Dois artigos de Vasco Pulido
Valente, do Público de 22 e 28 de Fevereiro – “O silêncio da miséria “ e “O
que tem de ser…” giram à volta de António Costa e da sua oratória política
de ambiguidade, que apelam ao paralelismo com o Portugal de oitocentos, - tão mordazmente
atacado nas “Farpas” queirosianas (/”Uma Campanha Alegre”). “A paralisia
geral das forças revolucionárias não permitiam mais do que divergências
retóricas”, o objectivo máximo de quem governava centrava-se nas tentativas
de salvação da pátria, segundo os conceitos do liberalismo, que repudiavam o
absolutismo miguelista. Após o cabralismo, e como eco da “revolução industrial
europeia”, de tentativas de modernização em reformas materiais de importação, e
débito consequente ao estrangeiro, a necessidade de controle – tal como hoje –
não permitia na governação mais do que um rotativismo das facções do centro.
Como hoje.
Daí o paralelismo de actuações
de governos mais responsáveis, daí que António Costa não possa senão utilizar,
nestas alturas que precedem as eleições, senão um discurso de ambiguidade, sem
falsas promessas, por vezes descaindo-se em similitude de conceitos com o
governo, na necessidade de não pôr o pé em ramo verde, para não cair da árvore,
antes de a ela subir. O certo é que temos o destino traçado.
Os
artigos de Vasco Pulido Valente:
O
silêncio da miséria
António Costa é acusado de não dizer nada e, pior ainda, de
não ter nada a dizer. O que o põe na melhor e mais velha tradição portuguesa,
desde que por cá se inaugurou um regime representativo ou, pelo menos, qualquer
coisa parecida, com um parlamento e alguns (poucos) direitos do cidadão.
Mesmo
nesses tempos remotos de 1820, o grande objectivo político era impor ou criar a
unidade das facções, que tinham aparecido em cena com a liberdade, de resto
limitada e efémera, do novo regime. Não para garantir uma defesa sólida contra
D. Miguel, mas porque não se via e, de facto, não havia razão para que não
houvesse um único partido. Só existiam divisões tácticas e até essas sem grande
consequência. A paralisia geral das forças revolucionárias, e a sua fraqueza,
não permitiam mais do que divergências retóricas. E, às vezes, nem isso.
Depois
da guerra civil de 1832-1834 (ou, mais precisamente, de 1826-1834), quando a
Monarquia limitada da Carta Constitucional se instalou e o Infante foi expulso
de Portugal, a pressão para que os políticos se reconciliassem e trabalhassem
juntos para a salvação da Pátria nunca abrandou, nem sequer quando o
radicalismo tomou conta de Lisboa e parte da província. A Constituição de 1838
copiava a Carta e a tendência centrípeta do país político levou rapidamente ao
regresso da Carta e a outra tentativa de unificação política, o famoso
“cabralismo”, que durou o que podia durar com vários distúrbios militares e uma
guerra civil pelo meio. Tudo acabou em 1850-51 com a Regeneração, ou seja, com
a aliança dos que a si próprios se consideravam “empíricos” e sensatos.
Daí
em diante a paz prevaleceu. Por um lado, Portugal estava na miséria. E, por
outro, a dívida, já enorme, não autorizava veleidades de uma mudança séria. Os governos
pagavam os juros, pagavam aos funcionários e pediam dinheiro em Inglaterra e
França para “melhoramentos materiais” (estradas, linhas de comboio e portos).
Fora isto, não faziam mais nada. As reformas eram caras e aumentavam sempre o
número de funcionários. Os credores, que participavam nos “melhoramentos
materiais”, não financiavam o “progresso” social e político português, com que
não ganhavam um tostão. Pelo contrário, já nessa altura queriam que o Estado
reduzisse a despesa e, por exemplo, amalgamasse os municípios. “Gerir a dívida”
consistia muito simplesmente em explicar aos credores o que Portugal aguentava,
ou não aguentava, e em impor aos portugueses o que os credores mandavam. Neste
aperto, a melhor saída era não abrir a boca e não mexer um dedo. António Costa
percebeu a inevitabilidade desta receita. E não se tem dado mal. Os socialistas
que gritem por aí, ele não se compromete para não se desdizer; e conservar a
esperança de que um belo dia (de nevoeiro, com certeza) vai aliviar a nossa triste
sorte.
«O
que tem de ser…»
Quem
ler, ou reler, hoje As Farpas de Eça de Queiroz, publicadas depois com o título
de Uma Campanha Alegre, nota imediatamente que ele quase só trata dos grandes
problemas da política portuguesa: a questão da Fazenda (das Finanças, como se
diria agora), ou seja, da dívida e do défice, e a questão dos partidos, da sua
legitimidade, vacuidade e semelhança.
A
“questão da Fazenda” passa de Governo para Governo e de legislatura para
legislatura, sem nunca se resolver e piorando sempre. Os partidos têm
ostensivamente os mesmos princípios, mas dizem e fazem uma coisa na oposição e
outra no poder. Nós rimos, mas vamos percebendo que a “questão da Fazenda” está
para ficar e determina tudo; e que os partidos se confundem e repetem exactamente
por causa da sua irremediável impotência.
Isto
em 1871-2. Em 2015, entrámos no mesmo caminho, que de certeza irá durar umas
dezenas de anos. Basta olhar para o caso exemplar do supostamente brilhante
António Costa. Aclamado há três meses como salvador da Pátria, já anda, pobre
homem, pelas notórias ruas da amargura. Porquê? Primeiro, porque se recusou a
prometer fosse o que fosse de preciso e concreto, com o argumento que Portugal
dependia dos credores e que não valia a pena decidir nada sem o acordo prévio
dos credores (o Syriza acabava de lhe dar uma lição ardente). E, segundo,
porque explicou a um grupo de investidores chineses que Portugal melhorara de
2011 para cá, compreendendo a tempo que, no essencial, será obrigado a copiar
Passos Coelho. Ainda na véspera, a Comissão Europeia, embora com um elogio
prévio à obediência indígena, anunciara que Portugal continuava com
“desequilíbrios macroeconómicos” que impunham uma “vigilância” apertada.
Claro
que, nestas circunstâncias, o PS de António Costa não subiu nas sondagens muito
mais do que o PS de Seguro; e que não conseguiu abrir entre si e a coligação
Portas-Passos Coelho uma distância significativa. O bom do eleitor, não sendo
tão admiravelmente estúpido como os radicais da esquerda, não voltará a
acreditar em parlapatices. Nem é de esperar que se deixe comover pela
indignação “moral” da classe “dirigente” (que não vive mal) com as várias
manifestações da sua miséria. Pelo contrário, é de esperar que lhe repugnem as
dores desavergonhadamente teatrais que por ele tomam comentadores políticos de
vária pena e espécie. Quando as coisas se complicam, a discrição paga.
Eis alguns passos retirados de “Uma Campanha Alegre” de
Eça de Queirós, que, embora caricaturalmente, são bem reveladores da nossa
responsabilidade como povo de medíocre ambição cultural e de realização
prática, que nos permitisse arrancar-nos ao marasmo económico, causa da nossa
penúria, em que até mesmo a eloquência se banaliza na mesquinhez dos ataques.
«O orgulho da política nacional é ser
doutrinária. Ser doutrinário é ser um tanto ou quanto de todos os partidos; é
ter deles por consequência o mínimo; é não ser de partido nenhum – ou ser cada
um apenas do partido do seu egoísmo.
De modo que todos estes monárquicos, bem
no íntimo, votariam por uma república. Todos estes republicanos terminam por
concordar que é indispensável a monarquia!
Quer-se geralmente o prestígio da realeza
e a majestade do poder; mas deseja-se que el-Rei se exiba numa sege de aluguel
e que Sua Majestade a Rainha não tenha mais que dois pares de botinas.
Chega-se a admirar Luís Blanc, mas
prefere-se a tudo isso uma terra de semeadura obrigada à côngrua para o pároco
e aos tantos por cento para a viação. A burguesia invejosa e desempregada fala
na federação, na república federativa, na extinção do funcionalismo, na emancipação
das classes operárias; mas entende que o País pode esperar por estes benefícios
todos, se no entanto lhe derem a ela lugares de governadores civis ou de chefes
de secretaria. Uma plebe ardente fala em beber o sangue da nobreza; mas ficaria
satisfeita se a nobreza, em vez de oferecer a veia, mandasse abrir Cartaxo.
Tanto se conciliam todos! É assim que o
egoísmo domina. Cada um se abaixa avidamente sobre o seu prato.
– Mas tudo se equilibra, diz a opinião
constitucional, não há comoções, não há lutas!
Sim, tudo se equilibra – no desprezo, por
desprezo.
Nas sociedades corrompidas a ordem chega
assim às vezes a reinar.
E a ordem pelo desdém. Outros diriam pela
imbecilidade!
Maio 1871
Há em Portugal quatro partidos: o partido histórico,
o regenerador, o reformista, e o constituinte. Há ainda outros, mas anónimos,
conhecidos apenas de algumas famílias. Os quatro partidos oficiais, com jornal
e porta para a rua, vivem num perpétuo antagonismo, irreconciliáveis, latindo
ardentemente uns contra os outros de dentro dos seus artigos de fundo. Tem-se
tentado uma pacificação, uma união. Impossível! eles só possuem de comum a lama
do Chiado que todos pisam e a Arcada que a todos cobre. Quais são as irritadas
divergências de princípios que os separam? – Vejamos:
O partido regenerador é constitucional,
monárquico, intimamente monárquico, e lembra nos seus jornais a necessidade da
economia.
O partido histórico é constitucional,
imensamente monárquico, e prova irrefutavelmente a urgência da economia.
O partido constituinte é constitucional,
monárquico, e dá subida atenção à economia.
O partido reformista é monárquico, é
constitucional, e doidinho pela economia!
Todos quatro são católicos,
Todos quatro são centralizadores,
Todos quatro têm o mesmo afecto à ordem,
Todos quatro querem o progresso, e citam a
Bélgica,
Todos quatro estimam a liberdade.
Quais são então as desinteligências? –
Profundas! Assim, por exemplo, a ideia de liberdade entendem-na de diversos
modos.
O partido histórico diz gravemente que é
necessário respeitar as Liberdades Públicas. O partido regenerador nega, nega
numa divergência resoluta, provando com abundância de argumentos que o que se
deve respeitar são – as Públicas Liberdades.
A conflagração é manifesta!
Na acção governamental as dissensões são
perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto. Porque, não há remédio,
é necessário pagar a religião, o exército, a centralização, a lista civil, a
diplomacia... – Propõe um imposto.
«Caminhamos para uma ruína! – exclama o
Presidente do Conselho. – O défice cresce! O País está pobre! A única maneira
de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc...»
Mas então o partido regenerador, que está
na oposição, brame de desespero, reúne o seu centro. As faces luzem de suor, os
cabelos pintados destingem-se de agonia, e cada um alarga o colarinho na
atitude de um homem que vê desmoronar-se a Pátria!
– Como assim! – exclamam todos – mais
impostos!?
E então contra o imposto escrevem-se
artigos, elaboram-se discursos, tramam-se votações! Por toda a Lisboa rodam
carruagens de aluguel, levando, a 300 réis por corrida, inimigos do imposto!
Prepara-se o cheque ao ministério histórico... Zás! cai o ministério histórico!
E ao outro dia, o partido regenerador, no
poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. Esta mudança alterou tudo: os
fundos desceram mais, as transacções diminuíram mais, a opinião descreu mais, a
moralidade pública abateu mais – mas finalmente caiu aquele ministério
desorganizador que concebera o imposto, e está tudo confiado, esperando.
Abre a sessão parlamentar. O novo
ministério regenerador vai falar.
Os senhores taquígrafos aparam as suas
penas velozes. O telégrafo está vibrante de impaciência, para comunicar aos
governadores civis e aos coronéis a regeneração da Pátria. Os senhores correios
de secretaria têm os seus corcéis selados!
Porque, enfim, o ministério regenerador
vai dizer o seu programa, e todo o mundo se assoa com alegria e esperança!
– Tem a palavra o Sr. Presidente do
Conselho.
– O novo presidente: «Um ministério
nefasto (apoiado, apoiado! – exclama a maioria histórica da véspera) caiu
perante a reprovação do País inteiro. Porque, Senhor Presidente, o País está
desorganizado, é necessário restaurar o crédito. E a única maneira de nos
salvarmos...»
Murmúrios. Vozes: Ouçam! ouçam!
«...É por isso que eu peço que entre já em
discussão... (atenção ávida que faz palpitar debaixo dos fraques o coração da
maioria...) que entre em discussão – o imposto que temos a honra, etc. (apoiado!
apoiado!)»
E nessa noite reúne-se o centro histórico,
ontem no ministério, hoje na oposição.
Todos estão lúgubres.
– «Meus senhores – diz o presidente, com
voz cava. – O País está perdido! O ministério regenerador ainda ontem subiu ao
poder, e doze horas depois já entra pelo caminho da anarquia e da opressão
propondo um imposto! Empreguemos todas as nossas forças em poupar o País a esta
última desgraça! – Guerra ao imposto!...»
Não, não! com divergências tão profundas é
impossível a conciliação dos partidos!» »
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