Duas peças de teatro de capas
escurecidas pelo tempo, que me vêm dos anos 60 em África e que releio com mais
atenção: “Jacob e o Anjo” de José Régio, “Le Diable et le Bom-Dieu”
de Jean-Paul Sartre. Ambas peças de tese, a primeira aplicando o conceito
místico da luta do homem consigo próprio, nos seus medos e demónios, Jacob
terreno em desassossego permanente, vencedor por uma noite desse Anjo que
afinal o elevará, reconhecendo-lhe a força espiritual, quais Julião
Hospitaleiro ou o Santo Cristóvão levados para Deus por Cristo Redentor.
Também a peça de Sartre, publicada em
1951, (e sigo o texto da colecção “Le Livre de Poche” desse mesmo ano, da
Librairie Gallimard), explora o conceito, grato aos escritores existencialistas, do Bem e do Mal
equivalendo-se, num espaço de lutas, desafios e sofismas entre a maldade e a
procura da santidade, numa época de desabamento de estruturas e valores, como
esse da 2ª Guerra Mundial por que tinham passado os escritores do
existencialismo. Através do seu teatro, pôde Sartre difundir, de forma mais
acessível, a sua ideologia que tanto atraiu os jovens dessa geração e posteriores.
Um homem poderoso e sem escrúpulos,
Goetz, bastardo de casa senhorial, o maior guerreiro da Alemanha, no século XVI
da Reforma luterana, participa inicialmente nas lutas do povo, em Worms, luta
conduzida por seu irmão Conrad, contra o Arcebispo e a Igreja, traindo-os
seguidamente, matando o irmão, mas decidido a arrasar a cidade do Arcebispo,
por desafio a Deus e desejo de fazer o Mal, num desprezo total por tudo e todos.
Convencido pelo cura Heinrich de que o Bem é mais difícil de construir do que o
Mal, decide criar, nos domínios que herdou, uma ”cidade do sol”, fazendo
unicamente o Bem, numa pretensão, ainda, desafiante e mistificatória, de falso
profeta, tomando os estigmas de Cristo para si, por meio do punhal com que
cortou as mãos, para salvar a amante Catherine do inferno, assumindo os pecados
desta, antes de esta morrer, pecados de que ele próprio fora responsável, ao
entregá-la anteriormente aos vilipêndios dos homens.
O VII quadro (a peça, sem unidade de tempo nem
de espaço, tem onze quadros, de interior ou de exterior, conforme as cenas se
passam em salas (do Arcebispo), igreja ou acampamentos), explora, na “Cité du
Soleil”, du bonheur, onde só o Bem é permitido, o conceito de que só o olhar
dos outros existe, desaprovador (o olhar de Hilda), (segundo máxima de “Huis
Clos” (1943), de que “l’enfer c’est les autres”). Mas a revolta dos camponeses
contra a Igreja, algum tempo dominada pelo medo desta, vai rebentar de novo,
após as ficções de bondade de Goetz: “Agora os profetas pululam. Mas são
profetas da ira, que pregam a vingança.”,
dirá Nasty, incitando Goetz a pegar novamente em armas. As cenas finais são de
extrema violência nos conceitos e nos actos – Goetz mata Heinrich que o vem
julgar, desmistificando o seu comportamento de fantoche no Mal e no Bem, no
vazio do mundo sem Deus:
«Goetz:
E porquê este silêncio? Ele que se mostrou à burra do profeta, porque recusa
Ele mostrar-se a mim?
Heinrich:
Porque tu não contas. Tortura os fracos ou martiriza-te, beija os lábios de uma
cortesã ou dum leproso, morre de privações ou de voluptuosidades: Deus está-se
borrifando.
Goetz: Quem conta, então?
Heinrich: Ninguém. O homem é nada….»
Assim,
nem o Mal nem o Bem contribuem para vencer a sua solidão de homem que descobre
que Deus não existe. Retoma, afinal, a antiga determinação de combater, proposta
por Nasty, à frente dos camponeses insubmissos, um homem “em situação”, adaptado
às circunstâncias, decidido a matar quem se lhe
opuser:
«Goetz:
“ Nada receies, eu não fraquejarei. Causar-lhes-ei horror visto que não tenho
outro modo de os amar, dar-lhes-ei ordens, porque não tenho outro modo de
obedecer. Ficarei só com este céu vazio por cima da minha cabeça, porque não
tenho outro modo de estar com todos. Há esta guerra para fazer e eu vou
fazê-la.»
Premissa da corrente existencialista: O Homem é
aquilo que faz, o Homem é aquilo que ele próprio se faz. Sem necessidade de
Deus. Na responsabilidade dos seus actos.
É de 1941 a primeira edição de “Jacob e o Anjo”,
(Primeiro Volume de Teatro), de José Régio, a 2ª de 1953, a 3ª, que sigo, de
1964, da Portugália Editora: “JACOB E O ANJO” mistério em três actos, um
Prólogo e um Epílogo.
Como curiosidade, transcrevo a informação nela
contida : « Esta peça subiu à cena pela primeira vez em Paris, no
“Studio des Champs-Eysées”, na noite de 31 de Dezembro de 1952, numa adaptação
de J. B. Geener feita sobre a tradução integral de André Raibaud”.
Um drama de estrutura una de acção tempo e espaço
(palácio, em três cenários diferentes), baseado no versículo bíblico sobre a
luta simbólica de Jacob e o Anjo: «Ficou só; e eis que um varão lutava com
ele até pela manhã. – Génesis, cap. 32, v. 24), e tendo como fundamento
dramático, o caso do Rei Afonso VI, traído pela mulher (Maria Francisca Isabel
de Sabóia) e por irmão Pedro II, a pretexto da incapacidade daquele de gerar
filhos.
Um Prólogo em discurso didascálico, situando a
acção no espaço do quarto onde dorme o Rei, acordado pelo Anjo em
cenário de luta sobre o leito, formando espécie de bailado de contraste entre o
grotesco aterrado da atitude real e o sublime dos gestos do Anjo (papel, naturalmente,
desempenhado por um bailarino de qualidade).
Com o grito de terror do Rei, começa o 1º Acto, já em
plena manhã, e as sucessivas interpelações coléricas do Rei aos Guardas, que acorrem solícitos ao seu apelo de “Socorro!” e são várias vezes desfeiteados por um Rei
cruel, disfarçando o medo contido no seu grito, aquando da figura do Anjo presente
na janela, como pretexto para conhecer a dedicação dos Guardas servis, na
frustração do seu desaparecimento da mesma janela, que o faz passar por louco
aos olhos das sucessivas personagens.
Um Primeiro Acto, pois, com o desfilar das
figuras ligadas ao Rei – Generalíssimo, Físico, Rainha, Poeta Oficial, Sumo Sacerdote, Juiz
Supremo, além dos Guardas, vítimas da violência e do desprezo reais
- alternando as suas falas, caracterizadas, dum modo geral, pelo pretensiosismo
de uma superioridade arrogante, ou o pedantismo do discurso empolado, no caso
do Poeta, ou a afectação e ironia do discurso da Rainha ao Rei ou ao Bobo, com
a saliência dos discursos irreverentes do Anjo no papel de Bobo,
terminando o Acto com a condenação dos Guardas e a expulsão do Bobo, que
fora tentando, baldadamente, esclarecer o “Rei do baralho de cartas” da
sua designação chocarreira, sobre a sua essência imaterial.
O Segundo Acto passar-se-á nos aposentos da
Rainha, adornado com sobriedade e bom gosto, sem marcas de época, elementos de
um cenário intemporal. Os assuntos são em torno da deposição do Rei, a pretexto
das suas visões e incapacidades governativas: o diálogo “de salão”, entre a
Rainha e o Duque irmão do Rei (futuro D. Pedro), este, galante e cínico, com o
aparecimento inesperado do Bobo trocista, perante a cólera da Rainha, seguidos
do Sumo Sacerdote, o Generalíssimo e o Juiz Supremo e os seus discursos
melífluos (do Sacerdote) ou mais directos, na trama sobre a deposição do Rei. O
Bobo intervém de novo e é mandado prender pela Rainha. Mas após a saída dos
três representantes do poder, A Rainha volta a chamá-lo, insinuando-se,
coquette:
« … Desde que chegaste que sonho o momento de me
revelar, de me entregar… Mas quando hoje vieste, sem eu te chamar, estava
dentro de outro papel, era outra… E foi sinceramente que me indignei, suponho. Aqui
está, Demónio! Demónio ou Anjo, meu querido… Sonhei que só tu serias capaz de me fixar. Estou a
falar-te como nunca falei a ninguém. Quero entregar-me como nunca me entreguei…
Piedade! Não brinques comigo! Eu também sou infeliz… Como ninguém sonha que
sou! (escorrega nas almofadas, estende os braços, está de joelhos no chão).
BOBO: (com doçura); Todos os seres humanos são
infelizes. E cada um tem a sua maneira particular de o ser. Por isso cada um
está absolutamente a sós com o seu sofrimento. A vida de cada um é um deserto
inatingível aos outros desertos. O Espírito é que a todos acompanha. Não é o
mesmo céu que paira sobre todos os desertos? Sofre, mulher. Só o sofrimento
mostra à maioria dos humanos a companhia do Espírito. Sofre e levanta os olhos…
RAINHA (ergue-se violentamente): Não me fales essa
linguagem ridícula! Não a entendo!......»
…….RAINHA: …. Não chamei esses homens senão para estar
segura da sua fraqueza, da sua cupidez… senão para os manejar em meu proveito.
São nojentos! Eles todos! E agora só quero tudo para te dar; para te dar tudo,
meu amado! Avalias o que te ofereço? Sabes o que te dou?
BOBO: -Está lá no livro: um prato de lentilhas…
A cena dramática prossegue, o BOBO tentando chamar à
razão a “pobre mulher”: «Pois
sofre, mulher; pois luta; pois levanta-te; pois afirma-te e contradiz-te! Mas
inútil será qualquer dos teus múltiplos subterfúgios… Mas Deus não pode ser
enganado. Deixo-te na tua solidão. Assim continuarei a lutar
contigo até ser vencido ou realmente vencer…»
E a história que dá o título ao drama:
BOBO ( com muita brandura): -
Queres que te conte uma história? Uma breve história? Sempre os humanos
embalaram a dor ou taparam o tédio com histórias… Ora ouve: Era duma vez um
homem astuto que já enganara o pai e o irmão para obter privilégios sagrados. Claro
que se chamava Jacob. Ora um dia o Senhor Deus viu este homem e pensou: «Manha
não te falta para enganar os teus parentes. Se além disso és capaz de vencer
qualquer dos meus Anjos, estás apto a ser um dos reis da Terra, o chefe dum
grande povo…» Não vou jurar que o Senhor Deus se exprimisse tal qual eu. Mas o
que é certo é que mandou descer à Terra um dos seus Anjos mais robustos…
RAINHA: Cala-te! Não te
posso ouvir. …..
Segue-se o encontro com o Rei,
em cena de retrospectiva das desilusões da Rainha, à sua meiguice sucedendo a fria
justificação da destituição do Rei, caso não aceitasse a proposta da sua
abdicação, o que provoca a cólera daquele e a ordem da Rainha aos Guardas para
que o algemem, e o guardem à vista, “com as honras devidas”.
O espaço do ACTO III é o
quarto da prisão perpétua do Rei, sombrio, com um tocheiro ao centro iluminando
a cena, cadeirões de coiro nos cantos, um tapete, o rei deitado no chão sobre o
ventre.
Diálogo inicial com o Bobo irónico,
um Rei desfeito de ira, vergonha e dor, atraiçoado por todos em quem acreditara.
Estes surgem e justificam-se perante o Rei, algumas cenas caricatas, o Rei querendo desfazer-se do Bobo, preso de
terror, finalmente aceitando-o, tendo compreendido: «Mas eu estou pronto,
meu Senhor! Cumpre em mim a tua vontade. Leva-me enquanto me alumia este raio
da tua graça! Leva-me contigo e depressa… tenho pressa…
BOBO: Já não é a mim que
deves dirigir essas palavras.
REI: Ensina-me então a
palavra do Silêncio…
…
O epílogo, de
desmistificação do sagrado pelo profano caricato:
FÍSICO: Parece-me que
desta vez está pronto
ENFERMEIRO: Melhor para
todos. Já cá não fazia nada, coitado!
FÍSICO: Nada. Só dava
trabalho.
ENFERMEIRO: Ainda resistiu
bastante! Resistente era ele; como todos os maus, Deus lhe perdoe. …
Duas peças de teatro quase contemporâneas,
tratando a temática da condição humana, Numa perspectiva teológica convencional
o drama de José Régio, de grande nobreza e equilíbrio. Numa perspectiva
agnóstica, naturalmente, a peça de Sartre, provocatória, indiciadora de novos
tempos revolucionários.
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