Também me lembro de quando, em Lourenço Marques,
recebemos o disco de 45 rotações de Zeca Afonso, contendo “Menino do Bairro
Negro” e “Os Vampiros”, de que logo aprendemos música e letra, que
nos ficou na memória para sempre:
«Olha o sol que vai nascendo Anda ver o mar Os meninos vão correndo Ver o sol chegar. Menino sem condição Irmão de todos os nus Tira os olhos do chão Vem ver a luz. Menino do mal trajar Um novo dia lá vem. Só quem souber cantar Virá também. Negro, bairro negro, bairro negro
Onde não há sol não há sossego… Menino
pobre o teu lar Queira ou não queira o
papão Há-de um dia cantar Esta canção. Se até dá gosto cantar Se toda a Terra sorri Quem te não há-de amar Menino a ti? Se
não é fúria a razão Se toda a gente
quiser Um dia hás-de aprender Haja o que houver. Negro…. »
Era bonito, era comovente, dava para embalar os
filhos, juntamento com outros fados de Coimbra que leváramos na bagagem. Mas
tratava-se de baladas, baladas “do baladeiro Afonso”, na designação de
Vasco Pulido Valente, que jamais nos passaria pela cabeça assim apelidar, na
admiração do poeta, comovidos então com a sensibilidade do quadro dos meninos correndo,
que em nada se assemelhavam às “Meninas” do Velasquez, e nos faziam imaginar
situações de pobreza social pecaminosa, embora a condessa de Ségur e o Charles
Dickens, Jorge Amado ou Gorki, além de “Os Miseráveis” da odisseica vida de
Jean Valjean nos tivessem também alertado para os bairros negros da miséria
infame.
Ocupada nas funções de trabalhadora e de mãe de
família, e, de resto, amando o mundo, sem tempo para as leituras mais profundas
que nos fariam odiar uma parte dele – a dos exploradores capitalistas da
tradição de todos os tempos, de que já a Bíblia se ocupara, tanto no Antigo
Testamento como nos tempos de Jesus, “Os Vampiros” do Zeca Afonso
causaram deslumbramento e surpresa por ataque tão directo, que logo memorizámos
e cantámos, mais em surdina, contudo, ou entre os amigos sorridentes:
«No céu cinzento sob o astro mudo Batendo as asas pela noite calada Vêm em bando com pés de veludo Chupar o sangue fresco da manada Se alguém se engana com seu ar sisudo E lhes franqueia as portas à chegada Eles comem tudo Eles comem tudo Eles comem tudo e não deixam nada [bis]
A toda a parte chegam os vampiros Poisam nos prédios poisam nas calçadas Trazem no ventre despojos antigos Mas nada os prende às vidas acabadas São os mordomos do universo todo Senhores à força mandadores sem lei Enchem as tulhas bebem vinho novo Dançam a ronda no pinhal do rei Eles comem tudo eles comem tudo Eles comem tudo e não deixam nada (bis)
No chão do medo tombam os vencidos Ouvem-se os gritos na noite abafada Jazem nos fossos vítimas dum credo E não se esgota o sangue da manada Se alguém se engana com seu ar sisudo E lhes franqueia as portas à chegada Eles comem tudo eles comem tudo Eles comem tudo e não deixam nada (bis)»
De facto, era a rir que cantávamos, com garra, o “Eles
comem tudo” que nos excluía a nós do banquete, enquanto admirávamos a
coragem do excluído social que trabalhara no mesmo liceu que eu - o liceu António
Enes, um ou dois anos depois de mim – tendo sido transferido posteriormente
para um liceu da Beira, por conduta doutrinária então condenada, apesar da fama
poética. Quando, anos depois, abrimos os olhos e a mente para a realidade
descolonizadora que ele ajudara a fabricar, já Zeca Afonso se banqueteava nas
libações do seu triunfo em novas baladas que serviriam de senha aos novos
tempos revolucionários, em que ele participou e continuaria, alguns anos mais,
na repetição festivaleira anual da “vila morena” da sua solidariedade social.
Julgo que Vasco Pulido Valente lhe sofreu também a
influência, embora com rigidez ilustrada, nos apoios seguros da sua
intelectualidade de rigor, bem pensada e meditada, passando ligeiramente sobre os
efeitos temporários das ideologias da fraternidade melodiosa. Doutra forma não lhe
chamaria tão sacrilegamente o “baladeiro Afonso”.
Também a mim nunca me passaria pela cabeça, descontada a adesão
aos “Vampiros” e ao “Menino do Bairro Negro”, pôr em causa a
política de Salazar, admirava-lhe a cabeça e a coragem, David franzino contra
os Golias do mundo. Mas a vitória dos “baladeiros” na busca da transformação na
vida dos meninos do tal “Bairro Negro”, ou dos “Vampiros” foi esta que temos
vivido há 40 anos, de gradual multiplicação dos casos, os “meninos”
transformados em “os sem abrigo” ao abrigo da caridade pública, além dos muitos
outros da rebeldia social, os “vampiros” perdendo a aura mistificatória do
anonimato - rosnado em surdina, todavia - que lhes protegia a figura, na pequenez
e fealdade das acusações actuais de uma frontalidade ruidosa e despudorada. E
com a Revolução, até as canções viraram de carisma, o empenhamento social descambando
em músicas malandras, para o rodopio das coxas femininas muito nuas, os pratos
suculentos do país soalheiro acompanhando os apetites do povo garrido das vilas
morenas da nossa terra, a televisão como principal foco de difusão das nossas
luzes, em espectáculos de tudo isso, e mais entrevistas, e mais futebol, e
muitos casos da nossa enfermidade social.
Era “o tempo das quimeras”, da expressão de Paco Bandeira", para os intelectuais de
outrora, do “quanto mais longe era perto”, no empenhamento da esperança.
É o tempo, agora, da queda na realidade, vivida cada vez mais de perto, no
amargo da desilusão e da ausência mesquinha de ideal. O tempo do inconformado e lúcido Vasco Pulido
Valente:
«Luta de Classes e
capitalismo financeiro»
Vasco Pulido Valente
Público, 29/3/15
«Houve um tempo em que toda a gente explícita ou
obscuramente acreditava na “luta de classes” em versão marxista. Uns com
requintes teóricos, tirados da vulgata de Estaline; outros na forma popular das
200 famílias (porquê 200?) da propaganda russa ou de Álvaro Cunhal no “Rumo à
Vitória”. A minha geração, fosse de esquerda ou de direita, viveu na convicção
de que existia um grupo terrível e maldoso de capitalistas, os “vampiros” do
baladeiro Afonso, que usava Salazar (um lacaio de formação e origem) para nos
meter na ordem e lhe permitir chupar o nosso querido sangue. Ninguém conseguia
imaginar como seria um exemplar dessa satânica espécie. Por mim, só vi um, e de
fugida: Jorge de Melo, a tremelicar de frio na Praia Grande como se estivesse
na Sardenha. Fiquei desconsolado.
Mas não fiquei tão desconsolado como agora quando passaram à
minha frente na televisão as grandes figuras do capitalismo financeiro cá de
casa (segundo a doutrina, o mais poderoso e o mais cínico) e os seus servos da
gleba. Era então por causa deles que tínhamos odiado a Ditadura e amado o povo;
por causa deles que tínhamos sofrido e também tremido; por causa deles que se
fizera o PREC à custa da economia do país. Nunca fui um crente, mas mesmo assim
a patética cara do Diabo – finalmente revelada – e a descrição das suas
mesquinhas trafulhices foram um desapontamento e uma tristeza. Não havia ali
nada de especialmente maléfico e de aterrador. Os piores aldrabavam o cidadão
comum com a mesma mediocridade e a mesma técnica de quem vende o vigésimo
premiado, abusando como de costume de velhinhos na reforma e pategos de
passagem. Para quê, meu Deus?
E o aspecto? A indignidade? O medo da polícia (e da cadeia)
que tresandava em cada resposta, em cada comentário? As personagens da nossa
antiga imaginação apareceram – na figura de Ricardo Salgado, José Maria
Ricciardi, Pedro Queiroz Pereira, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, e um
ocasional director ou contabilista – e disseram que sim, e que não, e que
assim-assim, e criaram um emaranhado de contradições e de mentiras, em que será
preciso pescar à linha. Sinais de responsabilidade? Nem um. E a decência, a
decência humana e comezinha do homem da rua, ao que parece não se usa em tão
exaltadas regiões. Afinal, era esta a “luta de classes” de que nos falavam os
papéis do PC e era este o “capitalismo financeiro” que dominava o mundo? O
tempo que nós perdemos.»
Nenhum comentário:
Postar um comentário