Às vezes os jornais trazem-nos
momentos de grande prazer, para contrabalançar com as notícias do nosso
descontentamento que são muitas, o espectro do Mal pairando assustadoramente
por sobre uma Terra gradualmente descaminhada. Para disfarçar, tentamos por
vezes uma leitura de literatura, que vamos buscar a um livro pouco espesso, “Alexis”,
por exemplo, da Marguerite Yourcenar, livro que o Ricardo me ofereceu em
tempos, num desejo pertinente de me fazer vestir-me de uma modernidade de
pensamento menos pecaminoso de conservadorismo, esquecido de que também Proust já
me elucidara mais longamente ainda a respeito das anomalias sexuais, além de
que os grandes poetas nossos, António Botto e Mário de Sá Carneiro, para só
falar dos atrasados, lhes tinham seguido a via, já ilustrados por génios como
Óscar Wilde, Verlaine, Rimbaud que sempre releio, indiferente às vidas de cada
um. Um livro curto, este “Alexis”, narrativa em primeira pessoa, plena
de carinho pela mulher com quem casou e lhe deu um filho, retrospectiva de um
viver de tristeza na casa senhorial onde nascera, escondendo ruína, filho único
entre várias irmãs carinhosas, um pai sombrio, uma mãe que morreu cedo. O
respeito pela mulher destinatária da sua longa carta, o repúdio do filho
recém-nascido e finalmente o retomar do seu piano com umas mãos de liberdade, que
lhe oferecem a assumpção da sua homossexualidade e a deserção do lar. Um livro
curto, sobre um tema tabu, na altura em que foi publicado – 1929 – uma Marguerite
Yourcenar, de 26 anos então, referindo influências clássicas, como Píndaro, embora
canhestro, ou contemporâneas como o moralista Gide, a justificar um tema que só
nos anos 60 - em Portugal 70 - faria parte das reivindicações de uma democracia
aberta, condenatória do preconceito social. Nós por cá, tivéramos também a autobiografia
romanceada “A Sombra dos Dias” de Guilherme de Melo, de quem não esqueço
a entusiástica designação “um homem”, aplicada ao escritor, feita por
Carlos Cruz, em entrevista àquele, justificada pela sua “honestidade” de
despojamento, contra as hipocrisias sociais condenatórias, livro que comentei
em “Anuário – Memórias Soltas”, de 1999.
Mas, a contrabalançar com esta
leitura psicológica da Marguerite Yourcenar, de prolongamento da insónia, a
leitura da página de Alberto Gonçalves – “Voar como o Jardel” – necessariamente
menos maçuda e plena de vivacidade crítica, na variedade dos casos observados,
na sensibilidade e argúcia da sua condenação irónica.
O do primeiro título (Notícias 12/4/15, Voar
como o Jardel, refere Costa
e sua passagem de testemunho da Câmara de Lisboa, para melhor servir a nação,
passeando-se pelo país, em promessas para provável PR, que ainda encontram eco
em ouvidos atentos, sintoma do nosso atraso, ao contrário do povo brasileiro, a
quem basta a informação de franqueza do candidato para o eleger, por muito que
posteriormente se prove que nada fez, como Jardel, que assim saiu, juntamente com
os seus acompanhantes da eleição, com a mesma presteza com que entrou, e sem
maçar ninguém com falsas promessas.
Menos hipócrita será, mas não vejo, contudo, como o
caso caricato não é igualmente sintoma de menor terceiromundismo ou menoridade
mental, brincando com a miséria alheia, física e psicológica-
Em “No princípio era a verba” insurge-se
contra o fotógrafo comunista brasileiro Sebastião Salgado que, em nome
dos bons sentimentos tem sido economicamente bem sucedido em exposições que lhe
permitiram singrar pelo capitalismo altruístico, ajudando, com os seus alertas
expositivos, os diferentes espécimes da fauna terráquea a sobreviver.
Finalmente,
é sobre Freitas do Amaral – “Um Cérebro” –
texto de uma ironia bem concebida contra alguém que também eu já admirara, nos
seus tempos de moderador das aflições, com a sua palavra de bom senso, sabedoria
e patriotismo e cujo percurso descambou pelo mesmo trilho por onde resvalaram
outros, apoiantes, verdadeiramente, de si próprios, mudando facilmente de
casaca, no enchimento dos seus próprios baús:
Voar como o Jardel
por ALBERTO GONÇALVES
Ao entregar democraticamente a Câmara Municipal de
Lisboa a um adjunto, António Costa declarou--se empenhado em, de agora em
diante, "servir Portugal e os portugueses". O Dr. Costa pode e deve
ser responsabilizado por muitas enormidades. Porém, esta não é nada original.
Nos modernos e esclarecidos tempos que correm, ainda não há político que evite
atoardas do género: todos fingem acreditar que as suas carreiras, ambições,
manhas e naturezas são exclusivamente dedicadas ao bem comum. A artimanha
mediria a altíssima conta em que tais espécimes se têm se de facto não medisse
a baixíssima conta em que têm o eleitorado.
A verdade é que os políticos dizem barbaridades assim
porque esperam, com certa propriedade, haver uma audiência para as ditas. Ao
contrário do que tantas vezes se refere, o problema das democracias, e da nossa
em particular, não é a descrença de inúmeros cidadãos na política: é a crença,
ou fé cega, de outros tantos. Bastante pior do que o cinismo é a ingenuidade
com que se continua a engolir patranhas evidentes, a aplaudi-las em comícios e
a legitimá-las nas urnas. Por incrível que pareça, há mesmo criaturas que levam
a sério a citada declaração de intenções do Dr. Costa (ou, insisto, de qualquer
um, incluindo os que simulam combater a hipocrisia dos políticos através de uma
bonita conversão à política). Em matéria de probabilidades teóricas, seria mais
verosímil a descoberta de pinguins em Marte ou de um tratado de oratória
assinado por Jorge Jesus. Não é o que acontece na prática.
O que acontece é este desgraçado estado de coisas: no
Portugal de 2015, uma percentagem demasiado significativa da população vota com
o entusiasmo e as ilusões de 1975. Sintoma de atraso? Sem dúvida. Puro Terceiro
Mundo? Não sei. No Brasil, que em princípio corresponderia melhor ao conceito,
abundam os candidatos vitoriosos a cargos públicos que já não acham necessário
recorrer às historietas do "serviço" à comunidade ou do
"espírito de missão" para acabar eleitos. Lá, com frequência, a
sinceridade basta à eleição.
Veja-se o caso de Mário Jardel, antigo futebolista
conhecido pelos golos e pelos assumidos excessos em matéria de narcóticos. Em
Outubro passado, concorreu a deputado do Rio Grande do Sul sob o único
pressuposto de que precisava de "manter a cabeça ocupada". A troco da
franqueza, 41 mil pessoas ofereceram-lhe o lugar, numa tocante demonstração de
maturidade cívica. Só isto bastaria para fazer do Sr. Jardel e respectivos
votantes exemplos a seguir. Mas a história não termina aqui: após dois meses na
assembleia estadual, nos quais nunca abriu a boca ou maçou o povo com a
apresentação de uma proposta, a cabeça voltou a desocupar-se, o Sr. Jardel
demitiu as dezenas de assessores e foi-se embora. Em suma, a perfeição. E uma
goleada aos nossos políticos, que
além de impostores nunca se calam e quase nunca desaparecem.
Quinta-feira,
9 de Abril
No princípio era a verba
Depois
de usar a fotografia na melhoria das condições de vida da humanidade, ou pelo
menos da parte da humanidade chamada Sebastião Salgado, Sebastião Salgado vai
salvar o planeta dos atentados cometidos pelos homens, espécie que, nas doutas
palavras do brasileiro ao Expresso, "não merece viver". Antes, eram
os retratos dos pobrezinhos; agora, os retratados são pinguins e tartarugas,
algumas vedetas da exposição Génesis, em Lisboa até Agosto.
É
isto o que distingue os eleitos. Um pelintra pega numa câmara e desata a fazer
selfies ou a capturar o repetitivo crepúsculo. Um artista emprega a geringonça
ao serviço da arte, mais especificamente a arte da denúncia. Não importa se o
alvo são as consequências do capitalismo na existência dos homens ou na
perturbação da natureza: com a mesma coerência que o leva a lutar pela
dignidade dos povos enquanto acarinha o comunismo, ou a cirandar pela Terra em
aviões um bocadinho poluentes a fim de criticar a poluição, o que importa ao
Sr. Salgado é ganhar uma fortuna a apontar o dedo aos desvarios da cobiça. O Sr.
Salgado é um doce.
Sexta-feira,
10 de Abril
Um Cérebro
É
sempre recompensador ver criticadas as "ideias malucas" (cito) da
Sra. Merkel no Encontro Internacional de Causas e Valores da Humanidade,
naturalmente realizado em Fafe. E é mais entusiasmante ainda quando o crítico
em causa dá pelo nome de Freitas do Amaral. De vez em quando, o emérito
professor sai das catacumbas solenes em que habita e emerge à superfície para
distribuir sabedoria entre os mortais. Em Fafe, combateu a sua Estalinegrado
particular e explicou que "a Europa está a caminho do precipício pela mão
da chanceler e daqueles que a apoiam", que "o neoliberalismo (?) é
uma ideia destituída de qualquer fundamento económico ou social" e que
"ou conseguimos travar essa caminhada para o abismo, voltar para trás,
repensar tudo a adotar políticas de crescimento, de emprego e de solidariedade
social ou ainda vamos assistir a uma grande tragédia". O facto de tão
astuto cérebro ainda não ser um dos 174 possíveis candidatos do PS às
"presidenciais" é um mistério. E quem diz do PS diz do POUS.»
Leituras domingueiras, para fugir tantas
vezes à sensaboria dos programas infindáveis de criminologia pátria ou
estrangeira, em termos de amplas reportagens noticiarísticas para o nosso
espanto. Como se, “entre todos os rumores do universo” o nosso mundo continuasse
confinado ao “rumor das saias de Elvira”, como já era no tempo de
Fradique Mendes.
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