
“arrumaram” o passado, como pretenderam, mas mais trivialmente “esconderam” um
passado, que os comprometia, do eleitorado e do país. Agora, com as querelas
domésticas do PS prometem participar ao público o que na realidade pensam,
confessando de caminho que durante anos não hesitaram em enganar toda a gente
por interesses de facção.
Isto merece um comentário. Se os políticos – do PS, do
CDS ou do PSD – não vêem qualquer objecção moral em governar à revelia dos
portugueses, para que serve o regime democrático por aí tão gabado? O cidadão
comum soube da corrida para a bancarrota, que começou com Guterres (ou até com
Cavaco)? Soube do extravagante crescimento da dívida (interna e externa,
soberana e particular)? Soube da carga que inevitavelmente cairia sobre ele,
quando chegasse a altura de “ajustar” as coisas? E percebe a irresponsabilidade
com que o conduziam para um poço sem fundo? De maneira nenhuma: sem informação,
distraído pelas zaragatas da “classe dirigente”, viveu tranquilamente a sua
vida, como se a “festa” fosse durar sempre. E é esta mesma gente, que no PS e
fora dele nos pede agora confiança?
O segundo “Acontece” dos meus prazeres ledores,
discretos e limitados por imposições de outros trabalhos ou prazeres
televisivos, sobretudo, encontrei-o no blog “A Bem da Nação”, como
excelente complemento do de Pulido Valente, na informação sobre uma esquerda
desestabilizadora e amante, não da pátria verdadeira, mas daquele público do
choradinho que nos habituámos a perscrutar há longos anos na livralhada
neo-realista, sem mais dimensão que a do choradinho altruístico e furibundo,
ressalvadas as excepções mais artísticas. É o artigo “É tudo narrativa”,
de Rui Ramos:
É
TUDO NARRATIVA
A "esquerda
verdadeira" representa forças políticas que disputam o poder, mas não
sabem como governar nas condições vigentes. Por isso, concebem o mundo segundo
um idealismo grosseiro.
Sempre houve, mas agora
parece haver mais: falo dos que, nos partidos e nos jornais, se dizem
"verdadeiramente de esquerda". São aqueles para quem Tony Blair, por
exemplo, nunca foi de esquerda, nem Matteo Renzi, nem sequer António Guterres
(porque é católico), nem até António José Seguro (porque não se chama José
Sócrates). Durante anos, o principal executor deste género de exclusivismo foi
o reverendo Francisco Louçã. Agora, porém, o tribunal tem novos juízes: os
fiéis e enteados do socratismo. São eles que agora decidem quem é e não é de
esquerda. E com eles, veio esta tese: a de que na política tudo é
"narrativa", e a "narrativa" é tudo.
A dívida pública, a
sustentação do Estado social, a adaptação da economia ao euro, o modo como o
governo de Sócrates acabou num resgate internacional – não são questões que
possam justificar pontos de vista diferentes, mas que seja preciso encarar e
discutir como problemas genuínos. Nada disso: são problemas falsos, cuja mera
enunciação revela que alguém é de direita ou se deixou endrominar pela direita.
Ser "verdadeiramente de esquerda" é negar tudo isso. A dívida
pública? Não é um problema nosso, mas dos credores. O Estado social? Basta
defendê-lo contra os neoliberais. O euro? Tem de ser adaptado à economia
portuguesa, e não o contrário. O governo de Sócrates? Um milagre sabotado por
Passos Coelho. Quem disser o contrário, é de direita.
De facto, esta
"esquerda verdadeira" também acredita na realidade. Não na realidade
que é limitada pelas opções dos outros, não na realidade que exige estudo, não na
realidade que impõe compromissos, mas numa realidade que é só desejos
gratificados e facilidades à mão. O país está cheio de dinheiro — é só
distribuir. A Europa deseja ardentemente ajudar Portugal — é só pedir. Mas por
"ideologia" — e só por "ideologia"–, o governo não
distribui e também não pede.
A "esquerda
verdadeira" habita num mundo de conto de fadas. É um mundo onde a natureza
é pródiga, as pessoas são boazinhas e solidárias, o dinheiro abunda, e a
riqueza espera apenas por um sinal para crescer – mas é também um mundo onde,
por um incompreensível golpe do destino, um pequeno bando de mafarricos tomou
conta do poder, e agora impede a natureza de nos dar tudo, divide as pessoas,
esconde o dinheiro, bloqueia a ajuda europeia e impede o crescimento económico.
Esses seres maléficos chamam-se "neoliberais". E como se combate os
neoliberais? Com "narrativas", contando histórias.
A quem é que a
"esquerda verdadeira" quer contar histórias? Antigamente, falava para
a "classe operária". Agora, dirige-se com insistência à "classe
média". Sabe que o ajustamento cansou os contribuintes, os pensionistas,
os funcionários públicos. Convenceu-se de que todos eles estão disponíveis para
se deixarem embalar pela lenga-lenga de que o ajustamento é um sacrifício desnecessário.
A "esquerda verdadeira" não tem ideias, diz apenas o que julga ser
mais adequado para representar os interesses ofendidos e as expectativas
frustradas. E quando as "vitórias são pequenas" (como no caso do PS)
ou as derrotas são grandes (como no caso do BE), volta à "narrativa",
à necessidade de impor a "narrativa".
No fundo, a
"esquerda verdadeira" representa forças políticas que disputam o
poder, mas não sabem de facto como governar nas condições vigentes. Por isso,
concebem o mundo segundo um idealismo grosseiro, como capricho e manipulação. A
"esquerda verdadeira", no fundo, quer manter influência, mas não
deseja responsabilidades. Portugal precisa obviamente de outra esquerda.
1/7/2014 Rui
Ramos
Nenhum comentário:
Postar um comentário