domingo, 22 de março de 2015

Ainda o livro de João Magueijo



Nunca fui a Inglaterra e poucos ingleses conheci. Conheci o John, que vivia na África do Sul, com a Carol, um casal de uma educação modelar a quem acolhemos na nossa casa numa altura em que houve cheias em Lourenço Marques. Como tinham vindo a férias em roulotte, os amigos de estúrdia - o Rui, o Raposo , não sei se o Knopfli também – revezaram-se para os ajudar durante as férias, alagadas por vários dias. Discretos, educados, de uma alegria feita de contenção e sensatez, diferente da estridência que os amigos portugueses punham nas suas graças de boémia galhofeira, embora generosa e acolhedora. Um casal exteriormente belo, correspondendo a uma beleza interior, como me pareceram mais tarde os pais da menina inglesa Maddie, passeando a sua tragédia de mãos dadas e forma aprumada e tensa, a impor ao mundo a sua dor real, suscitando no mundo uma real piedade. E todavia, não ignorei que esse mundo lhe proporcionou bons ganhos, anualmente, quando se despoletava nova arremetida em busca do mistério do desaparecimento de Maddie, e voltava a encontrar esses pais sempre belos, sempre unidos, sempre trágicos e contidos, com a televisão acompanhando-os, e creio que amigos britânicos poderosos também, castigando o polícia português - que ousara desmistificar o mito, ao alvitrar diferente solução para o caso - enviando os seus farejadores ingleses – homens e cães - num desprezo superior pela polícia portuguesa ineficiente. Lembrei novamente o mediático caso, que me fez suspeitar de que talvez Magueijo não falseasse a verdade na sua crítica acerba, estranhando, contudo, que cuspisse assim na mão de quem lhe estendera os braços para a ciência e para o emprego, e que, apesar disso, o continuava a aceitar desportivamente.
Também Garrett descreve os ingleses, ou antes, as misses inglesas das paixões de Carlos anteriores ao enamoramento com Joaninha. E Eça, nas “Cartas da Inglaterra”, nos traços de cupidez e domínio imperial britânicos, e em que o “Times” surge como exemplo da inflexibilidade e convencionalismo vitorianos por vezes comprometidos com uma tal partida alheia maliciosa, manchando-lhe a reputação. Ou no próprio “Os Maias”, o exemplo de um Craft de carácter e sensibilidade superiores, no tipicismo da sua fleuma contrastando com a vibratilidade espirituosa e exaltada de Ega ou com a pose pedante e vazia dos Gouvarinhos oficiais portugueses. Ou as figuras de “Uma família Inglesa”, de Júlio Dinis, a impecável e extremosa miss Jenny, o seu convencional e rígido pai, Mr. Whitestone, contrastando com o leviano mas sensível irmão e filho Carlos, que o amor regenera romanescamente para o trabalho e a responsabilidade familiar. Uma sociedade de bons princípios burgueses, que Júlio Dinis colheu nas leituras de Jane Austen, das irmãs Brontë, e que retomamos nas velhas misses Marples e outras personagens da Agatha Christie, quer dos livros quer do cinema, bem como em tantas figuras do cinema britânico, que nos fizeram estimar ou repelir a rígida sociedade aristocrática inglesa, que Óscar Wilde – sobretudo - é perito a descrever, quer nos comportamentos quer através das falas de personagens, exímias na exploração do paradoxo e da sátira a essa própria aristocracia a que pertence. Num plano mais realista, percorremos com Charles Dickens não só os sombrios caminhos da nevoenta Inglaterra - que os filmes sobre Sherlock Holmes igualmente mostram, bem como os contos fantásticos de Edgar Poë - como certos antros de miséria material e moral, perversa ou burlesca das classes mais desprotegidas.
Contudo, a “loira Albion” surge no meu espírito sempre na sua altivez e riqueza interior que a nós próprios, portugueses, originou uma família de Avis marcada pelo génio, pela mão materna de D. Filipa de Lencastre, “ínclita geração” de quem dependeu a descoberta do mundo para lá dos mares, mundo que, de resto, os ingleses, mais do que os outros povos, avassalariam, com a sua cultura, a sua língua, a sua civilização, colhendo nele os frutos da sua ambição poderosa e organizada, e deixando nele as marcas civilizacionais específicas, derrotados embora pelos protestos dos pacíficos Gandhis que não aceitaram a humilhação.
Eis os motivos da minha discordância com o livro “Bifes mal passados”, de  João Magueijo. Talvez se eu tivesse que lá viver, também sentiria, na pele rebelde, certa zanga explícita nesse livro, contra a arrogância da discriminação social, em que são peritas as classes mais aristocráticas, tema igualmente das ironias de Eça. Mas conheço pessoas que lá viveram ou vivem e se deram muito bem. A minha irmã é das que lhes tem aversão, e concordo que ela sabe muito.

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