Nunca consegui engraçar com o Nouveau
Roman que me pareceu antes uma escola de rebuscamento pedante, no artificioso
da ausência de uma intriga, rejeitada a favor de um discurso quantas vezes
desconexo, no acaso dos acessos da intelectualidade frásica e dos simbolismos
apetecidos, o homem convertido no insecto humano de que o Novo Teatro
igualmente se apoderaria, na equiparação dos seres e das coisas, numa filosofia
de negação das regras preconceituosas dos clássicos, por conta do absurdo
existencial. Técnica para intelectuais que se revêem na especificidade dos seus
espíritos de alto coturno, como se dizia a respeito da tragédia grega, cujos
actores calçavam sandálias altas para melhor expressarem, no corpo alteado, a
dignidade dos heróis mitológicos, que eles protagonizavam. Também por isso
nunca comi caracóis, por não engraçar com eles, mesmo sem os provar, por muito
que mos gabem, como petisco excelente.
Com os filmes de Manoel de Oliveira,
que mal conheço, contudo, por um fenómeno de sonolificência, como aquela de que
fala o Eça na sua carta a Ramalho a respeito do Primo Basílio – segundo ele, “uma
obra falsa, ridícula, afectada, disforme, piegas e papoilosa, isto é, tendo a
propriedade da papoila - sonolificente.” - (Modéstias de Eça, é claro, mas
também uma consciência sã das suas limitações relativamente aos mestres da
literatura que o influenciaram a ele, e a quem soube reconhecer a superioridade
de efabulações transmitindo a vida em traços fundos) – com os tais filmes,
repito, passa-se idêntico repúdio. Mas o meu estado, quase direi de catalepsia,
na tentativa de levar ao fim qualquer peregrinação pelos filmes de Oliveira e
logo estacando no início, as pálpebras descaídas de sono, tal como sucedeu à
malfadada Branca de Neve, com a maçã envenenada da madrasta, que felizmente só
lhe ficou entalada na garganta, e pôde ser desentalada logo que o príncipe a
beijou, assim a ressuscitando. Bem melhor destino do que aconteceria com a Bela
que se picou no fuso, por conta da fada má, e que teve que esperar um século na
floresta até ao ósculo despertador do príncipe, certamente que já por via do
défice aristocrático, as democracias dando os primeiros passos na refundição
social.
Quanto à minha alergia aos filmes de
Manoel de Oliveira, exceptuando o Aniki-Bobó sobre a infância da nossa
ternura, não julgo que, por muito que eu possa ser criticada na minha
ignorância real a respeito dos outros filmes do meu descontentamento, hibernoso
agora, mas também dos tempos primaveris de outrora, não julgo, repito, que um
conhecimento menos ensonado modificasse o conceito que sempre me mereceram os
tais filmes pateticamente xaroposos, a cujo autor provavelmente a idade avançada,
juntamente com a consagração exterior – talvez por igual motivo etário - fizeram ir lesando os cofres dum Estado
temeroso de desfeitear o ancião do nosso respeito, que no fundo se riu sempre
de nós, brincando aos filmes.
Só um filme - entre tantas obras
primas cinematográficas, para justificar, como confronto, estes dizeres da
minha indignação: “Casablanca” – um filme tão real quanto de ficção - que
explora sobriamente paixões e amizades, aparências cínicas encobrindo grandeza
de sentimentos, revoltas e patriotismos, ciúmes, engano e dedicações, num
contexto de guerra, de medo, e de coragem. Vários espaços – Paris, Casablanca,
o avião que parte para a América, por Lisboa, nobres sacrifícios e gestos
ousados a merecer fuzilamento, salvos por inesperados gestos de amizade. E uma
canção de saudade – (“As time goes bye”)
- sobre os amores verdadeiros do tempo que passou e aparentemente mudou. E
personagens representadas por gente bonita, capaz de desempenhar os seus papéis
com tanta autenticidade… Um filme da grandeza humana criadora.
Vêm estes considerandos a propósito de
diversas artigos no Jornal Público que, na sexta feira, 13 de Abril de 2015,
prestou homenagem póstuma a Manoel de Oliveira, em páginas de escrita laudatória,
frisando a sua longevidade de par com o seu génio de cineasta, que houve quem
comparasse a Pessoa, apesar das bilheteiras vazias a contestar-lhe o génio,
servindo em todo o caso para as classes intelectuais se repoltrearem nas suas
análises feitas de preciosidades linguísticas mas sem descrição objectiva, reconhecendo
quanto o cinema de Manoel de Oliveira é isso mesmo que não se atrevem a
revelar: indescritível.
Um comentário:
De Henrique Salles da Fonseca a 19 de Abril de 2015 às 10:05
Ler a Sra. professora Berta Brás é sempre proveitoso, como aula de português, e criativo, como maneira inteligente e sutil de criticar. Os caracóis também não me são apetecíveis, como obras de muitos autores modernos que acham que ser enrolados ou prolixos é sinal de alta cultura! A simplicidade, objetividade e clareza são as melhores maneiras de transmitir um recado.
Maria Eduarda Fagundes
responder a comentário | discussão
De Henrique Salles da Fonseca a 19 de Abril de 2015 às 14:53
É sempre bom ler, de pessoas que se estimam - e mesmo de outras que se desconhecem - elogios à nossa pessoa, que não caímos no mau gosto da falsa modéstia de achar infundados. Por isso agradeço à Drª Maria Eduarda Fagundes o seu comentário de apreço e de corroboração.
Berta Brás
responder a comentário | início da discussão
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