terça-feira, 3 de março de 2015

O mérito no esbanjamento



A minha irmã e a minha amiga, como geralmente acontece, já estavam no café quando cheguei e tive que ouvir as chufas da minha amiga sobre a minha actual falta de pontualidade, o que me enxofrou, pois cada um sabe de si. Mas não quis revelar a causa do meu atraso, o carro demorando a pegar, ao relento e às pombas que o sinalizam, o que me apanha sempre desprevenida, pois conto ter nele o companheiro que pega sempre, embora desrespeitado nas abluções, com a chuva rara e pouco rigorosa que temos tido. Além disso ela tem sempre histórias para preencher, eu às vezes até me sinto à margem, quando se põem a lembrar o passado de ambas, chegadas, por colocação nos Serviços de Educação em escolas diferentes, quase ao mesmo tempo, à capital da Zambézia, e “amigas para siempre”, as fotos que às vezes nos traz, assim o assinalando, nos risos da juventude, que retomam nas recordações de episódios vividos e nos considerandos sobre as sequências com que os destinos acompanharam o viver de alguns que persistiram ou não na amizade. Para a minha amiga foram quase todos, com quem ainda se telefona, estabelecendo comparações e deduções entre o dito sentimento da amizade, superior em Quelimane ao dos outros sítios, apesar da relatividade de todos os conceitos, pois não conhecemos os sítios todos do mundo. Mas anunciei que era o primeiro de Dezembro, mês da primavera, que ambas confirmaram, o que trouxe à baila o provérbio que a minha mãe repetia e que a minha irmã lembrou - “Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de Verão”.

Entretanto, chegaram o Ricardo e a Teresa, com a Nina e o Óscar, que não podiam entrar, indo o Ricardo à praia passear os cães, a Teresa ficando a acompanhar-nos, e a conversa alargou, em tendências sobre o sombrio dos tempos.

Chegou depois o furacão da Elsa, esplêndida de voz e de desembaraço. Tinha vindo do Dubai, com passagem por Hong Kong e Macau, a seguir fora esquiar com o marido e os filhos nos Alpes, impunha respeito tanta vastidão de espaços percorridos. E é claro que a Elsa, que viveu na Suíça, não tardou a bater no ceguinho – o extraordinário despudor de alguns vencimentos por cá, quando o ordenado mínimo é de quinhentos euros. A minha amiga deu detalhes sobre os vencimentos e cachets na televisão, que em absoluto me deslumbraram, chegando aos 40.000 euros mensais os vencimentos desses, que até são muito bondosos na piedade e nos auxílios que promovem a favor de doentes e desamparados. Julgava que só os que usavam bem os pés por cá, atrás de uma bola é que ganhavam aos pontapés, mas também a gritaria é bem paga entre nós. O meu marido explicou-me mais tarde que fora no tempo do Cavaco Silva que a doutrina dos ganhos por mérito próprio foram introduzidos, o que nem achei que fosse mal pensado, impondo mais brio e profissionalismo nos nossos trabalhadores, mas não esperava um tal fosso entre as gentes, e sobretudo porque vivíamos de dinheiros que não nos pertenciam. Estamos habituados a ouvir falar de enriquecimentos ilícitos, mas ilicitude é também essa dos vencimentos escandalosos de alguns, que na televisão dão nas vistas com mais ou menos mérito, o espalhafato sendo nele uma constante, tanto na repetição exaustiva do apelo ao telefonema para o prémio esmoler, como em programas que põem em foco actuações absolutamente lorpas, como uma que captei de passagem, entre o Goucha (que parece ser um dos favorecidos no vencimento) e uma jovem piegas e outra personagem masculina, a respeito de culinária, que achei repelente de idiotia e deseducação.

O certo é que “a minha alma está parva”, como ouço a minha amiga repetir, sempre comichosa quando “no le gusta”, mas, no disfarce da minha inveja, até considerei que ainda bem que muitos dos nossos representativos meritórios são reconhecidos pelas autoridades destinadas a reconhecer os méritos. Ainda que à custa do nosso próprio demérito. Financeiro.

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