segunda-feira, 4 de maio de 2015

“Folha que cai”, no café de domingo




A minha irmã, sempre atenta ao esclarecimento da verdade – e vejo nisso os genes do meu pai,  que não ia em leviandades de interpretações, não perdeu tempo para me informar sobre a dita palavra deceina, que eu escrevera  desseina, e que tanto ela como a minha filha Paula logo tinham pensado que se escrevia com c e eu nem pusera essa hipótese, construindo, para a sua origem, erudita e fantasiosa etimologia resultante das viagens de Ulisses (Odisseus, em grego), que até, segundo se propalava, aportara a Lisboa, em barcos a remos, fundando a nossa Ulissiponem (étimo, ao que sei, também fantasioso), hoje visitada por cruzeiros de cortar a respiração, mas no tempo de Cesário Verde, em nostalgia de outras terras, as deslocações para o mundo só possíveis por via férrea:
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista exposições, países;
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo! (in “O Sentimento  de um Ocidental”)

E mostrou-me o papel  onde escrevera : «Deceinar (Regionalismo): lavar as meadas para lhes tirar a cinza da barrela», segundo um dicionário da Porto Editora - «Dicionário da Língua Portuguesa”- publicado em 2014. E logo eu desci à terra e achei que tais trabalhos de barrela eram mais coincidentes com os conhecimentos da minha mãe, que tantas vezes usara a palavra na sua vida e logo lhe apliquei o étimo “cinis, no genitivo cineris, que significava cinza em latim.
Entretanto, agora que lhe sei a grafia, procuro na Internet a palavra “deceinar” que usa igual fonte da minha irmã e confirma a origem da palavra.
Assim ficou reposta a verdade, antes mesmo de a minha irmã acabar a sua torrada, prova de que o meu texto anterior sobre a “desseina” e a hipotética ligação à Odisseia lhe mereceram atento repúdio, como a mim também, agora que sei.
Entretanto, falou-se de outras coisas – a escola, a educação e o desgaste dos professores - e a minha amiga saiu-se com esta, estávamos a apontar o massacre noticiarístico dos telejornais, iniciando-se infalivelmente por casos de acidentes, assassínios, crueldades:
“É raro o dia em que um marido não mata a mulher. E agora também mata os filhos”.
E a Paula, de acrescentar:
E a sogra. E o cunhado. E a família toda”.
E a minha irmã, excitada:
“Então e nos Estados Unidos? Um homem vai no passeio do lado esquerdo, e a polícia, de carro, vinda do lado direito, cruza a faixa contrária entra em transgressão e bumba, vai para cima dele”.
“Minha nossa!” exclama a minha amiga.
“É por isso que eu, aos domingos, fecho a televisão, ligo a rádio e leio os jornais e revistas” – é a minha irmã que fala . “Antes que nos dê um ataque…”
A Paula riu-se, num comentário sobre a tendência da nossa conversa, e a minha irmã concluiu:
”A gente, desta idade, só está à espera que nos chegue alguma!”
Mas a minha amiga não se ficou atrás nesta deceina do nosso pessimismo:
“Ai que raiva, pá! Os anos passam tão depressa!”
E a Paula, a rir:
“Isto é pior do que o telejornal!”
Com os nossos cafés, brindemos, então, antes, a João Deus, que usou o efémero mais coloridamente:

A vida é o dia de hoje,
a vida é ai que mal soa,
a vida é sombra que foge,
a vida é nuvem que voa;
a vida é sonho tão leve
que se desfaz como a neve
e como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
mais leve que o pensamento,
a vida leva-a o vento,
a vida é folha que cai!

A vida é flor na corrente,
a vida é sopro suave,
a vida é estrela cadente,
voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
onda que o vento nos mares
uma após outra lançou,
a vida – pena caída
da asa de ave ferida -
de vale em vale impelida,
a vida o vento a levou! “(in “Campo de Flores”)

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