quarta-feira, 9 de julho de 2014

Livre-nos Deus




De Helena Matos, o artigo “EUROPA, TERRA DE TRIBOS”, publicado no “A Bem da Nação”:

«Fazer da construção europeia a caminhada para um admirável mundo novo, onde os símbolos e as funções dos pretéritos estados perdem relevância, enfraquecendo-os, fará da Europa um território de tribos.
Em Espanha, o novo rei terminou o seu discurso de investidura saudando em castelhano, basco, catalão e galego. O gesto não foi suficiente para que os líderes dos governos basco e catalão, Iñigo Urkullu e Artur Mas, presentes na cerimónia, aplaudissem o novo monarca: os seus braços imóveis impressionavam tanto ou ainda mais que a longa ovação prestada a Felipe VI pelos outros governantes, deputados e dirigentes que assistiam à cerimónia.
Artur Mas prepara um referendo independentista na Catalunha e Urkullu faz contas aos resultados que uma tal iniciativa poderia ter no País Basco e também às reservas de gás de xisto aí existentes e que, a serem exploradas, farão do rico País Basco ainda mais rico, o que quer dizer mais nacionalista pois em Espanha os nacionalismos têm uma forte componente de proteccionismo económico.
Como de costume nos actos solenes, o hino de Espanha foi tocado mas não cantado porque os espanhóis não se põem de acordo no que à respectiva letra respeita – porque não é laica, porque tem referências bélicas, porque pode ser interpretada como franquista ou qualquer outra coisa acabada em "ista"… E portanto alguns mexem os lábios e os outros nem isso.
Depois, naturalmente, os mesmos espanhóis escrevem parágrafos emocionados sobre o fervor patriótico dos brasileiros que apesar de a FIFA ter imposto versões abreviadas dos hinos no Mundial fizeram questão de, mesmo sem música, cantar até ao último todos os versos do seu muito bélico, nacionalista e religioso hino que, em cima de tudo isso, é gigantesco e tem expressões maravilhosas como "raios fúlgidos".
Em França, o sonho da multiculturalidade transformou-se num pesadelo para patrões, trabalhadores, empresas, vizinhos… Casos como os dos candidatos à habitação social que apresentam queixa por serem identificados etnicamente mas que depois também se queixam por os mesmos serviços não promoverem a diversidade étnica ou as mulheres que nunca usaram lenço na vida mas que na hora de se despedirem resolvem passar a usá-lo para depois alegarem despedimento por discriminação, como sucedeu na creche Baby Loup, confrontam quotidianamente a França com a imagem de um país a braços com uma crise muito mais profunda que a económica.
Aliás, não fosse a proverbial desatenção à realidade francesa e já teria sido notícia que naquele país a progressão das equipas neste mundial não é seguida como nos outros locais do mundo pois a possibilidade de a França e a Argélia terem de se confrontar no Brasil leva a que em França se tema que esse jogo, a ter lugar e independentemente do seu resultado, seja o pretexto para uma batalha campal em Paris, Lyon, Grenoble…
Para que se perceba o ponto a que se chegou, após o final o jogo Argélia-Rússia foram queimados só em Lyon 28 automóveis e para o Argélia-Alemanha estão a ser tomadas medidas especiais de segurança tanto mais que alguns agrupamentos nacionalistas que se destacaram nas manifestações de contestação à reforma das pensões surgem agora com apelos a concentrações que apresentam como desfiles anti-distúrbios.
Poderia prosseguir na enumeração desta vaga de tribalização na Europa mas prefiro mudar de cenário. Passemos para os corredores com sinaléctica politicamente correcta das instituições europeias. Ali não há vestígios de tabaco, nem de bactérias no ar condicionado. Não há sexos mas sim género. Ali só há directivas, regulamentos e tratados. O azul predomina. Mas o reverso desse mundo azul-perfeito é essa rua cheia de gente gritando slogans xenófobos e violentos. Porque esse mundo azul-perfeito cujo centro virtuoso está num Parlamento Europeu, qual superestrutura asséptica acima das nacionalidades, tem crescido à custa do apagamento dos estados.
Em muitos dos estados europeus o serviço militar obrigatório desapareceu, alguns não têm hino, outros, como era o nosso caso até Scolari aqui ter aterrado, tinham medo de pegar na sua bandeira. Para quase todos eles a História é uma sucessão de factos inconvenientes que há que modelar. Aos seus povos os governantes europeus só se sentem à vontade para falar de dinheiro, ou melhor dizendo da falta dele. Todo o restante espaço ficou por conta das tribos, sejam elas nacionalistas, fascistas, radicais de esquerda ou simplesmente bárbaras, no sentido romano do termo, como acontece com esses grupos provenientes que puseram Londres a ferro e fogo há algum tempo e que em França fazem lei nos bairros piedosamente designados como sensíveis.
Essa Europa, cujas élites nos últimos anos deixaram de ver na construção europeia uma associação cautelosamente negociada entre estados e nações fortes para transformarem essa construção europeia numa caminhada para um admirável mundo novo europeu, onde os símbolos e as funções dos pretéritos estados perdem relevância, essa Europa, repito, tornou-se como sempre acontece quando os estados enfraquecem, num território de tribos.
E é essa Europa que ganhou no último Conselho Europeu, quando os dirigentes ali presentes indicaram Jean-Claude Juncker para presidente da Comissão. Ou seja, os chefes de Governo ao aceitarem que o próximo líder da Comissão fosse o indicado pelo Parlamento Europeu pactuaram com a revisão não oficial do Tratado de Lisboa, tratado esse que estabelecia que o presidente da Comissão seria escolhido pelos chefes de Governo presentes no Conselho Europeu e posteriormente votado no PE. No território das tribos isto chama-se golpada. No mundo azul-perfeito da eurocracia chama-se evolução.
Pode parecer irrelevante que no meio das complicadas arquitecturas europeias o presidente da Comissão seja escolhido pelos chefes de Governo presentes no Conselho Europeu ou indicado pelo Parlamento Europeu. Nada mais falso. Em primeiro lugar porque o respeito pelo funcionamento das instituições – que tão irritante pode parecer neste momento – é precisamente aquilo que nos distingue das tribos e que amanhã nos salvará doutras golpadas. Aliás os líderes que aceitaram este desrespeito pelo Tratado de Lisboa, a começar pelos populares que agora embandeiraram em arco com esta nomeação de um dos seus para presidente da Comissão, serão os primeiros a sofrer as consequências deste atropelo ao estabelecido.
Em segundo lugar porque é de actos como este, em que, sem que isso seja explicado aos povos, os Estados vão perdendo protagonismo, que se vai construindo a implosão europeia. Ignorando os avisos que chegaram com o desastre dos referendos à Constituição Europeia, a eurocracia aposta agora nos golpes palacianos. Ou, futebolisticamente falando, nas vitórias de secretaria. As tribos agradecem. Os outros, aqueles que viram na construção europeia um espaço de liberdade e de afirmação para países com uma matriz cultural, religiosa e histórica comuns, esses resta-lhes esperar que os prosélitos não destruam por dentro aquela que é a obra mais importante da Europa do pós-guerra.
Uma comunidade sobre a qual e parafraseando o hino brasileiro "o sol da Liberdade, em raios fúlgidos/ Brilhou no céu" ». 29/6/2014  Helena Matos

Terra de tribos, a velha Europa, de vândalos, suevos, alanos, godos, saxões… E os bretões e os francos… Há muitos séculos já, e antes do império romano outras tribos haveria, outros povos, também, já fixados e que se foram fundindo com os invasores. Cá por casa, de iberos e celtas, também tivemos os árabes, depois dos visigodos já cristianizados e fundidos com os romanos. Um continente bastante retalhado, a Europa, que os tentáculos poderosos de algumas nações mais esforçadas, ou com os heróis improvisados, anquilosados nas ambições próprias foram tentando “unificar”, nos últimos tempos, por várias vezes, para proveito próprio. Mas Saturno, que os filhos devora, não permite que o definitivo se instale nunca, e tais ambições foram devidamente reparadas, desfeito o sonho ambicioso, castigados os seus mentores. Às ambições unilaterais, sucedeu, nos novos tempos, o projecto da generosidade unificadora, que, naturalmente, foi aproveitado pelos diferentes povos de diferentes maneiras. Houve esbanjamentos, cada povo, na especificidade das suas aptidões, utilizou os meios emprestados com maior ou menor saber. E descobriu-se que uma união não é possível a duas ou mais velocidades Daí os agoiros do artigo de Helena Matos, sobre um possível retorno ao tribalismo, proveniente de uma unificação económica gorada.

Mas parece-me exagero tal agoiro, pese embora a timidez na entoação dos hinos nacionais na “Copa” brasileira, além das várias singularidades de reacções espúrias a leis provenientes do Tribunal Europeu condenatórias do uso das burkas. Outras ocasiões haverá  para se entoarem os hinos, que cada desportista medalhado entoa com emoção e fervor nos seus jogos medalhados, além de que tais leis condenatórias de atitudes puramente provocatórias, parecem-me justas. Enquanto funcionar o bom senso – e a Europa, sendo um continente pequeno, foi cabeça civilizacional donde partiu a união dos mundos e a difusão de valores justos – a Europa, por muitas discrepâncias civilizacionais e operacionais, não vai permitir que aconteça esse novo tribalismo anunciado no artigo de Helena Matos.  Cada povo tem os seus defeitos e virtudes, tem a sua história e apego à sua terra, o tribalismo é coisa de nomadismo. Não iria pegar.
Saturno não pára de engolir os filhos que depois expele, no renovar dos meses e das estações, a mudança é tema clássico, cada povo se entretém com os seus próprios problemas, progredindo ou estagnando, mas amando.
E assim vamos vivendo. Atamancando. Sobrevivendo. Aguentando. Ninguém melhor o afirma do que Vasco Pulido Valente, no seu artigo do Público, de 4/7:

«No deserto»
«Parece que Paul Krugman, o economista querido da esquerda, percebeu agora que o seu plano para resolver a crise não era politicamente possível. Entre a direita do Partido Republicano e uma boa parte do seu próprio partido, Obama está paralisado. Em Inglaterra, Cameron, com o UKIP de um lado e a coligação do outro, também não se pode mexer. Em França, Hollande é uma personagem gratuitamente acrescentada à paisagem, a direita democrática dividida e desprestigiada não se consegue recompor e já se começa a falar no regresso fatal ao parlamentarismo da IV República. Há ainda o referendo da Escócia e o referendo da Catalunha, que inevitavelmente vão complicar as coisas na “Europa”. O mundo em que vivemos desde 1948 começa a cair aos bocados; e não se vê um remédio razoável no horizonte.
A desculpa tradicional dos portugueses para as suas desgraças costuma ser a de que “também sucede lá fora”. Desta vez, não é mentira. A extrema-esquerda, para efeitos práticos, não existe. O PS, em guerra civil, não inspira confiança a ninguém: Seguro e Costa, com ligeiras variantes de tom, propõem a mesma receita utópica de salvação. O PSD e o CDS falharam e o Tribunal Constitucional não se irá embora amanhã. O Presidente da República, reduzido a pregar o entendimento e o “consenso” a uma multidão política que se odeia, e a um eleitorado na miséria, não serve para nada. Pouco a pouco, o país foi ficando ingovernável, no meio da resignação pública e privada. E não se imagina nenhuma força, ou conjunto de forças, capaz de restabelecer uma ordem e um desígnio.
Isto não teria grande importância em tempos normais. Mas sucede que os problemas de Portugal não se resolveram com o programa de “ajustamento”, que se limitou a um exercício contabilístico e recuou perante as verdadeiras reformas. Nem o desgraçado défice se “consolidou” abaixo do que a Europa manda, nem a dívida diminuiu, nem o “crescimento” e o “pleno emprego” saíram miraculosamente da cabeça de Passos Coelho. Voltámos, depois de muita gritaria e autêntica pobreza, à situação de 2010-2011. Com algumas diferenças. O tal “povo que aguenta tudo” não aguentará uma nova dose de “austeridade”. A direita e o dr. Cavaco, que em 2011 eram de certa maneira um recurso, perderam a confiança e o respeito dos portugueses. No deserto de hoje o mínimo solavanco sério é a porta para um desastre como nunca antes conhecemos.»

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