sábado, 4 de abril de 2015

Uma polémica entre amigos



Uma polémica entre amigos

Texto do Dr Salles:

OS REGATINHOS DE EÇA
Foi na juventude que li algumas obras de Eça de Queiroz e gostei. Comecei pelos Maias e depois lembro-me de ter passado pela Relíquia sendo que esta última também vi posta em teatro interpretada pela inesquecível Elvira Velez. Um fartote de riso. Ah sim, também li O crime do Padre Amaro e As minas de Salomão, traduções que amiúde passam por originais queirozianos. Foi já a Professora Berta Brás que me conduziu na leitura da Vida de Santos.
Inquestionavelmente, um bom escritor.
E o que resulta da obra de Eça? Uma crítica bem assertiva à sociedade portuguesa, sem dúvida, mas pondo-nos a ridículo de um modo que a partir de certa idade me começou a irritar. Deve ter tudo a ver com o 25 de Abril, época a partir da qual a comunicação social se dedicou a apontar-nos todos os defeitos do mundo, os que temos e os que os jornalistas inventam. E fá-lo a tempo inteiro. Então, como não posso mandar calar a comunicação social nem sequer mandá-la fuzilar sem julgamento prévio, decidi aligeirar o mais possível toda a maledicência que me rodeava e pus Eça de Queiroz na prateleira sem tencionar voltar a lê-lo enquanto o pesado ambiente crítico me rodear. Já bastam noticiários radiofónicos e telejornais!
Eis por que nunca li A cidade e as serras nem todos as outras obras de Eça que não citei até aqui. Et pour cause, não conhecia a bela frase «Espertos regatinhos fugiam rindo com os seixos, dentre as patas da égua e do burro». E como não a conhecia, julguei-a da autoria da Professora Berta Brás no texto que se intitula Na estrada de Lafões.
Então, como homem do asfalto, sorriu-me o bucolismo da paisagem atravessada por um regato a cantar nos seixos e eu montado na égua a molhar as mãos e os pés na água fria (para nós, homens de cavalos, não há patas mas sim mãos e pés a que mais correctamente deveríamos chamar braços e pernas; mas não, sempre dizemos mãos e pés; e, pelos vistos, nem desta vez Eça me corrigiu).
Diz a Professora Berta Brás que ficou enxofrada com o facto de, numa apreciação privada do texto que lhe enviei, eu ter dado preferência a uma expressão que, afinal, não era da sua autoria.
Ora, enxofrar a Professora Berta Brás é a última ideia que me pode ocorrer – mesmo depois de aceitar fazer alguma viagem de submarino ou ir a Marte sem retorno – pelo que o lapso resulta apenas duma vastíssima ignorância que reconheço mas que, na dimensão queiroziana, não tenciono colmatar nos tempos mais próximos.
Mas espero que me façam justiça – a começar pela Professora Berta Brás – reconhecendo que os espertos regatinhos são muito bem apanhados e que a vida continuará a ser bela enquanto eles rirem nos seixos.
Continuemos...
Abril de 2015

O meu comentário:
Quando eu uso iguais expressões em relação às poses sobranceiras ou impacientes da “minha amiga” ante o meu desconhecimento das novidades que ela, em gesto amplo, expande, provenientes das suas informações televisivas, jornalísticas ou revisteiras, ou mesmo das suas experiências vividas, o Dr. Salles provavelmente acha graça aos meus desabafos falsamente formalizados. Não sucedeu o mesmo com a minha brincadeira com ele, e por isso reitero as minhas desculpas por ter usado estouvadamente idêntico jogo de pseudo-humilhação, no fundo para me recrear, transcrevendo-as, com a leitura dessas páginas de Eça, de sabor divino permanente. Diz o Dr. Salles que não leu “A Cidade e as Serras”. Quantos livros leu, que já tem referido que eu nunca li? A ignorância é sempre vastíssima em toda a gente, sempre limitada aos interesses ou disponibilidades de cada um, o meu neto Sebastião, de quatro anos, maneja os seus canais televisivos de forma que me deixa boquiaberta, a minha neta Beatriz, aos 2 anos reconhecia dezenas de marcas de carros, hoje ela, tal como a Mafalda, irmã do Sebastião, escrevem no teclado do computador mais velozmente do que eu, que nunca ultrapassei o dedo indicador na minha dactilografia meditada. E o que elas sabem de músicas e personagens de furor que eu nunca conheci!
Do fundo da minha ignorância crassa, quantas vezes desejosa de ser colmatada com leituras que os olhos já mal abrangem, sobretudo se a letra dos livros for pequena, ou, como diria M. Lepic, pai do “Poil de Carotte”, filho mais novo e rejeitado na família Lepic, que, quando adolescente, em carta a seu pai falava com entusiasmo de iniciado nas suas leituras, e o seu pai lhe cortava os arroubos intelectuais aconselhando-o friamente a compor ele próprio os seus escritos para os outros lerem - o que, de resto, Jules Renard faria nesse estranho romance autobiográfico de pinceladas narrativas sobre a vida sem afectos de um pobre petiz estranhamente maltratado pela família, em caricatas e cínicas cenas de humilhação com, por vezes, réplica astuta da malograda vítima… Como aconselhara, pois, M. Lepic na carta ao filho, troco muitas vezes a leitura de obras literárias pela escrita comentarista sobre o mundo tal como o vejo.
Mais uma vez, o conceito de relatividade pode ser adaptado aos conhecimentos ou capacidades de cada um, sem dar lugar a sentimentos de humilhação que eu, por exemplo, teria se tivesse que falar em público, sem o dedo dactilógrafo possibilitando os subterfúgios do pensamento elaborado.

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