quarta-feira, 20 de maio de 2015

«Quousque tandem abutere…»




Os textos seguintes – o de João Pereira Coutinho introduzido por um de António Pedro Barroso - foram-me enviados por email, quase em simultâneo, por meu filho Ricardo Lacerda (Lisboa, 17 h37) e pela minha colega Conceição Sarmento  (Coimbra, 18h12).
Deduzo que é um assunto que lhes interessa, como a tantas mais pessoas, que não sei se poderão, a partir de 13 de Maio, continuar a alegar a sua “decisão pessoal” de escrever contrariando as regras do Acordo. A decisão pessoal de quem impôs a data definitiva do abastardamento da língua – 13 de Maio – deve ter a ver com convicções religiosas dos crentes em milagres, eles próprios autores de novo milagre perpetrado toscamente, pastorinhos do tal abastardamento tacanhamente “simplificador” da língua que não é só deles, mas que uma série de gente aderente ao milagre e com poder para o fazer propalar, faz explodir em foguetes de glória, não envergonhados com a grosseria, que gente ilustre provou ser absurda.
É este o país que temos, e estes dizeres inúteis não passarão de resmungos vãos e gratuitos, para as pessoas de bem que passivamente seguem na corrente, segundo os ventos da sua conveniência e das regras da sua obediência imposta.

Os textos do email:

Assunto: AGORA SIM: Brilhante artigo na folha de São Paulo sobre "O Acordo".
 No dia 11 de maio de 2015 às 21:45, António Pedro Barroso <maestro.pb@gmail.com> escreveu:

 Amigos
não me importa a origem - pois, se for preciso, neste ponto, se calhar, serei cripto nacionalista, tal como o autor que aqui repasso.
Mas não creio que se pegue. Quem trabalha com a Língua Portuguesa, pura e simplesmente ganha-lhe amor. É uma língua antiga, sensível, expressiva, abrangente, riquíssima no vocabulário e falada em todos os Continentes do planeta! Devia haver respeito. 
A unificação pretendida aliás, saiu completamente gorada e é gozada por filólogos de todos os sotaques e horizontes.
Esta imposição ditatorial que se aproxima é um atentado à nossa Literatura, aos nossos autores, à nossa sonoridade, e à nossa capacidade de comunicar não só no mundo lusófono, mas com todo o mundo.
Nenhuma língua se impôs ou eliminou por decreto - evolui, desdobra-se, radica-se, adapta-se ao longo dos séculos mas sem perder a matriz, o fundamento semântico, o sentido, as referências e a razão histórica. 
É, portanto, imbecil. É culturalmente assassino o que estão a querer impor a partir de 13 de Maio - um desacordo ortográfico total!
Por isso me revolto e por isso subscrevo.

“Naufragar é preciso?”
Texto de João Pereira Coutinho (escritor português)
PUBLICADO NA FOLHA DE SÃO PAULO
(10 JANEIRO 2012)
Começa a ser penoso para mim ler a imprensa portuguesa. Não falo da qualidade dos textos. Falo da ortografia deles. Que português é esse?
Quem tomou de assalto a língua portuguesa (de Portugal) e a transformou numa versão abastardada da língua portuguesa (do Brasil)?
A sensação que tenho é que estive em coma profundo durante meses, ou anos. E, quando acordei, habitava já um planeta novo, onde as regras ortográficas que aprendi na escola foram destroçadas por vândalos extraterrestres que decidiram unilateralmente como devem escrever os portugueses.
Eis o Acordo Ortográfico, plenamente em vigor. Não aderi a ele: nesta Folha, entendo que a ortografia deve obedecer aos critérios do Brasil.
Sou um convidado da casa e nenhum convidado começa a dar ordens aos seus anfitriões sobre o lugar das pratas e a moldura dos quadros.
Questão de educação.
Em Portugal é outra história. E não deixa de ser hilariante a quantidade de articulistas que, no final dos seus textos, fazem uma declaração de princípios: “Por decisão do autor, o texto está escrito de acordo com a antiga ortografia”.
A esquizofrenia é total, e os jornais são hoje mantas de retalhos. Há notícias, entrevistas ou reportagens escritas de acordo com as novas regras. As crónicas e os textos de opinião, na sua maioria, seguem as regras antigas.
E depois existem zonas cinzentas, onde já ninguém sabe como escrever e mistura tudo: a nova ortografia com a velha e até, em certos casos, uma ortografia imaginária.
A intenção dos pais do Acordo Ortográfico era unificar a língua.
Resultado: é o desacordo total com todo mundo a disparar para todos os lados. Como foi isso possível?
Foi possível por uma mistura de arrogância e analfabetismo. O Acordo Ortográfico começa como um típico produto da mentalidade racionalista, que sempre acreditou no poder de um decreto para alterar uma experiência histórica particular.
Acontece que a língua não se muda por decreto; ela é a decorrência de uma evolução cultural que confere aos seus falantes uma identidade própria e, mais importante, reconhecível para terceiros.
Respeito a grafia brasileira e a forma como o Brasil apagou as consoantes mudas de certas palavras (“ação”, “ótimo” etc.). E respeito porque gosto de as ler assim: quando encontro essas palavras, sinto o prazer cosmopolita de saber que a língua portuguesa navegou pelo Atlântico até chegar ao outro lado do mundo, onde vestiu bermuda e se apaixonou pela garota de Ipanema.
Não respeito quem me obriga a apagar essas consoantes porque acredita que a ortografia deve ser uma mera transcrição fonética. Isso não é apenas teoricamente discutível; é, sobretudo, uma aberração prática.
Tal como escrevi várias vezes, citando o poeta português Vasco Graça Moura, que tem estudado atentamente o problema, as consoantes mudas, para os portugueses, são uma pegada etimológica importante. Mas elas transportam também informação fonética, abrindo as vogais que as antecedem. O “c” de “acção” e o “p” de “óptimo” sinalizam uma correta pronúncia.
A unidade da língua não se faz por imposição de acordos ortográficos; faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os anglo-saxônicos, pela partilha da sua diversidade. E a melhor forma de partilhar uma língua passa pela sua literatura.
Não conheço nenhum brasileiro alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Fernando Pessoa na ortografia portuguesa. E também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira.
Infelizmente, conheço vários brasileiros e vários portugueses alfabetizados que sentem “desconforto” por não poderem comprar, em São Paulo ou em Lisboa, as edições correntes da literatura dos dois países a preços civilizados.
Aliás, se dúvidas houvesse sobre a falta de inteligência estratégica que persiste dos dois lados do Atlântico, onde não existe um mercado livreiro comum, bastaria citar o encerramento anunciado da livraria Camões, no Rio, que durante anos vendeu livros portugueses a leitores brasileiros.
De que servem acordos ortográficos delirantes e autoritários quando a língua naufraga sempre no meio do oceano?

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