sexta-feira, 27 de março de 2015

De facto, não se morre assim



Um artigo de Vasco Pulido Valente - «Folhas Mortas?» - (Público, 22/3/15), jornal trazido pela mão fraterna da minha irmã, ontem, juntamente com as amêndoas da Páscoa, artigo que leio hoje, com o prazer de sempre, revivendo Yves Montand, e simultaneamente lembrando a minha Mãe, que completaria hoje 108 anos, se não tivesse partido há dois anos, «moi qui t’aimais, toi qui m’aimais”, para onde nunca saberemos onde fica. Mas ela está, e é connosco que fica, bem florida na sua campa partilhada com a gente boa que lhe rodeou a vida – o seu marido, a sua irmã Clara, o seu genro -  «moi qui t’aimais, toi qui m’aimais”, on s’aimait bien et l’on continue. Campa que a minha irmã se encarrega de embelezar, sempre atenta ao pormenor artístico, sinónimo do prazer de viver, contemplando toda a maravilha que nos fornece o universo, prova da existência de um ser superior para um Rousseau sensível e brilhante. O mesmo prazer que se sente na leitura de um bom artigo de jornal, como este de Vasco Pulido Valente, também prova da existência de um Deus criador, na concepção racionalista de Voltaire, verdadeira também na pintura de um quadro, ou na decifração de um enigma, na resolução de um problema complicado, ou na descoberta de um remédio eficaz, expressão das potencialidades intelectuais ou artísticas desse ser, ao sexto dia criado do pó, conquanto edénico.
Este artigo de Vasco Pulido Valente levou-me aos tempos do liceu, onde havia jovens  como esses de quem fala, ledores da cartilha marxista e por isso chamados a prestar contas perante a PIDE-DGS, que lhes invadira as estantes domiciliárias com ferocidade destruidora. Recordo o Rui, o Gil, o Horta, não sei se o Miranda e o Pereira Leite, também todos eles deslumbrados, na sua adolescência de rebeldia e novidade ideológica, de quem julgava ter descoberto a pólvora e desprezava a sociedade burguesa conservadora e preconceituosa a que pertenciam as suas famílias, que provavelmente os educaram na liberdade de pensar, talvez elas próprias contestando as grilhetas impostas por um governo autoritário, mas naturalmente submissas às regras seguidas. Recordo o meu Pai, contando, a rir, a história de um colega seu que um dia foi votar por desfastio no único partido existente e escreveu no seu voto: “Eu e o meu cão Farrusco votamos na União Nacional.” Era assim, o meu Pai, como a maioria dos cidadãos, seguindo as regras, por respeito, por princípios de obediência e educação, reservando para a família ou os amigos as graças das suas reservas políticas.  Respeito como hoje se encontra ainda entre a maioria dos ingleses, quando fazem, com veneração, a trasladação dos ossos encontrados de Ricardo III para junto dos seus parentes York.
Velhas histórias que vão ao encontro das que Vasco Pulido Valente traz uma vez mais ao palco das suas evocações, transformadas pelo seu senso crítico, nascido do saber feito de leitura e de vivência acumulada de todos estes anos que passaram, de viragem nesse sentido libertário que os jovens de então pretendiam, e que se revelou catastrófica pelos excessos cometidos em sucessivos governos de abertura para o povo carente de direitos, pretexto para uma manipulação destruidora do equilíbrio governativo.
“Folhas Mortas?”, o excelso texto de Vasco Pulido Valente, que me lembrou a minha Mãe de 108 anos - hoje, na nossa lembrança - uma mulher tão viva, tão enérgica, tão humana, em toda a acepção do termo. Um texto que ousa apontar a profunda ignorância dos “Álvaros Cunhais” daquele e deste tempo, confinados aos seus slogans admirativos ou de repulsa revolucionária. Também eu adorei Sartre uns anos mais tarde, sobretudo o das peças dramáticas e nas descrições de Simone de Beauvoir, com o espírito admirando, com encanto mas sem parcialidade, relativizando os conceitos e as atitudes e contestando por vezes os princípios irreverentes ou de revolta facciosa.
“Folhas Mortas?” com interrogação, o título do texto de Pulido Valente, sugerindo resposta negativa, na identidade espiritual entre esses idealistas de outrora e os de agora, os de agora mastigando as sínteses vindas do passado, de pura revolta não por amor mas por ódio.
Não, não estão mortas as folhas, como não estará morta a recordação da nossa Mãe que a canção  de Yves Montand pode também abranger, «Moi qui t’aimais, toi qui m’aimais». Et encore…

FOLHAS MORTAS?
Resolvi fazer uma visita ao meu passado, o que evidentemente implicou ler o que lia há 50 ou 40 anos. Não tudo, claro, só aquilo de que ainda me lembrava e que, por uma razão ou por outra, tinha sido importante na minha vida.
De livro em livro, fui percebendo que desde muito cedo fiquei fixado nas duas grandes polémicas do tempo: a natureza do comunismo soviético e as pretensões científicas do marxismo. Ninguém acreditaria hoje no entulho que pouco a pouco acumulei sobre assuntos com tão pouco interesse e, em si próprios, tão claros. Mas na atmosfera de esquerda da minha casa e da universidade, eles exigiam tempo, zelo e proficiência. E não me desculpo porque toda a “inteligência” da Europa (excepto em Inglaterra) também não pensava em mais nada.
A Ditadura complicava as coisas. Os sermões dos “maîtres à penser” não se vendiam ao balcão como qualquer legítima mercadoria. Alguns beneméritos acabavam por os vender clandestinamente. Ou meia dúzia de intermediários acabavam por os trazer de Paris. Para seu mal, o regime do dr. Salazar não deixou que o descrédito do marxismo e do estalinismo (já quase completo em 1973) chegassem a Portugal. Aqui, a esquerda continuava a ler Althusser e a falar com inteira seriedade da “prática económica”, da “prática política” e, principalmente, da “prática teórica”. E gente, que depois deslizou para um liberalismo analfabeto (“neo” ou não), não se calava com o “corte epistemológico” de Marx e a soturna realidade genericamente apelidada de “Aparelhos Ideológicos do Estado”. Esta alta idiotia, sob formas variáveis, nunca os deixou.
Estava na televisão, em 1975, quando Cunhal, um estalinista indecoroso e beato, proibiu com a ajuda do MFA um documentário em que se mencionava de passagem a purga ao Exército Vermelho de 1938. Nessa altura, a Europa conhecia Kravchenko, Souvarine, Serge, o relatório de Khruschev ao XX Congresso, e também Koestler, Orwell, Milosz e Solzhenitsyn. Infelizmente, Portugal era uma ilha de iletrados em que se admirava o PC e se persistia em venerar Sartre. Porquê ir agora buscar esta velha história? Porque ela deixou a sua marca na cultura política portuguesa: a intolerância que reapareceu e aumenta dia a dia de ferocidade; a desonesta e facciosa simplificação da crise (da direita à extrema-esquerda); e a terrível ideia de que o Estado pode formar e corrigir a sociedade. No Portugal arcaico, que é o nosso, estas ressurreições não animam.

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