«Um velho erro»
«As dezenas de milhares de emigrantes
“qualificados” de hoje são o equivalente aos meninos de 1870.
Desde quase há dois séculos que vários
Governos decretaram a educação gratuita e universal e, às vezes mesmo, também
obrigatória. Este preceito piedoso nunca se chegou a cumprir. Por uma razão
muito simples: saber ler, escrever e contar não ajudava a população rural; e a
escola diminuía ou anulava o valor económico dos filhos, que sempre serviam
para guardar o gado ou malhar o trigo.
De resto, como é notório, na Europa nenhum
país se esforçou por alfabetizar os seus súbditos (tirando a França, só
existiam monarquias), pensando no que hoje se chama “crescimento”. Os
protestantes queriam que as criancinhas conhecessem a Bíblia; os jacobinos
queriam combater a “superstição” católica; e todos queriam reforçar a unidade
da nação e o nacionalismo, no clima de conflito em que se vivia.
Por aqui, as coisas foram bem diferentes. Uma
parte, embora pequena, da “inteligência” e do Estado, que o iluminismo e, a seguir,
o liberalismo influenciou, achava que a educação iria salvar Portugal de um
“atraso” insuportável e ridículo. Além disso, a escola e os professores não
custavam caro e, gastando dinheiro em tanta obra inútil ou nociva, os Governos,
por uma questão de prestígio, não se importavam de fazer aqui o que se fazia lá
fora. Não admira que no fim do século XIX o positivismo (na versão corrigida de
Littré) se tornasse a ideologia preferida do “progressismo” dinástico e,
depois, da República: bastava, segundo essa receita, que os portugueses
passassem da fase “metafísica” para a fase “positiva”, para que chovessem sobre
eles prosperidades sem número, para espanto e reverência do mundo inteiro.
Ainda anteontem, na televisão, o professor
Marçal Grilo, antigo ministro, mostrou como o erro pode perdurar, com a
frescura de uma ideia nova. Marçal Grilo, como de resto o esclarecido António
Costa, veio pela enésima vez comunicar aos papalvos que o maior recurso de
Portugal são as pessoas. Evidentemente com a condição de que o Estado as
“forme” ou “eduque”. Esta escola de pensamento não conseguiu até agora perceber
(e nunca perceberá) que as dezenas de milhares de emigrantes “qualificados” de
hoje são o equivalente aos meninos de 1870, que os pais sensatamente guardavam
em casa. Uma espécie de beato como Marçal Grilo não se rala com certeza com o
capital, a justiça, a fiscalidade e a reorganização do Estado de que a educação
precisa para ser de alguma utilidade aos portugueses. Mas que António Costa
partilhe com amor esse velho erro não o recomenda a ninguém.»
Dele retiramos a seguinte frase: «Para ser de alguma
utilidade aos portugueses, a educação precisa de capital, de justiça, de fiscalidade e da reorganização do Estado.»
Vasco Pulido Valente o afirmou, pois, em
percurso histórico pelas normas educativas que orientaram outros povos de longa
data, os quais não se limitaram a “alfabetizar”, mas criaram regras de
responsabilidades e orientação para a cidadania, em termos de “crescimento
cultural”, uns, em função inicial do conhecimento bíblico, outros para combater
o carácter supersticioso de uma educação de tipo religioso e dogmático.
Certamente que lhes não faltaria o complemento de uma gradual abertura em
estudos que distinguiriam competências e interesses e preparavam melhor para
uma vida de progresso gradual, de acordo com o desenvolvimento científico,
humanístico e económico, levando os povos a estabelecerem critérios de
obediência a valores imprescindíveis na formação humana, e em função da coesão nacional.
Não assim em Portugal, em que e ensino, feito
inicialmente nos mosteiros, excluía do povo a participação na formação
educativa, destinada ao clero e à nobreza, a percentagem de analfabetismo sendo
elevadíssima ainda no século passado, apesar de graduais reformas feitas já desde
Pombal e sobretudo a partir da época liberal, o Estado passando a responsabilizar-se
sobre o ensino e, nos novos tempos, tornando-o obrigatório, (obrigatoriedade
fixada actualmente em doze anos de escolaridade), e retirando-lhe a
obrigatoriedade da orientação religiosa (Não esquecer a pecha de um ensino de
moldagem jesuítica e inquisitorial, fechado à descoberta científica, mau grado
os estudos e as realizações científicas que os Descobrimentos possibilitaram e
que alguns nomes bastante dignificaram).
Vasco
Pulido Valente revela, todavia, o quanto é irrisória a qualificação e
desprotegidos os qualificados, desde que ao espaço agrícola, feito outrora
com a ajuda da mão de obra filial,
os estudos excluíram a participação laboral daquela. (Também não protegem hoje,
suficientemente, as múltiplas formações académicas em termos de eficácia e
racionalidade formativas, observado o aparato explosivo de tantas formações
inúteis e perversas nas escolas, após o 25 de Abril, as quais multiplicaram o
preenchimento de banalidades nos horários escolares, com cursos de técnicas
precárias, muito distantes dos objectivos de formação cultural, que deveria ser
ponto assente em termos de “iluminismo” formativo. Uma escola de “eduquês”
surgiu assim, floreada e retórica no palavreado justificativo da avaliação
discente e da auto-avaliação docente, inútil e pouco séria num convencionalismo
de pseudo-rigor objectivo, na realidade impeditiva de uma formação cultural de
respeito e de seriedade. Porque, repetimos, como afirma Vasco Pulido Valente,.«Para
ser de alguma utilidade aos portugueses, a educação precisa de capital, de
justiça, de fiscalidade e da
reorganização do Estado.»
Não é
esse o nosso panorama educacional, pesem embora as afirmações de alguns
políticos, feitas, provavelmente, como chamariz de votos, de que “o maior recurso em Portugal são
as pessoas”.
Vem a
propósito citar o artigo de João César das Neves, publicado no DN de hoje (28/7)
com as suas achegas analíticas, de cunho menos pessimista, mas áspero na
crítica:
«A
charuteira»
«Será
Portugal um país desenvolvido, rico, civilizado? Os recentes episódios que
revelam a teia de poder à volta do Grupo Espírito Santo (GES) justificam que se
pergunte se estaremos no Terceiro Mundo.
A
resposta da elite é clássica, e descrita genialmente por João da Ega:
"Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?" (Eça de
Queirós, 1888, Os Maias, c. IV). Os nossos intelectuais sempre desprezaram
pedantemente o País e sentem prazer em humilhá-lo. Daí poderíamos até concluir
que, com uma elite destas, é impossível Portugal ser civilizado. Mas dizer isso
seria tomar a mesma atitude dela, contra ela.
Temos
bons argumentos para nos considerar desenvolvidos. Podemos invocar a nossa
história, cultura e projecção mundial, que nos mostra como entidade
indiscutivelmente sólida, relevante e digna. Mas isso não basta como prova. Países
com património e herança semelhantes mostram falhas fatais de funcionamento,
como a Grécia ou a Argentina. Carácter, presença e longevidade são condições
necessárias, não suficientes para a civilização.
O
teste decisivo do nível de um povo está nas crises. É nos momentos difíceis que
se sente a fibra colectiva. A blitz de Londres mostrou o Reino Unido sumamente
civilizado, e foi sob ocupação que países como a França, a Polónia e depois a
Alemanha revelaram a sua eminência.
As
crises socioeconómicas têm pontuado as fases do nosso progresso comunitário.
Após o 25 de Abril, os programas de ajustamento de 1978-79 e 1983-85 marcaram a
nossa estabilização como sociedade livre, admitida ao clube dos parceiros
europeus. O crescimento subsequente fez-nos um país rico, como provou a
recessão de 1993, a primeira na CEE, com comportamento claramente diferente de
instituições, empresas e consumidores. Assim, pelo menos desde meados dos anos
1990 o País participa naturalmente e de pleno direito do concerto das nações civilizadas.
Será
então possível saber se passámos no teste? Existem sinais negativos mas
inofensivos. Política e orçamento correram mal, como em todo o lado. Também não
se devem confundir crimes e erros com falta de civilização. O caso BPN é
paralelo a Madoff, enquanto BPP, Banif e BCP são menores do que o Lehman
Brothers. Problemas assim, mesmo degradantes, são comuns em comunidades
sofisticadas. Olhando para os dados objectivos, dos níveis de rendimento aos da
saúde, passando por comportamentos sociais e culturais, Portugal é sem dúvida
um país civilizado. O único problema está nas elites, que frequentemente nos
arrastam para o Terceiro Mundo.
A
primeira prova é mediática. Perante esta austeridade, intelectuais, jornais,
dirigentes e até juízes, mesmo sem charuteira, não tiveram pejo em dizer os
maiores disparates. Com a arrogância habitual, a elite omitiu, distorceu,
barafustou infantilmente e propôs soluções tolas. Mas isso não é o pior.
Na
última década respira-se em Portugal um clima de compadrio, maquinação e cabala
ao mais alto nível, que cresceu silenciosa mas inexoravelmente. Os anos
Sócrates manifestaram-no a vários níveis; nos referidos escândalos bancários,
por exemplo, além de irregularidades financeiras, sentiram-se intrigas
palacianas vastas, profundas e complexas, sobretudo no BCP, que são alheias a
uma sociedade equilibrada.
A
recente explosão do GES, com todas as suas ramificações, constitui a flagrante
confirmação pública da podridão latente nos níveis altos do nosso poder
político-económico. O pior não está na dimensão da dívida ou nos efeitos
económicos, mas no grau de conspiração e decadência que revela. Fenómenos
destes são característicos de sociedades atrasadas, regimes corruptos, sistemas
perversos. A sua ausência é condição indispensável da civilização.
Corrupção
há em todo o lado. Os países cultos são, não imunes à doença, mas aqueles onde
tradições, regras e instituições dominam essas tendências. Portugal é um
país civilizado. Mas alguma elite mostra traços do Terceiro Mundo, da choldra
torpe de Eça. A forma como limparmos o caso GES mostrará se passámos o
teste para país desenvolvido.»
Mas, retomando o tema “escola”, como mentora indispensável
das populações, a nossa escola, estapafúrdia de indisciplina e reivindicação, é
espelho de um povo indisciplinado e reivindicativo, que as mais das vezes não racionaliza
os protestos, limitando-os à afirmação balofa de liberdades e direitos, sem o
apoio esclarecedor de leituras, no sintetismo triunfal e lírico dos slogans ou
das canções emblemáticas. Mas somos bonzinhos, coitadinhos, permitimos que a outra
choldra as pregue, pela calada.
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