Foi este o comentário final que fez o Dr Salles ao meu
texto sobre Lafões, depois de ter afirmado que nele gostara especialmente dos “espertos
regatinhos” o que muito me enxofrou, em específico sentimento de
frustração, pois eu me esmifrara em citações e análises, ao sabor dos meus
pensamentos e sentimentos, por meio da combinação dos grafemas da minha competência,
tal como definia o nosso professor de Música do velho Liceu Salazar, em
Lourenço Marques, Samuel Miguéns: “A música é a arte de exprimir os
sentimentos e os pensamentos por meio da combinação dos sons”. Não se
tratando, de facto, de música, o meu texto de pão-pão, queijo-queijo, no terra
a terra da minha criatividade, nunca se me tinha feito, contudo, repúdio tão
intenso, na preferência pelos regatinhos do Eça que punham a milhas as
magnólias de Oliveira de Frades, referidas no meu texto, na sua beleza “tout
court”, sem sequer um adjectivo a valorizar-lhes o porte, que, por via dos “espertos
regatinhos” hoje assinalo como “gracioso”.
Mas reconhecendo o “quid” transformador de Eça, em
qualquer frase que escreva, conformei-me com a observação, eu própria a
subscrevendo, tanto mais que o Dr. Salles concluiu o seu comentário com um pensamento
assertivo muito perspicaz, a frase do título: «A vida será sempre bela
enquanto houver “espertos regatinhos”».
Na verdade, neste país rasgado ultimamente pelas
autoestradas do progresso, emprestado que este seja, com os moinhos nas cristas
dos montes produzindo energia, sente-se o vigor de um povo que outrora também produziu
barcos e homens buscando outros mundos, em condições por vezes bem tenebrosas.
Já não precisamos hoje, é certo, da égua de Jacinto ou do burro de Zé Fernandes
para trepar a serra para a casa de Tormes, que possibilitou a fixação da divina tela
queirosiana, que se lê e saboreia em cada sua frase musical, "petit poème en prose":
«Com
que brilho e inspiração copiosa a compusera o divino Artista que faz as serras,
e que tanto as cuidou, e tão ricamente as dotou, neste seu Portugal bem amado!
A grandeza igualava a graça. Para os vales poderosamente cavados, desciam
bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço, que eram como
um musgo macio, onde apetecia cair e rolar. Dos pendores, sobranceiros ao
carreiro fragoso, largas romarias estendiam o seu toldo amável, a que o
esvoaçar leve dos pássaros sacudia a fragrância. Através dos muros seculares,
que sustêm as terras, liados pelas heras, rompiam grossas raízes coleantes, a
que mais hera se enroscava. Em todo o torrão, de cada fenda, brotavam flores
silvestres. Brancas rochas, pelas encostas, alastravam a sólida nudez do seu
ventre polido pelo vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen e de silvados
floridos, avançavam como proas de galeras enfeitadas; e, dentre as que se
apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo amachucado e
torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de
verdura, que o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a parte a água sussurrante,
a água fecundante. Espertos regatinhos fugiam rindo com os seixos, dentre as
patas da égua e do burro; grossos ribeiros açodados saltavam com fragor de
pedra em pedra; fios direitos e luzidios como cordas de prata vibravam e faiscavam
das alturas aos barrancos; e muita fonte, posta à beira de veredas, jorrava por
uma bica, beneficamente, à espera dos homens e dos gados. Todo um cabeço, por
vezes era uma seara, onde um vasto carvalho ancestral, solitário, dominava como
seu senhor e seu guarda. Em socalcos verdejavam laranjais rescendentes.
Caminhos de lajes soltas circundavam fartos prados com carneiros e vacas
retouçando, ou, mais estreitos, entalados em muros, penetravam sob ramadas de
parra espessa, numa penumbra de repouso e frescura. Trepávamos então alguma
ruazinha de aldeia, dez ou doze casebres sumidos entre figueiras, onde se
esgaçava, fugindo do lar pela telha-vã o fumo branco e cheiroso das pinhas. Nos
cerros remotos, por cima da negrura pensativa dos pinheirais, branquejavam
ermidas. O ar fino e puro entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força.
Um esparso tilintar de chocalhos, de guizos, morria pelas
quebradas.» «A Cidade e as Serras”
Nas
autoestradas de múltiplos carros deslizando hoje velozes, ultrapassando um ou
outro camião-que outrora, na estrada nacional, em maior quantidade do que hoje,
parece-me, embargavam maliciosamente a passagem aos carros, estes em múltiplas tentativas
de perfuração do espaço barrado, já não há tempo para fixar os pormenores do
descritivo imortal queirosiano, os tapumes laterais das vias amplas
impossibilitando a perfuração dos espaços próximos, apenas as serranias revestidas
do escuro das árvores próximas se destacando ao longe, a confinar com o azul do
céu.
Fomos
a Pinheiro de Lafões, uma zona que se destaca, no vigor saudável dos seus ares,
na beleza incomparável dos casarios pintalgando as serras, de que em tempos fiz
um retrato no meu terra a terra de rigor:
LAFÕES
Um vale, um rio, os montes,
Povoados dispersos
Aqui, além,
Quais jóias incrustadas na verdura
De cerrados horizontes.
No cimo, um céu escasso
Limitado pela linha das montanhas,
Guardando avaramente o seu tesouro
Sem permitir um passo
Para fora.
Lafões…
A harmonia do belo,
O desespero do pouco,
A ânsia ardente
Do infinito,
Tentando passar além
Inutilmente.
Que os montes ciosos
Recolhem o seu esplendor
Vaidosamente.
Ali se impõem,
Ali são donos,
Princípio e termo,
O infinito…
Lafões, quão belo!
Lafões, quão pouco!
(in “Cravos Roxos”)
Hoje eu não renegaria aqueles sítios de Lafões,
ambicionando os espaços mais amplos das planuras marítimas. A televisão, a
internet, e sempre os livros, permitem um lugar feliz em qualquer parte do mundo.
Mas, sobretudo, como afirma o Dr. Salles, porque «A vida será sempre bela
enquanto houver “espertos regatinhos”».
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