Leio do texto de Vasco Pulido Valente - “Basta o que basta”- (Público de 5/4/15) sobre os efeitos da democratização do
ensino na destruição dos valores culturais pela distribuição da cultura, ou
seja, dos diplomas que a comprovassem, às várias camadas demográficas no acaso
das admissões sem critério selectivo – exames dando lugar a passagens
administrativas, primeiro, e, a seguir, muitas outras anomalias que o “deixai
vir a mim as criancinhas” benfazejo das camadas revolucionárias destruidoras da
pátria favoreceu em novos ideais de reconstrução pelo nivelamento social, no
propósito de elevação dos antes desfavorecidos e afundamento dos das
oportunidades anteriores. Tudo se foi recompondo, é certo, os PRECS nunca são
eternos – como tudo o mais, de resto – mas a poeira levantada foi bastante e
petrificou mesmo, para conveniência de muitos que dela se aproveitaram para singrar
mais rapidamente, de acordo com as ambições e planeamentos de vida que, segundo
o provérbio, pertence aos a quem não custa porque sabem viver.
E aqui estamos, com muitas mazelas do calibre das que
historia Vasco Pulido Valente no seu “Basta
o que basta”, entre as quais a
fundação de Universidades Privadas, mais interessadas nos negócios interinos do
que em postura honestamente educativa. E assim chega ao caso das miseráveis
praxes, que não são de modo algum académicas, - se é que alguma vez as houve, na
palhaçada infantil terminando num mascarado proteccionismo de veteranos, a
troco de ajudas económicas dos respectivos caloiros protegidos, que já Verney
condenara, no século XVIII. Nunca como hoje, contudo, em que as praxes parece
corresponderem antes aos propósitos maléficos dos tais sem freio que matam
vidas e destroem memórias em pedra de civilizações de milhares de anos,
gratuitamente, numa provocação animal que as televisões captam, sempre no sítio
certo e no momento certo para as denunciar. De facto, tragédias como a do Meco
parecem antes corresponder a práticas criminosas nas tais praxes, que tanto responsabilizam
os pretensos estudantes, como as universidades indiferentes, como as famílias
desconhecedoras da gravidade delas, meras graças inocentes dos seus futuros
doutores.
Igualmente severo e desesperadamente crítico, o texto
de João Miguel Tavares «Os
descamisados doutorados», (Público,
9/4/15), com mais uma achega às políticas educativas favorecedoras
de doutoramentos sem conta nem medida – sem peso, certamente que também não –
proporcionando um aumento catastrófico de desemprego jovem a acrescentar à
tragédia do desemprego adulto, num país sem escoamento de quadros nem
capacidade económica, reduzido que está à sua austeridade, tão satirizada pelos
habituais “poetas” satíricos das boas intenções civilizacionais. Um artigo de
uma ironia sem ilusões, de uma revolta igualmente sem ilusão. Admirável, por
isso, na tentativa do alertar das consciências, tal como o anterior.
O país permanecerá vivo enquanto houver consciências
críticas da demagogia interesseira. É a nossa esperança.
«Basta o que basta»
Vasco Pulido Valente
«Tudo
começou com o prof. Veiga Simão, ministro de Marcelo Caetano e de Mário Soares,
que foi o primeiro promotor da chamada “democratização” do ensino. Como se
calculará, a “democratização do ensino” é, em si própria, uma política justa e
necessária. Mas Veiga Simão entendeu que a melhor maneira de a executar
consistia em abrir as portas ao maior número de estudantes possível, sem
qualquer exigência académica ou material.
Na
Universidade, para falar só dela, meteu milhares de adolescentes em edifícios
caducos do século XVIII ou XIX, que já tinham pertencido à Igreja, e que a I
República adaptara à mais nobre função de espalhar as “luzes” entre o povo (e a
classe média) que o “jesuitismo” deformara; o ISE, por exemplo, agora ISEG,
nasceu assim no convento do Quelhas.
Professores
quase não havia e os que havia passeavam o seu espanto e a sua angústia pelo
meio do caos. A agitação política cresceu até 1976 e mesmo daí em diante não aprovar
um aluno com 18 ou 19, como ele se achava com direito, era contribuir para uma
“sociedade de classes”, ditatorial e exploradora. Perante esta catástrofe e a
absoluta falta de espaço físico para acomodar a elite da democracia, o Estado
decidiu permitir “universidades privadas” sob forma de cooperativas. Não vale a
pena entrar aqui na história pouco edificante dessas putativas universidades.
Basta dizer que não existia, nem podia existir, entre elas e a verdadeira coisa
a mais leve semelhança. As “privadas” não passavam de um negócio, em que a
produção e a transmissão de ciência não ocupavam lugar e em que a educação não
fazia parte dos fins gerais da empresa.
Como
sempre sucede em Portugal, depois de um “escândalo” com um ministro, embora o
escândalo fosse há anos público e notório, o prof. Nuno Crato mandou abrir um
inquérito à Universidade Lusófona. E esse inquérito apurou que em 152 casos –
um número extraordinário – os diplomas daquela augusta casa não deviam ser
considerados válidos, por erro na avaliação de “equivalências” várias. Sobre
isto, que deixa ver como funciona e para que serve a “Lusófona”, cresceram e
floresceram as “praxes” que levaram aos seis mortos da praia do Meco, com
absoluta ignorância da gente em posições de autoridade, a quem incumbia
garantir a saúde e a segurança das crianças (porque eram crianças) que lhes
tinham confiado. O prof. Crato devia fechar imediatamente a Lusófona e entregar
o caso à Procuradoria-Geral da República. Basta o que basta. Principalmente
para um Governo que não se preocupou de mais com a observância da lei e a limpeza cívica.
Os descamisados doutorados
João Miguel Tavares
09/04/2015
Nem
por acaso: enquanto eu andava entretido a debater a qualidade “científica” do
Observatório sobre Crises e Alternativas e as peculiaridades ideológicas do
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o presidente da Fundação
para a Ciência e Tecnologia, Miguel Seabra, apresentava a sua demissão, após um
desgraçadíssimo mandato.
Ora,
a FCT e a ciência social ao estilo CES – que a sua própria direcção classifica
como (juro) “ciência social crítica” ou “ciência cidadã” – estão ligadas por um
cordão umbilical que diz muito acerca das debilidades estruturais deste país e
do perigo da aposta acrítica na “qualificação”, o cavalo favorito de António
Costa e dos governos socialistas.
Dir-me-ão:
mas então não é tão bonito investir na educação, na formação, na qualificação,
e em outras palavras acabadas em “ão” que enchem a boca e o coração? É, é. Só
que, quando juntamos 1) a política de doutoramentos e pós-doutoramentos criada
por Mariano Gago e patrocinada pela FCT; 2) as limitações e a falta de
competitividade da economia portuguesa; e 3) a chegada em força da austeridade
e o aumento dramático do desemprego jovem; o resultado deste cocktail mortífero
só pode naturalmente ser um: a criação de um exército de descamisados
doutorados, completamente dependentes da boa-venturança do senhor professor que
dá uma ajudinha para conseguir a bolsa do pós-doc, e que chegam aos 35 e aos 40
anos numa situação lastimável, sem forma de ingressar nos quadros das
universidades (que estão fechados e cheios de gente menos competente do que eles),
sem uma vida profissional estável e com excesso de qualificações para os
empregos disponíveis.
Os
números não mentem (enfim: às vezes mentem, se torturados por cientistas
cidadãos). Em 1997, ano em que a FCT foi criada, doutoraram-se 579 portugueses.
Em 2013 (dados Pordata), doutoraram-se 2668. Os doutorados quintuplicaram numa
década e meia. Quando se olha para o gráfico dos doutoramentos anuais desde
1970, a evolução a partir do final dos anos 90 é uma subida de montanha de
primeira categoria. Ou seja, enquanto em termos económicos o país afocinhava,
naquela que já é conhecida como a “década perdida”, as qualificações dos
portugueses não paravam de subir. Seria fantástico, em termos de
competitividade, se – e este é um grande “se” – o sector privado conseguisse
absorver um quinhão significativo dos doutorados. Infelizmente, não consegue.
Um
estudo de 2009 sobre a situação profissional dos doutorados em Portugal
indicava a existência de 17.010 a trabalhar em investigação e desenvolvimento.
Mas sabem quantos é que o faziam fora das universidades, em empresas privadas?
196. Ou seja, pouco mais de 1% do total. É esta a força da investigação e do
desenvolvimento em Portugal. E se olharmos para o domínio específico das
ciências sociais, não é difícil adivinhar o seu credo da última década: “fora
da universidade (ou do laboratório associado) não há salvação”.
Reparem
como sou moderado: por um lado, não gosto nada do que o CES faz; por outro,
compreendo que o queira fazer. Boaventura Sousa Santos, José Manuel Pureza e
Carvalho da Silva têm um batalhão de doutorados descamisados, frustrados e
politizados às suas ordens, que lhes foram oferecidos por Mariano Gago, uma
economia débil e um país intervencionado. Há que entendê-los: a tentação de
criar as condições para que um dia possa nascer um Pablo Iglesias do Mondego é
demasiado grande. E é para isso que eles trabalham. “Cientificamente”.
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