sábado, 5 de julho de 2014

Acontece -2



Como diria Carlos Pinto Coelho, no seu programa cultural do 2º Canal, extinto há muitos anos já, como, de resto, o seu apresentador. Acontece. Não só o mal acontece.  Acontece o amor, dizem os cantores amantes, e os que não cantam e o vivem apenas. Mas Carlos Pinto Coelho era de leituras e intelectualidades que gostava, é a leituras que me refiro, que ajudam a atravessar a vida aprazivelmente.
O primeiro texto que me “aconteceu” ler foi o do Público de 29 de Junho, de Vasco Pulido Valente. Sobre Sócrates que também nos “aconteceu” e a quem o PS jamais se atreveu a responsabilizar por danos pátrios, um PS vivendo em genuflexão contínua perante o sábio que amplificou generosamente a nossa dependência económica do exterior. Agora que se dividiu, PS já responsabiliza Sócrates, sem pejo e sem cicuta. Esta é fornecida por Pulido Valente, na caracterização que faz do visado e dos da sua classe partidária:

À revelia
Vasco Pulido Valente  29/06/2014  
Depois da derrota de Sócrates, nunca mais no PS se falou do que o partido e o seu primeiro-ministro tinham feito com a sua maioria absoluta. Não se falou da “obra”, nem do “programa” (admitindo que existia um), nem dos métodos do “animal selvagem”, que várias vezes roçaram o intolerável. O governo de Sócrates desapareceu do universo mental dos socialistas. Ninguém o criticou, quando ele era todo-poderoso, ninguém abriu a boca a seguir para lhe encontrar o menor defeito. Parece que Sócrates mostrara uma grande vontade “reformadora” e que a crise financeira fora exclusivamente provocada pela crise internacional. No homem, ele próprio, não se podia tocar, tanto mais que ele com a sua conhecida modéstia se recolhera a Paris para escrever uma tese sobre, calculem, filosofia política.
O pretexto para esta extraordinária abstenção estava como sempre na necessidade de garantir a unidade do partido e de lhe conservar um resto de prestígio. Não se conhece um exame tranquilo e sério dos quatro anos de Sócrates. Tirando um ou outro comentário vaguíssimo na televisão, António Costa não disse nada, António José Seguro também não e as personagens menores ficaram caladas como lhes competia. Ou seja, os socialistas não “arrumaram” o passado, como pretenderam, mas mais trivialmente “esconderam” um passado, que os comprometia, do eleitorado e do país. Agora, com as querelas domésticas do PS prometem participar ao público o que na realidade pensam, confessando de caminho que durante anos não hesitaram em enganar toda a gente por interesses de facção.
Isto merece um comentário. Se os políticos – do PS, do CDS ou do PSD – não vêem qualquer objecção moral em governar à revelia dos portugueses, para que serve o regime democrático por aí tão gabado? O cidadão comum soube da corrida para a bancarrota, que começou com Guterres (ou até com Cavaco)? Soube do extravagante crescimento da dívida (interna e externa, soberana e particular)? Soube da carga que inevitavelmente cairia sobre ele, quando chegasse a altura de “ajustar” as coisas? E percebe a irresponsabilidade com que o conduziam para um poço sem fundo? De maneira nenhuma: sem informação, distraído pelas zaragatas da “classe dirigente”, viveu tranquilamente a sua vida, como se a “festa” fosse durar sempre. E é esta mesma gente, que no PS e fora dele nos pede agora confiança?

O segundo “Acontece” dos meus prazeres ledores, discretos e limitados por imposições de outros trabalhos ou prazeres televisivos, sobretudo, encontrei-o no blog “A Bem da Nação”, como excelente complemento do de Pulido Valente, na informação sobre uma esquerda desestabilizadora e amante, não da pátria verdadeira, mas daquele público do choradinho que nos habituámos a perscrutar há longos anos na livralhada neo-realista, sem mais dimensão que a do choradinho altruístico e furibundo, ressalvadas as excepções mais artísticas. É o artigo “É tudo narrativa”, de Rui Ramos:

É TUDO NARRATIVA
 A "esquerda verdadeira" representa forças políticas que disputam o poder, mas não sabem como governar nas condições vigentes. Por isso, concebem o mundo segundo um idealismo grosseiro.

Sempre houve, mas agora parece haver mais: falo dos que, nos partidos e nos jornais, se dizem "verdadeiramente de esquerda". São aqueles para quem Tony Blair, por exemplo, nunca foi de esquerda, nem Matteo Renzi, nem sequer António Guterres (porque é católico), nem até António José Seguro (porque não se chama José Sócrates). Durante anos, o principal executor deste género de exclusivismo foi o reverendo Francisco Louçã. Agora, porém, o tribunal tem novos juízes: os fiéis e enteados do socratismo. São eles que agora decidem quem é e não é de esquerda. E com eles, veio esta tese: a de que na política tudo é "narrativa", e a "narrativa" é tudo.

A dívida pública, a sustentação do Estado social, a adaptação da economia ao euro, o modo como o governo de Sócrates acabou num resgate internacional – não são questões que possam justificar pontos de vista diferentes, mas que seja preciso encarar e discutir como problemas genuínos. Nada disso: são problemas falsos, cuja mera enunciação revela que alguém é de direita ou se deixou endrominar pela direita. Ser "verdadeiramente de esquerda" é negar tudo isso. A dívida pública? Não é um problema nosso, mas dos credores. O Estado social? Basta defendê-lo contra os neoliberais. O euro? Tem de ser adaptado à economia portuguesa, e não o contrário. O governo de Sócrates? Um milagre sabotado por Passos Coelho. Quem disser o contrário, é de direita.

De facto, esta "esquerda verdadeira" também acredita na realidade. Não na realidade que é limitada pelas opções dos outros, não na realidade que exige estudo, não na realidade que impõe compromissos, mas numa realidade que é só desejos gratificados e facilidades à mão. O país está cheio de dinheiro — é só distribuir. A Europa deseja ardentemente ajudar Portugal — é só pedir. Mas por "ideologia" — e só por "ideologia"–, o governo não distribui e também não pede.

A "esquerda verdadeira" habita num mundo de conto de fadas. É um mundo onde a natureza é pródiga, as pessoas são boazinhas e solidárias, o dinheiro abunda, e a riqueza espera apenas por um sinal para crescer – mas é também um mundo onde, por um incompreensível golpe do destino, um pequeno bando de mafarricos tomou conta do poder, e agora impede a natureza de nos dar tudo, divide as pessoas, esconde o dinheiro, bloqueia a ajuda europeia e impede o crescimento económico. Esses seres maléficos chamam-se "neoliberais". E como se combate os neoliberais? Com "narrativas", contando histórias.

A quem é que a "esquerda verdadeira" quer contar histórias? Antigamente, falava para a "classe operária". Agora, dirige-se com insistência à "classe média". Sabe que o ajustamento cansou os contribuintes, os pensionistas, os funcionários públicos. Convenceu-se de que todos eles estão disponíveis para se deixarem embalar pela lenga-lenga de que o ajustamento é um sacrifício desnecessário. A "esquerda verdadeira" não tem ideias, diz apenas o que julga ser mais adequado para representar os interesses ofendidos e as expectativas frustradas. E quando as "vitórias são pequenas" (como no caso do PS) ou as derrotas são grandes (como no caso do BE), volta à "narrativa", à necessidade de impor a "narrativa".

No fundo, a "esquerda verdadeira" representa forças políticas que disputam o poder, mas não sabem de facto como governar nas condições vigentes. Por isso, concebem o mundo segundo um idealismo grosseiro, como capricho e manipulação. A "esquerda verdadeira", no fundo, quer manter influência, mas não deseja responsabilidades. Portugal precisa obviamente de outra esquerda.

1/7/2014 Rui Ramos

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