quarta-feira, 8 de abril de 2015

«Era o tempo das quimeras»



Também me lembro de quando, em Lourenço Marques, recebemos o disco de 45 rotações de Zeca Afonso, contendo “Menino do Bairro Negro” e “Os Vampiros”, de que logo aprendemos música e letra, que nos ficou na memória para sempre:
«Olha o sol que vai nascendo  Anda ver o mar  Os meninos vão correndo  Ver o sol chegar. Menino sem condição  Irmão de todos os nus  Tira os olhos do chão  Vem ver a luz. Menino do mal trajar  Um novo dia lá vem.  Só quem souber cantar  Virá também. Negro, bairro negro, bairro negro  Onde não há sol não há sossego… Menino pobre o teu lar  Queira ou não queira o papão  Há-de um dia cantar  Esta canção. Se até dá gosto cantar  Se toda a Terra sorri  Quem te não há-de amar  Menino a ti?  Se não é fúria a razão  Se toda a gente quiser  Um dia hás-de aprender  Haja o que houver.  Negro…. »
Era bonito, era comovente, dava para embalar os filhos, juntamento com outros fados de Coimbra que leváramos na bagagem. Mas tratava-se de baladas, baladas “do baladeiro Afonso”, na designação de Vasco Pulido Valente, que jamais nos passaria pela cabeça assim apelidar, na admiração do poeta, comovidos então com a sensibilidade do quadro dos meninos correndo, que em nada se assemelhavam às “Meninas” do Velasquez, e nos faziam imaginar situações de pobreza social pecaminosa, embora a condessa de Ségur e o Charles Dickens, Jorge Amado ou Gorki, além de “Os Miseráveis” da odisseica vida de Jean Valjean nos tivessem também alertado para os bairros negros da miséria infame.
Ocupada nas funções de trabalhadora e de mãe de família, e, de resto, amando o mundo, sem tempo para as leituras mais profundas que nos fariam odiar uma parte dele – a dos exploradores capitalistas da tradição de todos os tempos, de que já a Bíblia se ocupara, tanto no Antigo Testamento como nos tempos de Jesus, “Os Vampiros” do Zeca Afonso causaram deslumbramento e surpresa por ataque tão directo, que logo memorizámos e cantámos, mais em surdina, contudo, ou entre os amigos sorridentes:
«No céu cinzento sob o astro mudo  Batendo as asas pela noite calada  Vêm em bando com pés de veludo  Chupar o sangue fresco da manada  Se alguém se engana com seu ar sisudo  E lhes franqueia as portas à chegada  Eles comem tudo  Eles comem tudo  Eles comem tudo e não deixam nada [bis]
A toda a parte chegam os vampiros  Poisam nos prédios poisam nas calçadas  Trazem no ventre despojos antigos  Mas nada os prende às vidas acabadas  São os mordomos do universo todo  Senhores à força mandadores sem lei  Enchem as tulhas bebem vinho novo  Dançam a ronda no pinhal do rei  Eles comem tudo eles comem tudo  Eles comem tudo e não deixam nada (bis)
No chão do medo tombam os vencidos  Ouvem-se os gritos na noite abafada  Jazem nos fossos vítimas dum credo  E não se esgota o sangue da manada  Se alguém se engana com seu ar sisudo  E lhes franqueia as portas à chegada  Eles comem tudo eles comem tudo  Eles comem tudo e não deixam nada (bis)»
De facto, era a rir que cantávamos, com garra, o “Eles comem tudo” que nos excluía a nós do banquete, enquanto admirávamos a coragem do excluído social que trabalhara no mesmo liceu que eu - o liceu António Enes, um ou dois anos depois de mim – tendo sido transferido posteriormente para um liceu da Beira, por conduta doutrinária então condenada, apesar da fama poética. Quando, anos depois, abrimos os olhos e a mente para a realidade descolonizadora que ele ajudara a fabricar, já Zeca Afonso se banqueteava nas libações do seu triunfo em novas baladas que serviriam de senha aos novos tempos revolucionários, em que ele participou e continuaria, alguns anos mais, na repetição festivaleira anual da “vila morena” da sua solidariedade social.
Julgo que Vasco Pulido Valente lhe sofreu também a influência, embora com rigidez ilustrada, nos apoios seguros da sua intelectualidade de rigor, bem pensada e meditada, passando ligeiramente sobre os efeitos temporários das ideologias da fraternidade melodiosa. Doutra forma não lhe chamaria tão sacrilegamente o “baladeiro Afonso”.
Também a mim nunca me passaria pela cabeça, descontada a adesão aos “Vampiros” e ao “Menino do Bairro Negro”, pôr em causa a política de Salazar, admirava-lhe a cabeça e a coragem, David franzino contra os Golias do mundo. Mas a vitória dos “baladeiros” na busca da transformação na vida dos meninos do tal “Bairro Negro”, ou dos “Vampiros” foi esta que temos vivido há 40 anos, de gradual multiplicação dos casos, os “meninos” transformados em “os sem abrigo” ao abrigo da caridade pública, além dos muitos outros da rebeldia social, os “vampiros” perdendo a aura mistificatória do anonimato - rosnado em surdina, todavia - que lhes protegia a figura, na pequenez e fealdade das acusações actuais de uma frontalidade ruidosa e despudorada. E com a Revolução, até as canções viraram de carisma, o empenhamento social descambando em músicas malandras, para o rodopio das coxas femininas muito nuas, os pratos suculentos do país soalheiro acompanhando os apetites do povo garrido das vilas morenas da nossa terra, a televisão como principal foco de difusão das nossas luzes, em espectáculos de tudo isso, e mais entrevistas, e mais futebol, e muitos casos da nossa enfermidade social.
Era “o tempo das quimeras”, da expressão de Paco Bandeira", para os intelectuais de outrora, do “quanto mais longe era perto”, no empenhamento da esperança. É o tempo, agora, da queda na realidade, vivida cada vez mais de perto, no amargo da desilusão e da ausência mesquinha de ideal. O tempo do inconformado e lúcido Vasco Pulido Valente:

«Luta de Classes e capitalismo financeiro»
Vasco Pulido Valente
Público, 29/3/15
«Houve um tempo em que toda a gente explícita ou obscuramente acreditava na “luta de classes” em versão marxista. Uns com requintes teóricos, tirados da vulgata de Estaline; outros na forma popular das 200 famílias (porquê 200?) da propaganda russa ou de Álvaro Cunhal no “Rumo à Vitória”. A minha geração, fosse de esquerda ou de direita, viveu na convicção de que existia um grupo terrível e maldoso de capitalistas, os “vampiros” do baladeiro Afonso, que usava Salazar (um lacaio de formação e origem) para nos meter na ordem e lhe permitir chupar o nosso querido sangue. Ninguém conseguia imaginar como seria um exemplar dessa satânica espécie. Por mim, só vi um, e de fugida: Jorge de Melo, a tremelicar de frio na Praia Grande como se estivesse na Sardenha. Fiquei desconsolado.
Mas não fiquei tão desconsolado como agora quando passaram à minha frente na televisão as grandes figuras do capitalismo financeiro cá de casa (segundo a doutrina, o mais poderoso e o mais cínico) e os seus servos da gleba. Era então por causa deles que tínhamos odiado a Ditadura e amado o povo; por causa deles que tínhamos sofrido e também tremido; por causa deles que se fizera o PREC à custa da economia do país. Nunca fui um crente, mas mesmo assim a patética cara do Diabo – finalmente revelada – e a descrição das suas mesquinhas trafulhices foram um desapontamento e uma tristeza. Não havia ali nada de especialmente maléfico e de aterrador. Os piores aldrabavam o cidadão comum com a mesma mediocridade e a mesma técnica de quem vende o vigésimo premiado, abusando como de costume de velhinhos na reforma e pategos de passagem. Para quê, meu Deus?
E o aspecto? A indignidade? O medo da polícia (e da cadeia) que tresandava em cada resposta, em cada comentário? As personagens da nossa antiga imaginação apareceram – na figura de Ricardo Salgado, José Maria Ricciardi, Pedro Queiroz Pereira, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, e um ocasional director ou contabilista – e disseram que sim, e que não, e que assim-assim, e criaram um emaranhado de contradições e de mentiras, em que será preciso pescar à linha. Sinais de responsabilidade? Nem um. E a decência, a decência humana e comezinha do homem da rua, ao que parece não se usa em tão exaltadas regiões. Afinal, era esta a “luta de classes” de que nos falavam os papéis do PC e era este o “capitalismo financeiro” que dominava o mundo? O tempo que nós perdemos.»

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