Também teve as suas ambiguidades, Salazar - tal como o
galego da escada que ninguém descortina se ele está a subi-la ou a descê-la,
segundo referência de António Pina do Amaral no artigo que segue – “Salazar
e Franco” – publicado no “A Bem da Nação” – mas era
indiscutivelmente um homem que sabia o que queria. E por isso permaneceu no seu
posto longo tempo – tal como, afinal, Jardim, que também apreciou o posto - e
Cavaco, e Soares, e tutti quanti – embora o controlo dos gastos daquele
fosse mais visível, e sempre no amor da pátria, que conseguiu desendividar e
fazer progredir- dentro de normas de avara mesquinhez, é certo, mas dentro de
preceitos de ética mais visíveis. Outros homens lhe reconheceram a competência –
espanhóis – como os que o texto de António Pina do Amaral identifica, e por
isso com orgulho reescrevo o que disseram:
«Para si (Suñer) Salazar é um “homem extremamente simpático, extremamente
bem-educado, culto, amável, duma perfeita dignidade”. Mais tarde a amigos
dirá que Salazar é “um homem de primeira ordem, com todo o rigor de um
catedrático e a paixão de um místico”.»
«O Generalíssimo não
esconderá os seus sentimentos acerca de Salazar que, para ele é “o mais
completo e mais digno de respeito estadista que conheci. Olho-o como uma
personalidade extraordinária pela sua inteligência, o seu senso político, a sua
humanidade. O seu único defeito é a modéstia”.»
Eram estrangeiros, por isso imparciais, mas evoco
ainda, a propósito de admiração, o meu amigo Juiz Dr. Brites Ribas, que me deu
a conhecer um pouco de Lisboa e os “marinos” do café Central - (em nada, apesar
de tudo, camaradas na parcimónia de Salazar, referida no texto de Pina do
Amaral ) – o qual amava Lisboa e admirava Salazar: Considerava-o o maior
estadista português de todos os tempos, o mais inteligente. Era Juiz, conhecia-lhe
a obra e tinha bom senso.
«SALAZAR e FRANCO»
«Foi em Fevereiro de 1942,
o encontro que definiu a sorte da guerra. Salazar encontra-se secretamente com
Franco e obtém uma certeza: a não beligerância espanhola manter-se-á. O
Presidente do Conselho de Ministros de Portugal saíra de Lisboa pela manhã. Ao almoço
tinha lugar um insólito pic-nic.
Eram 10 da manhã do dia
10 de Fevereiro de 1942.
Ao chegar à Rua da
Imprensa à Estrela para iniciar mais um dia habitual de funções, nesses tempos
conturbados de guerra, o secretário de Oliveira Salazar, constata, perplexo, a
ausência do Presidente do Conselho de Ministros. Mas pior: feitos uns contactos
de entre os círculos que naturalmente deveriam estar a par de qualquer
deslocação de Salazar, rapidamente se conclui que ninguém estava prevenido
quanto a qualquer eventual saída ou motivo para ausência.
A situação assume foros
de paroxismo quando se acrescenta ao rol dos faltosos mais um nome. Também o
Director da PVDE, a antecessora da PIDE, o capitão de infantaria Agostinho
Lourenço da Conceição Fernandes se não achava no seu posto, na Rua António
Maria Cardoso, nem na residência sita a Avenida Barbosa du Bocage.
Facto consumado! No maior
segredo, nem aos mais íntimos confessando a sua intenção, Salazar partira essa
manhã, de automóvel, acompanhado de Lourenço e de dois oficiais de segurança,
rumo ao Sul de Portugal. Passado o Tejo pelas nove e meia, junta-se-lhe em
Estremoz o Embaixador Pedro Teotónio Pereira, que para o efeito se deslocara de
Madrid, onde chefiava a legação portuguesa junto de Franco. Retomada a marcha,
pela hora do almoço os viajantes estão perto da fronteira.
Dá-se então o ainda mais
inesperado. A um gesto de Salazar, o motorista estaciona num local retirado da
estrada. Cumprindo um ritual pré estabelecido, abre a bagageira da viatura e
dali retira um cesto. Dali sai, queiram ou não os circunstantes acreditar, o
farnel para o almoço. Disposto a não dar nota da sua presença e a isso juntando
uma economia de despesa, Salazar confunde-se com a paisagem e quais turistas
acidentais em improvisado piquenique, satisfaz assim as exigências vitais. Os
outros acompanham-no em respeitoso silêncio.
Filho de camponês, a
refeição é frugal. E, no entanto, é um momento decisivo da História
contemporânea que então se vive. Não adivinhariam os poucos passantes que ali,
nesse “déjeneur sur l’herbre” estava a jogar-se o futuro de Portugal e a sorte
da Segunda Guerra Mundial.
Salazar dirigia-se a
Sevilha para um encontro com Franco.
Iriam ver-se pela
primeira vez. E, no entanto, até ali, tinham estado sempre juntos. O encontro,
ocorrido nessa noite no Alcazár, seria decisivo.
O ambiente político e
militar de então não poderia ser mais carregado. A ameaça de envolvimento de
Portugal no conflito militar que, desde há três anos, dilacerava a Europa, era
cada vez mais iminente. O país havia definido desde o princípio das
hostilidades uma política de neutralidade, ditada pela Aliança Inglesa e pela
consideração que não poderíamos por causa dela hostilizar os britânicos nem por
efeito dela guerrear os alemães.
Mas, na concepção de
Oliveira Salazar, a neutralidade jogava-se igualmente na frente atlântica,
envolvendo o destino dos Açores e de Cabo Verde, e no bloco peninsular,
envolvendo uma concertação com a Espanha. Com o Governo de Madrid Portugal
firmara, logo em 1939, um “Tratado de Amizade e de não agressão” e em Julho de
1940 um Protocolo Adicional. Dois anos volvidos, em 1942, o panorama estava
diferente e mais complexo.
Aos riscos de uma invasão
nazi, que Hitler prenunciara com o Plano Félix, sucedem-se, em cumulação, os
riscos de uma invasão Aliada, pois certos sectores das “nações unidas” não
queriam correr o risco de deixar um país estrategicamente tão importante como
Portugal ao acaso de uma ocupação pelo Eixo e da subsequente perda de posição
dos pontos nevrálgicos dos Açores e de Cabo Verde.
É nesta ambiência que se
dá o encontro entre o Generalíssimo Francisco Paulino Hermenegildo Teódulo
Franco Bahamonde, o “caudillo” de todas as Espanhas, e o Presidente do Conselho
de Ministros de Portugal, Professor António de Oliveira Salazar.
À histórica conversa
apenas assistiria Serrano Suñer, o recém-empossado Ministro das Relações
Exteriores, líder da Falange, e cunhado de Franco. O jogo é denso, quer por
causa das pessoas em presença, quer por virtude das realidades políticas do
momento.
Preparado para todas as
eventualidades, Salazar não ignorava a manhosa habilidade de Franco que, em
declarações sucessivas, parecia decisivamente inclinado para o lado do Eixo
nazi fascista, enquanto, por outro lado, dava sinais contraditórios aos Aliados
de que respeitaria a “não beligerância” que definira no advento do conflito.
Ainda para complicar a
cena, no tablado da encenação política, Franco, que até então havia jogado no
apagamento intencional da sua imagem, fazendo projectar à boca de cena, a do
seu cunhado, Serrano Suñer, cuja germanofilia era mais do que patente,
surpreendera agora tudo e todos com um golpe de asa, invertendo os papéis e
assumindo agora um papel decisivo na condução dos negócios políticos
exteriores. Mas, para além das aparências da encenação política, Suñer era,
naquele encontro, uma peça decisiva.
O seu passado quando da
elaboração do Protocolo Adicional ao Tratado de não agressão havia deixado
marcas indeléveis da sua má vontade contra a posição portuguesa. Negociado
secretamente entre Teotónio Pereira e Juan Beigbeder Atienza, o documento havia
sido aprovado por Franco, mau grado a fria oposição de Suñer, que para o efeito
não desdenhara mesmo o animar uma campanha de imprensa hostil a Portugal.
Perante isto, Oliveira
Salazar não ignora que parte decisiva do que disser ou fizer deve também visar
o convencimento do cunhado do Generalíssimo, pois é dele que poderá vir o
obstáculo definitivo a qualquer acerto que então se faça. Neste particular a
sua vitória pessoal foi total. No plano político, a situação também não é fácil
para um alinhamento da Espanha com a pretensão portuguesa de subsistência da
neutralidade comum.
Internamente, eram cada
vez mais activas as forças do regime que, confiadas numa vitória nazi, clamavam
por um alinhamento militar ao lado de Berlim, a que se juntavam quantos
pretendiam a oportunidade para concretizar uma anexação política de Portugal,
viabilizando assim a formação de um bloco ibérico, mais satisfatório aos
apetites hegemónicos imperiais de Castela. Provocatoriamente, a Falange havia
mesmo mandado imprimir, no Auxílio Social de Valladolid um mapa da península no
qual Portugal aparecia como uma província de Espanha.
Exteriormente, a cada vez
mais intensa colaboração militar dos Aliados com a União Soviética, aliciava o
endémico anti-comunismo espanhol a não alinhar com aqueles que estão agora no
mesmo campo dos vermelhos contra os quais se havia erigido, em três anos
sanguinolentos, a guerra civil. No meio deste “albergue espanhol” Franco,
prudente e ardiloso. Instintivamente, Salazar está convencido de que Franco,
mau grado o espectáculo das suas declarações e da dos seus, não dará o passo
final em favor de Hitler e apenas pretende sossegar o Führer, entretendo-o no
eterno jogo das esperanças.
A origem de Franco
explica a sua psicologia. Fiel ao dito “se vires um galego numa escada nunca
saberás se vai a subir ou a descer”, Salazar conta com a indefinição do
seu interlocutor e não espera dele mais do que sinais. Formal, a conversa
entre os dois estadistas decorre com fluência. Em atenção a Salazar, Franco
fala no seu dialecto de origem, o galego, absolutamente compreensível pelo seu
interlocutor. Atento, Suñer surpreende-se pelo que lhe é dado observar.
Minado de preconceitos
políticos, mas arguto observador, rende-se incondicionalmente ao Presidente do
Conselho português. Em entrevista posterior com o Embaixador alemão em Madrid,
não hesita em declarar a sua opinião. Para si, Salazar é um “homem extremamente
simpático, extremamente bem-educado, culto, amável, duma perfeita dignidade”.
Mais tarde a amigos dirá que Salazar é “um homem de primeira ordem, com todo o
rigor de um catedrático e a paixão de um místico”. Do lado de Franco o
desconcerto é algo evidente. Cioso de um encontro com pompa e circunstância,
fica desarmado por aquela discretíssima embaixada.
Uma década volvida, em
13.01.58, em entrevista ao jornal conservador francês Le Figaro, o
Generalíssimo não esconderá os seus sentimentos acerca de Salazar que, para ele
é “o mais completo e mais digno de respeito estadista que conheci. Olho-o como
uma personalidade extraordinária pela sua inteligência, o seu senso político, a
sua humanidade. O seu único defeito é a modéstia”.
Exercício de sedução, a
conversa entre os estadistas não foi fácil. Violando a regra estratégica de que
uma força cercada não faz manobras, Franco, fugindo para a frente, tenta
convencer Salazar de que os Aliados preparam a invasão de Portugal, facto que a
Espanha tomará então, a acontecer, como um acto de agressão contra si própria.
No plano interno, mostra a funda preocupação pela aliança dos Aliados aos
comunistas, face ao que só a esperança de que o III Reich liquide a Rússia lhe
dá algum alento. Inteligente, Salazar percebe o equívoco acerca da eventual
vitória a Leste e desloca o problema para o campo onde poderá estar mais à
vontade.
E adquire a certeza de
que a única razão decisiva que fará a Espanha entrar na guerra contra os
Aliados serão razões vitais de abastecimento, caso os víveres que lhe chegam
através dos intencionais “buracos” ao bloqueio económico, se venham a mostrar
insuficientes. E isso é algo que está ao alcance do Ministério da Guerra
Económica (MEW) britânico definir. E a política de bloqueio aligeirou.
Regressado de Sevilha no
dia seguinte, esgotado pela viagem e pela vertigem do que negociara, Salazar
trazia a mais formidável certeza para o futuro próximo da guerra: sabe que a
não beligerância espanhola se manterá.»
Este
elegante artigo de Pina do Amaral revela um pouco dessa inteligência de Salazar
em acção. E a simplicidade criteriosa do seu viver sem espectáculo. Mas sabendo
convencer quem se propunha convencer, numa época perigosa e dúbia, em que
conseguiu livrar o seu país ingrato das garras que dilaceraram outros com menos
sorte.
Como
somos ingratos, não queremos reconhecê-lo e preferimos “branquear” esse passado,
menosprezando-o, trocando os nomes que àquele pertenceram, segundo uma “ponte” de
partida para uma nova era, de muita presunção e de muita pobreza.
Ainda
ontem tal mesquinhez foi visível, nas reacções dos partidos à nova injecção de
dinheiros aos países necessitados da EU, para efeitos de desenvolvimento
económico. Logo toda a Oposição entoou chufas ao Governo da austeridade que
nunca tentara negociar a dívida, limitando-se a cumprir segundo as ordens
recebidas - (mas suponho que também por escrúpulo de honestidade que, por mim,
aprecio).
E foi por isso que não estranhei o ar radioso de António Costa, aproveitando o facto para logo
apontar o dedo triunfalmente acusador, senhor que se segue, que não descura o
trunfo a seu favor, como o galego na sua escada, já sem ambiguidade, pronto a subir.
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