quarta-feira, 27 de maio de 2015

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O artigo “Uma tragédia evitável” de Alberto Gonçalves (Notícias, 24/5/2015) é cheio de pormenores críticos sobre a actuação de António Costa na pré-chefia que se propõe em campanha, como preparação para a sua chefia futura, definitiva para muitos portugueses que até se sentem honrados com a sua postura, ora de meias tintas ora de tintas fortes, tergiversações só sensíveis às pessoas que não se deixam manipular por demagogias que há muito deixaram de fazer sentido, num panorama de insensatez instituída, onde os consertos prometidos não passam de palavras ocas, furtando-se à responsabilidade de um país que deve.
Para Alberto Gonçalves a governança futura de Costa, de ideologia leviana “à Syriza”, será uma tragédia. A análise que faz das acções de Costa - a sua mansidão apelativa de votos, relativizando comportamentos degradantes dos portugueses com a justificação, deseducativa, de uma generalidade mundial, o seu extenso projecto de programa eleitoral” como meio para aplicar terminologias em moda das mentiras linguísticas destes tempos, iludindo os leitores, «Em suma, pacotes, iniciativas, medidas, apostas, comissões, siglas e delírios, muitos delírios, as coordenadas exactas do embuste», um artigo de ironia feroz de Alberto Gonçalves, que só penetrará, naturalmente, nas mentes do costume.
Também o artigo «O jornalismo no museu» é uma sátira “desesperada” à parlapatice ou má fé jornalística noticiarística, tanto no uso de expressões bombásticas para manifestação de orgulhos nacionalistas despudorados na sua vanidade, como na expressão da criminologia e sentimentalidade actuais, como no exibicionismo perverso de uma ideologia de apoio ao crime no caso do crime antigo, o regicídio verificável num coche do Museu dos Coches, a memória do regicida Buíça acarinhada por José Alberto Carvalho.
O que não é evitável é a tragédia da mal formação mental.

Uma tragédia evitável
por ALBERTO GONÇALVES 24 maio 2015
Apesar de lamentar a balbúrdia cometida por adeptos da bola no centro de Lisboa, António Costa lembrou, a título de consolo, que actividades semelhantes também acontecem "noutros locais". Para mim, que moro a centenas de quilómetros do Marquês de Pombal, chega. Para os lisboetas, sobra. Para todos os portugueses, eis uma amostra da liderança serena que o Dr. Costa se prepara para aplicar ao país em peso, logo que as sondagens comecem a traduzir a real vontade do eleitorado e retirem o PS de fundilhos anes justificáveis pela brandura de António José Seguro: qualquer maçada, problema ou cataclismo devem ser relativizados sob o imbatível argumento de que, algures, já houve igual ou pior.
Se, por exemplo, um dia funesto Condeixa-a-Nova for bombardeada pelo inimigo, o Dr. Costa recordará Dresden e Pearl Harbor. Se três quartos do Alto Minho desaparecerem graças a um vírus maligno, o Dr. Costa não demorará a evocar a sida em África e a gripe espanhola. Se um surto de canibalismo irromper no Barlavento algarvio, o Dr. Costa acalmará as hostes mediante comparações com o Donner Party e a fome soviética de 1932. É para isto que serve um líder.
Quanto a um candidato a líder, serve para apresentar um "projecto de programa eleitoral". Dividido em quatro capítulos, 21 pontos e incontáveis alíneas, o projecto de programa é um sítio tão bom quanto outro qualquer para o PS semear palavras que acha cativantes (flexibilidade, proximidade, agilidade, qualidade, sustentabilidade, valências, alavancagem, dicotomia, etc.). Ao longo de 134 páginas que se lêem com o prazer com que se arranca um dente, oscila-se sem surpresas entre os grandes conceitos (a liberdade, a democracia, o sol, o vento e a água) e o detalhe maníaco (melhorar a "qualidade das emissões da RTP Internacional"). Ou entre promessas lindas (a "eficiência do Estado") e a sua contradição imediata (a criação da essencial "Unidade de missão para a valorização do Interior"). Ou entre promessas esquisitas (os direitos de "reserva da intimidade da vida privada e do bom nome") e a sua contradição imediata (a "conciliação dos mecanismos da vigilância electrónica com os de teleassistência no apoio a vítimas de violência doméstica"). Ou entre o ocultismo ("construção de equipamento e navios de suporte para O&G e Mining Offshore") e, literalmente, a arte de encher chouriços (há um "programa integrado de certificação e promoção de produtos regionais"). Ou entre a comédia farta (um "Programa subtemático para o setor [sic] do leite") e a retórica vazia ("Um mundo que nos devolva o lugar da comunidade, valorizando a vida quotidiana"). Ou entre os sintomas de amnésia (a "consolidação das contas públicas") e o orgulho no currículo (as garantias de apoios a tudo o que mexa - e principalmente não mexa - são infinitas). Por pudor, não desenvolvo "o equilíbrio de género no patamar dos 33% nos cargos de direção para as empresas cotadas em bolsa". Por estupefacção, não comento a abolição da austeridade através de decreto.
Em suma, pacotes, iniciativas, medidas, apostas, comissões, siglas e delírios, muitos delírios, as coordenadas exactas do embuste. Pura política? Sem dúvida, e sobretudo puro PS. Corre por aí que o Dr. Costa contratou especialistas de marketing para perceber o que vai na cabeça dos portugueses. A vantagem dos portugueses é saberem de antemão o que vai na cabeça do Dr. Costa, um seguidor confesso do interessante Syriza. Se depois elegerem o PS pode sempre dizer-se que, de Mário Soares a José Sócrates, já houve desastres iguais. Duvido que tenham sido piores: a luz ao fundo do túnel é o TGV.
O jornalismo no museu
Peço desculpa pela terminologia, mas a homepage do meu browser é o Google News. Foi aí que nos últimos dias e em diversos sites informativos li: "Cláudia Vieira arrasa em Cannes"; "Sara Sampaio arrasa em Cannes"; "Cristina Ferreira arrasa em Cannes", "Irina Shayk arrasa em Cannes". Não se devemos celebrar o sucesso de tantas concidadãs (ou ex-namoradas de concidadãos, o que para efeitos nacionalistas vai dar ao mesmo) ou lamentar que a passadeira onde em tempos desfilaram Anna Karina e Brigitte Bardot seja hoje tão impressionável por pessoas que nem eu sei bem quem são ou o que fazem.
Certo é que Cannes está arrasada, e é entre as suas ruínas metafóricas que medito naquilo que agora passa por notícia. E concluo que, apesar de tudo, antes este patriotismo apatetado do que os telejornais cheios de sangue e sentimentalismo, que a cada dois dias agitam uma indignação ou uma polémica para animar o povo.
E mesmo a exploração de crimes recentes é preferível à exaltação de crimes remotos, ou a José Alberto Carvalho, em directo do Museu dos Coches, a lembrar o regicídio ("uma data considerada funesta para os monárquicos"), a evocar com carinho a memória do Buíça e a constatar, com certo pasmo, que "mais de um século depois estes princípios republicanos ou de humanidade são ainda objecto de debate". Se os princípios eram a herança francesa do terror, é melhor não conhecer os fins. Já o fim do jornalismo, pelo andar da carruagem (ou do coche, caso apreciem trocadilhos), não deverá andar longe disto.

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