Há muito já que o não lia, dispersa a vida nas
suas manipulações díspares, entre as quais os desafios do far niente. E
hoje, numa velha antologia dos tempos da docência, encontrei este «DESFECHO»,
que mais uma vez me fez transpor os limiares do Éden, no prazer divino da releitura
em admiração inapagável.
A grandeza neste emparelhar de forças, do Eu e de Deus, o Eu no desejo permanente
de negação de Deus, o Deus que se impõe no Eu, não tendo este como negá-Lo, Presença
assustadora na infinita insciência humana para o rebelde, (apaziguadora,
naturalmente para o homem de fé).
E sempre a singeleza do discurso – directo – a sobriedade
melodiosa do narrado, a que os elementos da terra – “o chão da caminhada”, “fechado
num ouriço de recusas” - ou a adjectivação natural, sem pedantismo – “divina”
(presença) “impertinente”, (vulto) “calado e paciente” … imprimem
a força explosiva no grito constante do Homem contra o “silêncio” imponente do
Deus sempre, afinal, presente.
E o desfecho desta “biografia” pela
continuidade neste companheirismo de contraste, pela não cedência de nenhum dos
antagonistas, a dúvida permanecendo no Homem, mau grado a rebeldia de uma “certeza”
de facto inexistente. Apenas o silêncio final os irmanou, na inutilidade do
discurso humano – “Já não tenho mais palavras”, “o tempo moeu na sua
mó o joio amargo do que te dizia”. A infinita grandeza de um Deus imanente contra
uma rejeição dolorida e condenada ao malogro, a extrema perícia de um discurso
de simplicidade e dimensão humanística a que o verso irregular retira a
solenidade, conferindo-lhe a
autenticidade do sentimento.
Um poeta que necessariamente se percebe e se
ama. Miguel Torga:
DESFECHO
Não tenho mais
palavras.
Gastei-as a
negar-te...
(Só a negar-te eu pude
combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)
Fosse qual fosse o
chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença
impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...
E lutei, como luta um
solitário
Quando alguém lhe
perturba a solidão.
Fechado num ouriço de
recusas,
Soltei a voz, arma que
tu não usas,
Sempre silencioso na
agressão.
Mas o tempo moeu na
sua mó
O joio amargo do que
te dizia...
Agora somos dois
obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.» « Câmara
Ardente» (1962)
Um comentário:
Se Miguel Torga for para o Panteão, faço questão de pedir que seja este "poema em prosa" de Berta Brás posto no seu caixão, com, necessariamente, este formidável "grito" de Torga, que o irmana com Deus.
Ilda Martins
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