O artigo «A grande ilusão» de Vasco Pulido Valente(Público,
8/5/15) trouxe-me à memória os tempos de antanho, tempos do liceu, com rapazes
de excepcional craveira, outros menos, mas que se deixavam levar porque era
moda e isso influenciava intelectualmente as vidas de cada um, o convívio sendo
imprescindível nos afectos livrescos, criando estímulos a leituras. Os mais
ferrenhos, como o Rui Baltazar, deixaram-se mesmo ficar por lá, aquando da
Revolução de 74, desde cedo combatendo em prol da libertação dessa África que o
recompensaria na sua independência, com algum cargo ministerial, justo apreço
da traição à sua pátria. Fôramos amigos na infância, éramos amigos de visita
espaçada e gradualmente arrefecida, mas grande foi a surpresa da descoberta das
suas actividades pró Frelimo, que definitivamente arrumou afectos no escaninho
dos desprezos.
É certo que,
para aqueles de quem se dizia que almoçavam com o governo e jantavam com a oposição,
bem instalados na vida sempre, a recompensa da traição viria do seu próprio país,
para onde haviam imigrado, capitalizando as suas escolhas e colaboracionismo em
cargos posteriores de grande visibilidade, mas sempre no convívio democrático astucioso,
que lhes permitia a diversidade dos prândios. Mas isso foi, afinal, a maioria,
pois mesmo os que anteriormente tinham vivido na passividade e na ignorância, de
repente revestiram a veste em moda, renegando o seu passado e dizendo-se
perseguidos anteriormente, como convinha, para a sua estabilidade posterior e
dos seus.
Houve também
aqueles que sempre comeram da terra onde nasceram, mais tarde em estudos
superiores que os pais naturalmente comparticipavam com as espórtulas do seu
trabalho, mas a quem os filhos criticavam a participação no lauto banquete
pátrio ultramarino, feito de exploração dos africanos, paradoxalmente sem pejo
de nele eles próprios também participarem, sugando as economias desses pais
trabalhadores numa terra então portuguesa, pais que lhes pagavam os estudos e
mais tarde a vida na Europa, longe da guerra que a outros se impôs, sem tantos
poderes económicos para a ela se furtarem, ou obedecendo mesmo a outras convicções
deixadas por antepassados de brio.
Eram, pois, ledores da cartilha de Marx, por
via dos escritores de que fala Vasco Pulido Valente, os tais que se reuniam nos
cafés e escreviam livros que a mim só mais tarde se impuseram, passados os
deslumbramentos ou as obrigatoriedades impostas pelos estudos próprios, mais
interessada, contudo, nos entrechos romanescos das narrativas de Simone de
Beauvoir ou dramáticos de Sartre, do que no artifício das doutrinas a que
Pulido Valente aponta a utopia, ele próprio reconhecendo as desordens causadas
por todos os ditadores facínoras, de Hitler, a Estaline, a Mao Tse Tung, ou por
democratas dementes mas poderosos, destruindo cidades para vingar ofensas, em
ataques surpresa denunciadores de uma “era atómica” assim criada, de intranquilidade
e de guerra fria que um Gorbachev ajudou a sanar, mas que essas doutrinas
permanecendo, para contrapor aos desmandos capitalistas o igualitarismo nas
ambições humanas, contribuem para destabilizar, trazendo a miséria e a
desordem, nos países de democracia recente, sinónima de convicções que a nossa
parolice, de par com uma falsa generosidade, grita aos sete ventos. A parolice
de António Costa, segundo Vasco Pulido Valente, na sua “grande ilusão”, a tal que
criou zangas entre amigos, como as que Simone de Beauvoir refere a respeito das
desavenças de Sartre com Camus e outros camaradas:
A grande ilusão
Vou escrever sobre meia
dúzia, talvez, com optimismo, sobre uma dúzia de intelectuais franceses que
dominaram o pensamento político desde o fim da guerra a 1962-1965. Todos se
conheciam, todos se viam, todos passavam pelos mesmos restaurantes, pelos
mesmos bares, pelos mesmos cafés. Todos se falavam e não paravam de falar, mas
ninguém concordava com ninguém.
Havia, para começar, uma grande divisão: entre os que
estavam dentro e os que estavam fora — do Partido Comunista Francês (PCF),
claro está. E, dos que estavam fora, entre os que estavam mais próximos do
partido e os que estavam mais longe. A distância era medida pela quantidade de
idiotia e de mentiras que cada um alegremente aceitava sobre a URSS e a
política francesa; pelos livros que cada um escrevia para justificar o
injustificável.
Não se pense que esta estranha vida se fazia sem dor.
As crises de consciência e as zangas pessoais não paravam nunca. Ferviam
insultos. Muitos foram para a província com esperança de recuperar um pouco de
sanidade. Não conseguiram. Os dogmas não deixavam saída. O primeiro declarava a
URSS a pátria do socialismo real (por muito que a realidade se não parecesse
com a descrição), e os verdadeiros revolucionários tinham de a defender contra
as calúnias do Ocidente. O segundo dava ao proletariado da França a missão histórica
de trazer o socialismo à Europa (apesar de ele já ser nessa altura minoritário
e fraco). E o terceiro estabelecia que o PCF representava o proletariado da
França. Recusar o PCF era assim simultaneamente recusar a história, a justiça e
a Pátria.
A herança desses senhores e dessas senhoras acabou por
ser um legado de ignomínia e de irresponsabilidade. Verdade que, perante a
evidência, a maior parte se arrependeu e, penitentemente, acabou por se
confessar em público, como na Idade Média. Mas não ajudaram nada, nem aliviaram
o mal que tinham promovido e aplaudido. A esquerda portuguesa de hoje não se
distingue muito da esquerda francesa que reinou durante 20 anos e a seguir
abjectamente se matou. Os filhos dela continuam a berrar por aí. Até ao dia em que
perceberem que as poses não substituem os factos e que não se governa
disfarçando e escondendo um passado desagradável. O dr. Costa julga que caiu
imaculado no meio de nós. Infelizmente, nós sabemos como e com quem ele chegou
ao que chegou.
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