Uma vida que brilhou junto de nós, nos seus fatos de
bom preço, numa autoprojecção sem qualquer resquício de pundonor, que este
texto de José Manuel Fernandes nos faz recordar, nos esquemas vários de uma
representatividade de conquistador, sem outras armas que não fossem a de uma
despudorada ambição de mando. Faltou no texto a referência às justificações da
ex-mulher, aquando da primeira visita à prisão, sobre livros que ele pedira. As
embrulhadas a respeito de casas adquiridas pelo casal, que os media referiram
posteriormente, desmentem que tenha sido só fome de livros o motivo da visita.
Mas se até já li que Sócrates foi apenas um carapauzito dos pequenos, em
confronto com os tantos tubarões que o visitaram e o defenderam, a preservar os
seus mundos de sugadores da pátria sob a marca da amizade virtuosa, julgo
que uma menor rigidez para com o ex-primeiro ministro só demonstraria a nossa marca
de bons cristãos, que relativiza os desmandos, tantos eles são. À solta.
Do Blog A Bem da Nação”, o artigo de José Manuel
Fernandes:
É ALTURA DE NOS CURARMOS DE VEZ DO SOCRATISMO
Durante
muitos anos muita gente não quis ver, não quis ouvir, não quis ler, recusou
tomar conhecimento. Sócrates estava acima disso. Sócrates não tolerava dúvidas.
Mas é altura de aceitar a realidade.
Uma
parte do país – e um contingente notável de comentadores – parecem continuar em
estado de negação. Durante anos não quiseram ver, não quiseram ouvir, não
quiseram admitir que havia no comportamento de José Sócrates ministro e de José
Sócrates primeiro-ministro demasiados “casos”. Em vez disso só viram cabalas,
só falaram em perseguições, só trataram eles mesmo de ostracizar ou mesmo
perseguir os que se obstinavam em querer respostas, os que insistiam em não
ignorar o óbvio, isto é, que Sócrates não tinha forma de justificar os gastos
associados ao seu estilo de vida.
Agora,
que finalmente a Justiça se moveu, eles continuam firmes na sua devoção – e nas
suas cadeiras nos estúdios de televisão. Não lhes interessa conhecer o que se
vai sabendo sobre os esquemas que Sócrates utilizaria para fazer circular o
dinheiro, apenas lhes interessa que parte do que foi divulgado pelos jornais
devia estar em segredo de Justiça. Antes, anos a fio, quando não havia segredo
de justiça para invocar, desvalorizaram sempre todas as investigações
jornalísticas que tinham por centro José Sócrates.
Isto é
doentio e revela até que ponto o país ainda não se libertou da carapaça que
caiu sobre ele nos anos em que o ex-primeiro-ministro punha e dispunha. Nessa
altura também muitos, quase todos, se recusavam a ver, ouvir ou ler, até a
tomar conhecimento. Não me esqueço, não me posso esquecer que quando o Público,
de que eu era director, revelou pela primeira vez a história da licenciatura,
seguiu-se uma semana de pesado silêncio que só foi quebrada quando o Expresso,
então dirigido por Henrique Monteiro, resistiu às pressões do próprio Sócrates
e repegou na história e denunciou as pressões. Não me esqueço que tivemos uma
Entidade Reguladora da Comunicação Social que fez um inquérito e concluiu que o
silêncio de toda a comunicação num caso de evidente interesse público não
resultara de qualquer pressão – a mesma ERC que depois condenaria a TVI por
estar a investigar o caso Freeport. Como não me esqueço de como uma comissão
parlamentar chegou mais tarde à mesma conclusão, tal como não me esqueço de
como vi gestores de grandes empresas deporem com medo do que diziam. Muitos dos
que agora rasgam as vestes porque o antigo primeiro-ministro foi detido no
aeroporto foram os mesmos que nunca quiseram admitir que havia um problema com
Sócrates, com os seus casos, com o seu comportamento, com o seu autoritarismo.
E também com o seu estilo de vida.
Há momentos
que chegam a ser patéticos. Como é possível, por exemplo, que um homem
supostamente inteligente, como Pinto Monteiro, queira que nós acreditemos que
foi convidado por José Sócrates para um almoço, de um dia para o outro, numa
altura em que o cerco se apertava, e que, naquele que terá sido o seu primeiro
almoço a sós, só falaram de livros e viagens, como se fossem dois velhos
amigos? Como é possível que continue a defender a decisão absurda sobre a
destruição das escutas? Ou a achar que nada mais podia ter sido feito na
investigação do caso Freeport?
Mas há
também um lado doentio e provinciano na forma como se tem comentado este caso.
Uma das raras pessoas que detectou essa anormalidade foi Nuno Garoupa,
professor catedrático de Direito nos Estados Unidos e que, por ter respirado
ares mais arejados, não teve dúvidas, notando que “nós é que vivemos num mundo
mediático”, não é a Justiça que cria o circo, como se repetiu ad nauseam nas
televisões. Mais: “A opinião pública pode e deve fazer um julgamento político,
independentemente do julgamento legal e judicial. A política e a justiça não
são a mesma coisa.” Ou seja, deixem-se da hipocrisia do “inocente até prova em
contrário”, pois isso é verdade nos tribunais mas não é verdade quando temos de
julgar politicamente alguém como José Sócrates. O julgamento político, como ele
sublinha, não está sujeito aos mesmos critérios do julgamento penal.
A
clareza do debate político exige pois que saibamos fazer distinções. A
distinção que António Costa fez logo na madrugada de sábado, quando disse que
“os sentimentos de solidariedade e amizade pessoais não devem confundir a acção
política do PS”, é justa e mantém toda a sua pertinência. Se o PS tem
conseguido manter a frieza – quase todo o PS, pois são raras e muito pontuais
as excepções –, é importante para esse mesmo PS ir mais longe. E tocar um ponto
nevrálgico: aquilo que nós, cá fora, sabíamos sobre as excentricidades e as
práticas de José Sócrates dão-nos apenas uma pequena amostra do que se sabia em
muitos círculos do PS. Sabia, mas não se comentava, mal se sussurrava.
Vou mais
longe: nos partidos estas coisas são conhecidas. Pelo menos no PSD e no CDS,
para além do PS. Ninguém ficou surpreendido quando a Justiça caiu sobre Duarte
Lima – todos os seus companheiros de bancada conheciam as suas excentricidades.
Pior: muitos ainda hoje comentam como a Justiça ainda não apanhou alguns
antigos secretários-gerais, aqueles que tratavam das contas e apareceram ricos
de um dia para o outro. Pior ainda: nos bastidores dos partidos as histórias de
autarcas, em particular de alguns dinossauros, são infindáveis. E há longínquas
férias na neve de dirigentes partidários que incomodam os seus correligionários
sem que nada aconteça para além de um comentário fugaz.
Vamos
ser claros, deixando a hipocrisia do respeitinho de lado. A dúvida que havia
sobre José Sócrates era sobre se seria algum dia apanhado. A percepção que
corroía a confiança nas instituições não era sobre se os seus direitos humanos
poderiam vir a ser negados (a sugestiva preocupação de Alberto João Jardim),
mas sim sobre se algum dia um aparelho judicial que, anos a fio, pareceu
amestrado seria capaz de apanhar alguns dos fios das muitas meadas tecidas pelo
antigo primeiro-ministro.
Escrevi-o
muitas vezes e vou repeti-lo: José Sócrates foi a pior coisa que aconteceu na
democracia portuguesa nos últimos 40 anos, e não o digo por causa da
bancarrota. Digo-o por causa da forma como exerceu o poder, esperando fazê-lo
de forma absoluta, sem contestação, sem obstáculos, sem críticos. Não os
tolerava no PS, no Governo, nos jornais, nos bancos, nas grandes empresas do
regime.
Não sou
a primeira pessoa a descrever assim José Sócrates. Nem essa descrição é
recente. Recordo apenas um texto de António Barreto, de Janeiro de 2008 (há
quase sete anos, bem antes da bancarrota), onde se escrevia que “o
primeiro-ministro José Sócrates é a mais séria ameaça contra a liberdade,
contra a autonomia das iniciativas privadas e contra a independência pessoal
que Portugal conheceu nas últimas três décadas”. Lembram-se? Eu não o esqueci.
O que
distingue o socratismo não é uma visão da forma de ser socialista, é uma visão
schmidtiana de exercício do poder. Compreendo que o seu estilo de líder forte
possa ter fascinado quem cavalgou a onda, mas é bom que hoje olhem para o
elixir que provaram e que os inebriou, e percebam que era um veneno. Ou seja:
acordem para a realidade. Depois do que se passou nos últimos dias, do que já
sabemos sobre os contornos do processo e das acusações, do que imaginamos mas
ainda não sabemos, a pergunta que muitos têm de intimamente fazer é “como foi
possível?”, “como é que acreditei?”. Porque se não forem por esse caminho o seu
único refúgio acabará por ser uma qualquer teoria da conspiração como a
imaginada pelo insubstituível MRPP.
Ao
contrário do que se repetiu à exaustão, o carácter não é um detalhe em
política. E se ninguém deve apagar rostos em fotografias, à la Stalin, também é
preciso olhar de frente para o que, no passado, recomenda que se exorcizem
fantasmas, demónios, maus hábitos e práticas não recomendáveis.
25/11/2014
José
Manuel Fernandes
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