quinta-feira, 2 de abril de 2015

Na estrada de Lafões



Encontrei em casa da minha prima Celeste, que vive em Pinheiro de Lafões, na casa adquirida por alturas do retorno a Portugal - na avalanche que impôs então oposições e entreajudas - um livro que também tenho, mas que o prazer da releitura me fez devorar nas três noites de alguma insónia, embora bem instalada num quarto de hotel – «Ulvense» – “que o meu pai pagará”, perdão, que a minha irmã pagou - as realidades aproximando-se, com mais glória, todavia, para a “Caranguejola” do Mário de Sá Carneiro, sonhando com um quarto de hospital, «tudo bem calafetado». Foi o livro de Ferreira de Castro -“A Curva da Estrada”, história de um advogado espanhol socialista - Don Álvaro Soriano -  a braços com um grave problema de consciência – o de abandonar o partido de que fora leader e ingressar no partido nacional, um tanto manipulado pelos ditames de oposição ferrenha ao socialismo da irmã Mercedes - beata e amante da sociedade elegante dos nacionalistas afins de governo - que com ele vivia após a morte da mulher, e de seu filho mais velho Paco, que também lhe ocupava a casa após a separação da mulher, com quem casara por interesse. Lembrava-me de que esse livro fora comprado no Lobito, em Agosto de 1953, segundo assinatura, quando vim estudar para Coimbra, tendo iniciado numa livraria de lá a manipulação do dinheiro que o meu pai me entregara para a viagem, o qual, naturalmente não chegaria ao fim dela, pecha de que enfermaria a minha viagem posterior pela vida, de conta mensal na Coimbra Editora, em Coimbra, na Minerva Central em Lourenço Marques, além de outros centros comerciais confiantes na honorabilidade do meu propósito de solvência em prestações mensais – realidade de vivência infinita que umas linhas resumem.
Um livro que despertara a minha curiosidade pela diferença de propósito que encontrara nos livros dele que meu pai tinha na estante em Lourenço Marques – “A Selva”, “Terra Fria”, “A Lã e a Neve” – que achava pesados para a minha mente habituada a leituras novelescas, naturalmente preterindo essas, de sofrimento e miséria, segundo o credo dos amantes da humanidade, neorrealistas/marxistas na altura, da esquerda vária hoje. Tratava-se de um livro sobre gente interessante, quer sob o ponto de vista psicológico quer sob o ponto de vista ideológico e cuja releitura me trouxe visões antecipadas de manobras políticas e doutrinárias que a realidade posterior ao 25 de Abril apregoou a cada momento, cada vez com mais empenho.
“A Curva da Estrada”, numa terra de curvas na estrada, como essas dos meus tempos de infância, entre Pinheiro e Oliveira de Frades, Pinheiro e o Carregal, que percorríamos a pé na infância e mais tarde de carro, vias que ainda se mantêm, valorizadas pelas autoestradas do progresso. Gostei de reler. Naturalmente, um título simbólico, evocativo da “estrada de Damasco”, seguida por Paulo, perseguidor dos cristãos, posteriormente iluminado nessa estrada, a ponto de se tornar o maior apóstolo pregador da doutrina cristã, em dúvidas sobre si próprio, tal como se debate Don Álvaro Soriano, em hesitações morais e conflitos de consciência, que o fazem renunciar, passando a viver das suas recordações de anterior leader socialista, corajoso e lutador, herói para o filho mais novo – Enrique – que o enfrentou e o libertou, na “curva da sua estrada”. O credo socialista resume-se no final do livro: «É preciso amar os homens», a corrupção pertencendo, então, à frente nacionalista, de hipocrisia e manobras perversas, no pensamento do autor Ferreira de Castro, que, se vivesse hoje outros pruridos teria, menos unilaterais. Ou não teria nenhuns, perdidos nas autoestradas, inexistentes então.
Gostei também do passeio às terras da minha infância, perfumadas, de casario entalado nas serras, paisagens miríficas, de ares límpidos e cortantes, de nevoeiros matinais descendo das serras distantes, desvanecendo-se sob um sol brilhante, as praças e ruas de Oliveira de Frades, modernizada, e os quintais da vila e aldeias cheios de magnólias e de cameleiras floridas das mais diversas cores, os canteiros cobertos de amores-perfeitos, os campos em pousio passageiro, laranjeiras e tangerineiras a vergar de ouro, outras árvores começando a revestir-se de rebentos, flores por toda a parte, “espertos regatinhos fugiam, rindo com os seixos”, o casario das povoações alargado e bem pintado, a lembrar emigração e previdência para a velhice do retorno.
Mas a Celeste estava doente, foram três dias de companheirismo e alegria festiva e encorajante que se prolongam nos nossos desejos de melhoras, que o serão, rodeada que está pela irmã, o cunhado e os sobrinhos, nos afectos e vigília de longa data compartilhados.
A “curva da estrada” para Alberto Caeiro, uma interpretação prática, à maneira dele, pretendendo ser positiva e sem artifício nem filosofia, limitada a nossa visão ao que está antes da curva, que o nosso olhar descobre, sem lugar a suposições imaginárias inúteis e irreais. Bem diferente do romance de António Ferreira no conceito, a observação simplista à maneira “antimetafísica”, na realidade profundamente racionalista:

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.
ALBERTO CAEIRO

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