Um artigo de João César das Neves publicado no “A Bem da
Nação” que me fez pensar em quanto somos, de facto, indisciplinados e pouco
afeitos à obediência, mesmo que sintamos que as leis impostas não são tão absurdas
assim:
«A LEI DOS POBRES»
«Em tempos,
a lei ocupava-se de culpados e criminosos; agora trata sobretudo de inocentes
em actividades pacíficas, subitamente fora da lei. Os motivos dessas proibições
e castigos são sempre excelentes; o resultado é perda de liberdade.
Exemplo
recente são os sacos de plástico, passando de banalidade a multa. De
repente, transformou-se em transgressão grave, certamente por razões
ponderosas, aliás longamente escalpelizadas na imprensa. É impressionante o
esforço legislativo, inspectivo e produtivo envolvido nesta grave questão que,
até há semanas, era corrente e vulgar. Nunca o humilde saquinho julgou merecer
tanta notoriedade.
Antes
desta moda eram outros os comportamentos ordinários que mereciam a atenção das
autoridades. Elas já nos tinham protegido dos bandidos que nos queriam
assassinar com brindes de bolo-rei, gasolina com chumbo ou sabonetes sólidos e
toalhas de pano em casas de banho públicas. Se alguém perguntar, por exemplo, o
que faziam os nossos vigilantes legisladores enquanto se desenrolavam os sérios
casos de corrupção e fraude financeira agora denunciados, a resposta é que,
além de decretarem a ortografia, reprovando alunos que escrevam como sempre,
andavam a erradicar os terríveis terroristas conhecidos como fumadores ou bebés
causadores de incómodos socioeconómicos. Estes últimos foram mesmo condenados à
morte, pena alegadamente abolida em 1867.
Felizmente,
hoje estamos devidamente defendidos de algumas graves práticas criminosas como,
por exemplo, guiar um carro. As centenas de exigências, imposições e
regulamentos a cumprir só para ter automóvel, mesmo que não se atreva a andar
com ele, mostram bem a severidade dessa sinistra actividade. Ultimamente ficou
mesmo proibido de circular em certas zonas de Lisboa, talvez devido a horrores
inconfessáveis praticados pelos motoristas com carros velhos, que por isso
perdem os direitos mais básicos de cidadania: podem passar, mas a pé.
Imagine
que alguém ousa vender produtos alimentares. Nada mais perigoso, nocivo e
prejudicial do que esse terrível desplante. Ter um restaurante ou café é
hoje um descaramento mais severamente vigiado, regulado e castigado do que a
maior parte dos ladrões ou meliantes. Se os comerciantes são perseguidos,
os produtores ainda serão tolerados, desde que não se atrevam a vender fruta,
legumes, lacticínios e outros produtos perigosos sem as devidas cautelas. Se
não se sujeitarem a inúmeras regras, processos, custos e licenças, tais
substâncias só servem para consumo próprio ou ofertas a amigos. É mais
complicado vender pão do que pornografia ou armas de fogo.
Se
as pessoas que possuem essas comidas irregulares as oferecerem a instituições
de beneficência, aumentam ainda mais a gravidade da sua transgressão. Porque
ser pobre é, também ela, uma actividade perigosa e, portanto, fortemente
limitada por lei. Nos lares de idosos as pessoas podem passar fome, mas não ter
produtos irregularmente embalados ou fora de prazo; podem dormir na rua, mas
não em quartos sem as dimensões estabelecidas e reguladas. Felizmente que essas
inspecções não se estendem aos bairros de lata, onde os infelizes ainda podem
viver em paz... até à primeira rusga.
Este
último elemento traz uma pista para as razões desta profusão legal sobre a vida
comum: todos os regulamentos referidos são exigências de rico, requintes de
gente abastada. Nunca um desgraçado se lembraria de tais coisas, que aliás o
prejudicam gravemente. Só os pobres deixaram de desejar um carro, que agora só
pode ser novo e cheio de extras, do seguro ao colete reflector. São as suas
actividades as mais perseguidas, da agricultura de quintal ao comércio de rua,
que, pouco a pouco, a lei se foi lembrando de proibir ou tornar proibitivo.
Ninguém usa mais sacos de plástico gratuitos do que os miseráveis, para quem
tem imensas utilizações; o seu desaparecimento complica-lhes gravemente a vida.
O
Estado serve o bem comum. Assim nasce, em geral após uma revolução contra um
regime decadente. À medida que o tempo passa, porém, os poderes públicos vão
sendo capturados por interesses. Os interesses não são maus; de facto todas as
regras e legislações referidas e outras afins têm excelentes razões de ser. O
defeito dos interesses é serem particulares. Quando o Estado cede a uma
finalidade específica, gera custos noutros lados, que a perda do sentido
comunitário impede de ver. As vítimas são sempre os fracos. Assim se instala a
decadência, cheia de excelentes razões, que terminará em nova revolução, pois o
regime corrompeu-se sem notar.»
João César das Neves
Apesar de reconhecer
a pertinência de muita da sua ironia, o meu comentário foi impaciente, e talvez
entaramelado:
Excelente texto, de um humor
corrosivo. Mas fica-se a pensar que, tão justos queremos ser, tão protectores dos
pobres ou dos que trabalham , que assestamos sempre as nossas setas sobre os
fabricantes das leis, os governos que as decretaram. Preso por ter e por não
ter cão, o que é absurdo. Sempre ouvi dizer que gastávamos demasiados sacos de plástico
e que estes eram uma fonte de poluição e até de morte da fauna marinha. E isso
é um crime de grande dimensão, além de que depressa nos habituamos aos bons
hábitos de poupança, sobretudo se acharmos que o fazemos para o bem comum, que
é uma lei de civismo, apenas. Mas não resistimos à demagogia.
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