Ontem vi parte de uma reportagem na TV5 sobre a
reacção do povo nicaraguense à abertura de um canal unindo Atlântico e
Pacífico, (tal como fora o do Panamá), empreendimento entregue a uma empresa
chinesa e que, ao que parece, traz imensos danos ambientais, apesar do fortalecimento
económico previsto para o país. Uma reportagem em grande, com fotografias dos
espaços, entrevistas com tradução imediata, os pontos de vista normais de quem
se sente incomodado na sua estabilidade e na destruição da fauna e flora ou
poluição das águas do seu maior lago de água doce que tal empreendimento vai certamente
proporcionar, atravessado pelo tal canal. Uma reportagem como tantas que a TV5
apresenta diariamente sobre os vários espaços do mundo, nos seus costumes, nas
suas vidas, nos seus sentimentos. Assim se vai viajando pelo mundo, e
conhecendo os hábitos da Gronelândia, da Patagónia, como da Mauritânia ou do
Brasil, ou mesmo os empreendimentos agrícolas de famílias francesas, como a da
família que trabalha no cultivo e comercialização da couve-flor. Assim se educa
um povo, alargando os horizontes geográficos e culturais em suma, pois que de conhecimento
se trata, a televisão não utilizada apenas para distrair ou divertir.
Reportagens certamente que dispendiosas, exigindo deslocações, estudos prévios, material logístico, dedicação, e, enfim, equipas de investigadores que estão, a maior
parte das vezes, invisíveis ou apagados, ou modestamente intervenientes.
Não assim por cá, limitados que somos às exposições
pessoais, algumas bem interessantes, das pessoas entrevistadas, cada uma
debitando os seus conhecimentos, numa arte exibicionista em que se cultiva a
atitude, com maior ou menor relevo, as figuras femininas expondo, além dos
ademanes mimosos, as vestes do nosso regalo visual. As reportagens sobre o
mundo que roda, de povos alheios e acontecimentos civilizacionais, são
dispendiosas e exigentes de capacidades que talvez não possuamos, habituados ao
nosso mundo de exaltação das nossas misérias ou das nossas glórias, das nossas “saias
de Elvira” que mais uma vez transcrevemos de Eça e do seu “Fradique”:
«Era o tempo em que eu e os meus camaradas de Cenáculo,
deslumbrados pelo Lirismo Épico da Légende des Siècles, «o livro que um grande vento
nos trouxera de Guernesey» — decidíramos abominar e combater a rijos brados o Lirismo
íntimo, que, enclausurado nas duas polegadas do coração, não compreendendo dentre
todos os rumores do Universo senão o rumor das saias de Elvira, tornava a Poesia,
sobretudo em Portugal, uma monótona e interminável confidência de glórias e martírios
de amor.»
Não se trata agora, como no caso de Eça, de atacar a
nossa poesia lírica, de cunho exclusivamente sentimental. Mas esta ficou-nos no
goto, não exigindo muito conhecimento geográfico ou científico, favorecendo,
pois a nossa apatia cultural. Os tempos mudaram, a idiossincrasia da indolência
e da sentimentalidade permaneceu, o progresso trazendo algumas mudanças, naturalmente.
Mas a tendência para o encarecimento dos casos que privilegiam as nossas disponibilidades
afectivas, verifica-se ao nível dos media, e especialmente das televisões. Não,
a televisão não favorece grandemente a nossa ânsia de saber, vocacionada que é
para o espectáculo e o sensacionalismo.
Para além do mais, a televisão tem um papel
fundamental na difusão dos casos de violência, nas escolas e ailleurs. Como diz
o meu filho João, sempre houve violência entre os moços nas escolas, casos resolvidos
entre eles. Agora, a televisão informa, quase em simultâneo. Agora os pais
estão de prevenção para participarem dos professores, caso “maltratem” os
filhos mal educados. É o que diz a minha filha Paula. Bola de neve em
crescendo, gelo polar derretendo e engolindo o mundo da solidez.
Di-lo Vasco Pulido Valente, no seu retrato.
Inutilmente, como já Eça em vão o disse:
O
lixo
Há
anos que a televisão (pública e privada) nos dá uma dieta diária de toda a
espécie de crimes. Não há limite à violência que se julga própria para o nosso
aprimoramento moral: de novos sobre velhos, de velhos sobre novos, de velhos
sobre velhos, de novos sobre novos. A conversa sobre a necessária defesa das
mulheres, sobre o “bullying” ou outras formas de barbaridade — uma conversa que
nunca é coerente e nunca leva a nada — só serve para explicar que a televisão
se tenha ultimamente convertido num emissor de lixo sem desculpa, nem sentido.
De resto, além do crime, existe ainda o acidente, qualquer acidente, desde que
apareçam imagens de sangue, desespero e destruição. E, quando não se encontram
em Portugal, não faltam por esse mundo calamidades para encher o tempo.
Isto
sucede em parte por duas razões. Primeira, porque as “notícias” são comparativamente
baratas: um automóvel, câmara e um “repórter” e está o caso resolvido. O câmara
regista — normalmente — os locais, que 99 por cento das vezes não põem ou
tiram nada à história que se vai contar. O repórter faz meia dúzia de
perguntas à família (quando ela não foge) e aos conhecimentos das vítimas.
Tanto as perguntas como as respostas são sempre as mesmas e não esclarecem (nem
podem esclarecer) coisa nenhuma. Segunda, o público parece que gosta: um gosto
que vem da literatura popular do século XVIII e do inevitável “folhetim” dos
jornais do século XIX. Olhando para a televisão, não melhorámos muito no nosso
gosto pelo melodrama e pela história crapulosa do dia. Hoje, ilustres
comentadores políticos escrevem seriamente sobre o “amor de mãe”.
Mas,
no meio disto, a televisão reserva para si um espaço privilegiado em que se
encarrega de promover a rivalidade e o ódio e, sobretudo, a agressão física
sistemática: o futebol, bem entendido. Os treinadores de futebol (especialmente
o do FC Porto e o do Benfica) devem ser com certeza as duas personagens mais
longa e assiduamente ouvidas da vida pública portuguesa. Como o dr. Cavaco
Silva, repetem sem excepção trivialidades do mais sólido optimismo e prometem,
sem prometer, o mais glorioso futuro para amanhã. Durante meses, a televisão
cria um clima de guerra e de tragédia e, quando chega a resolução, é
inevitavelmente a violência que vem à superfície. Nessa altura, a autoridade
lamenta e sacode a água do capote. E a roda recomeça. Não temos conserto.
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