Nunca fui a Inglaterra e poucos
ingleses conheci. Conheci o John, que vivia na África do Sul, com a Carol, um
casal de uma educação modelar a quem acolhemos na nossa casa numa altura em que
houve cheias em Lourenço Marques. Como tinham vindo a férias em roulotte, os
amigos de estúrdia - o Rui, o Raposo , não sei se o Knopfli também –
revezaram-se para os ajudar durante as férias, alagadas por vários dias. Discretos,
educados, de uma alegria feita de contenção e sensatez, diferente da
estridência que os amigos portugueses punham nas suas graças de boémia
galhofeira, embora generosa e acolhedora. Um casal exteriormente belo,
correspondendo a uma beleza interior, como me pareceram mais tarde os pais da
menina inglesa Maddie, passeando a sua tragédia de mãos dadas e forma aprumada
e tensa, a impor ao mundo a sua dor real, suscitando no mundo uma real piedade.
E todavia, não ignorei que esse mundo lhe proporcionou bons ganhos, anualmente,
quando se despoletava nova arremetida em busca do mistério do desaparecimento
de Maddie, e voltava a encontrar esses pais sempre belos, sempre unidos, sempre
trágicos e contidos, com a televisão acompanhando-os, e creio que amigos britânicos
poderosos também, castigando o polícia português - que ousara desmistificar o
mito, ao alvitrar diferente solução para o caso - enviando os seus farejadores
ingleses – homens e cães - num desprezo superior pela polícia portuguesa
ineficiente. Lembrei novamente o mediático caso, que me fez suspeitar de que
talvez Magueijo não falseasse a verdade na sua crítica acerba, estranhando,
contudo, que cuspisse assim na mão de quem lhe estendera os braços para a
ciência e para o emprego, e que, apesar disso, o continuava a aceitar
desportivamente.
Também Garrett descreve os ingleses,
ou antes, as misses inglesas das paixões de Carlos anteriores ao enamoramento
com Joaninha. E Eça, nas “Cartas da Inglaterra”, nos traços de cupidez e
domínio imperial britânicos, e em que o “Times” surge como exemplo da
inflexibilidade e convencionalismo vitorianos por vezes comprometidos com uma tal
partida alheia maliciosa, manchando-lhe a reputação. Ou no próprio “Os Maias”,
o exemplo de um Craft de carácter e sensibilidade superiores, no tipicismo da
sua fleuma contrastando com a vibratilidade espirituosa e exaltada de Ega ou
com a pose pedante e vazia dos Gouvarinhos oficiais portugueses. Ou as figuras de
“Uma família Inglesa”, de Júlio Dinis, a impecável e extremosa miss
Jenny, o seu convencional e rígido pai, Mr. Whitestone, contrastando com o
leviano mas sensível irmão e filho Carlos, que o amor regenera romanescamente para
o trabalho e a responsabilidade familiar. Uma sociedade de bons princípios
burgueses, que Júlio Dinis colheu nas leituras de Jane Austen, das irmãs
Brontë, e que retomamos nas velhas misses Marples e outras personagens da
Agatha Christie, quer dos livros quer do cinema, bem como em tantas figuras do
cinema britânico, que nos fizeram estimar ou repelir a rígida sociedade
aristocrática inglesa, que Óscar Wilde – sobretudo - é perito a descrever, quer
nos comportamentos quer através das falas de personagens, exímias na exploração
do paradoxo e da sátira a essa própria aristocracia a que pertence. Num plano
mais realista, percorremos com Charles Dickens não só os sombrios caminhos da
nevoenta Inglaterra - que os filmes sobre Sherlock Holmes igualmente mostram, bem
como os contos fantásticos de Edgar Poë - como certos antros de miséria
material e moral, perversa ou burlesca das classes mais desprotegidas.
Contudo, a “loira Albion” surge no
meu espírito sempre na sua altivez e riqueza interior que a nós próprios,
portugueses, originou uma família de Avis marcada pelo génio, pela mão materna
de D. Filipa de Lencastre, “ínclita geração” de quem dependeu a descoberta do
mundo para lá dos mares, mundo que, de resto, os ingleses, mais do que os
outros povos, avassalariam, com a sua cultura, a sua língua, a sua civilização,
colhendo nele os frutos da sua ambição poderosa e organizada, e deixando nele
as marcas civilizacionais específicas, derrotados embora pelos protestos dos pacíficos
Gandhis que não aceitaram a humilhação.
Eis os motivos da minha discordância
com o livro “Bifes mal passados”, de João
Magueijo. Talvez se eu tivesse que lá viver, também sentiria, na pele rebelde,
certa zanga explícita nesse livro, contra a arrogância da discriminação social,
em que são peritas as classes mais aristocráticas, tema igualmente das ironias
de Eça. Mas conheço pessoas que lá viveram ou vivem e se deram muito bem. A
minha irmã é das que lhes tem aversão, e concordo que ela sabe muito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário