Enviou-me João Sena o artigo “Não ter onde cair
morto” com a seguinte nota: «Apenas remeto. Não comento». Fiquei
sem saber se é da sua autoria, ou se lhe veio por email. Mas quem fez o texto
deve saber do que fala quando escreve.
Um texto carregado de indignação e o caso não é para
menos. Também eu não compreendo uma lei que permite que seja «perfeitamente
legal um cidadão ou cidadã ou uma família não ter qualquer bem em
nome próprio.» Sobretudo
se é o caso dum banqueiro que se mantém dos bens alheios, do sangue alheio, sem
outro contributo para a sociedade.
Dir-se-á que esses capitalistas dão emprego a muita
gente. Mas o termo “pindérico” do texto está muito bem aplicado
ao nosso capitalismo. Um capitalismo essencialmente de exploração, que emprega
muita gente com vencimentos de miséria.
Tenho pouca experiência do assunto, funcionária que fui de um Estado
também pindérico, mas, segundo o meu pai, relativamente criterioso, segundo a
fórmula que ele evocava: “O Estado paga mal, paga tarde, mas paga sempre”.
Mas lembro que em Lourenço Marques as empresas que melhor pagavam, respeitando
os direitos e as competências de cada trabalhador, eram aquelas que tinham dedo
inglês a geri-las, como a Shell, o John Orr, a Pendray e Sousa… Há dias li que
a empresa ROFF foi premiada por obedecer
a parâmetros de valorização e respeito humano, que a tornaram primeira entre as
empresas de cá. É claro que tem dedo estrangeiro a geri-la. Mas penso que
poderia servir de modelo a uma modificação de mentalidade na nossa parvónia de
falcatrua e discrepância social.
Leiamos o texto acusatório, contra os «pedintes por
profissão, que se lhes vê na cara” – altiva - os que nada têm em seu nome,
soldados desconhecidos, condenados à vala comum:
«Apenas
remeto. Não comento
«Não ter onde cair morto»
«A
notícia de que a família Espírito Santo não tinha um único bem em seu
nome elucidou-me sobre o tipo de sociedade em que vivemos,
aonde chegámos. Juristas meus amigos garantiram-me que é perfeitamente
legal um cidadão ou cidadã ou uma família não ter qualquer bem em
nome próprio. Nunca tinha colocado a questão da ausência de bens no
quadro da legalidade, mas no da necessidade. Acreditava que pessoas caídas
na situação de sem-abrigo, refugiados, minorias étnicas não enquadradas
como algumas comunidades ciganas podiam não ter nada em seu nome,
mas até já ouvira falar no direito a todos os cidadãos possuírem uma
conta bancária, um registo de bens, nem que fosse para prever uma melhoria
de situação no futuro. Considerava um acto de reconhecimento da
cidadania ter em seu nome o que pelo esforço, ou por herança era seu.
Chama-se a isso “património”, que tem a mesma origem de pai e de pátria,
aquilo que recebemos dos nossos antecessores e que faz parte dos bens
que constituem a entidade onde existimos.
Estes conceitos não valem para os Espírito Santo, para estes agora desmascarados e para os da sua extracção que continuam a não ter bens em seu nome, mas têm o nome em tantos bens, em paredes inteiras, em tectos de edifícios, em frontarias, em supermercados, em rótulos de bebidas.
O
caso da ausência de bens dos Espírito Santo trouxe à evidência o que o
senso comum nos diz dos ricos e poderosos: vivem sobre a desgraça alheia. Até
lhe espremem a miséria absoluta de nada possuírem. Exploram-na. No caso,
aproveitam a evidência de que quem nada possui com nada poder contribuir
para a sociedade para, tudo tendo, se eximirem a participar no esforço
comum dos concidadãos. Tudo dentro da legalidade e da chulice, em bom
português.
Imagino
com facilidade um dos seus advogados e corifeus, um Proença de Carvalho,
por exemplo, a bramar contra a injustiça, contra o atentado às
liberdades fundamentais dos pobres a nada terem, à
violência socializante e colectivista que seria obrigar alguém a
declarar bens que utiliza para habitar, para se movimentar por terra,
mar e ar, para viver, em suma. Diria: todos somos iguais perante a lei,
todos podemos não ter nada, o nada ter é um direito fundamental. Para
ter, é preciso querer, e os
Espírito Santo não querem ter, querem o direito de usar sem pagar. O mesmo direito do invasor, do predador.
A legalidade do não registo de bens em nome próprio para se eximir ao pagamento de impostos e fugir às responsabilidades perante a justiça é um exemplo da perversidade do sistema judicial e da sua natureza classista. Esta norma legal destina-se a proteger ricos e poderosos.
Quem
a fez e a mantém sabe a quem serve. Os Espírito Santo não são gente, são
empresas, são registos de conservatória, são sociedades anónimas, são
offshores com fato e gravata que recebem rendas e dividendos, que pagam
almoços e jantares. Não são cidadãos. As cuecas de Ricardo Espírito
Santo não são dele, são de uma SA com sede no Panamá, ou no Luxemburgo.
A lingerie da madame Espírito Santo é propriedade de um fundo de
investimento de Singapura, presumo porque não sou o contabilista.
Mas
a ausência de bens registados pelos Espírito Santos em seu nome
diz também sobre a sua personalidade e o seu carácter. A opção de se
eximirem a compartilhar com os restantes portugueses os custos de
aqui habitar levanta interrogações delicadas:
Serão
portugueses?
Terão alguma
raiz na História comum do povo que aqui
vive?
Merecem
algum respeito e protecção deste Estado que nós sustentamos e que alguns
até defenderam e defendem com a vida?
Ao
declararem que nada possuem, os Espírito Santo assumem que não têm, além
de vergonha, onde cair mortos!
O
ridículo a que os Espírito Santo se sujeitam com a declaração de nada a
declarar com que passam as fronteiras e alfândegas faz deles uns tipos
que não têm onde cair mortos, uns párias.
A declaração de “nada a declarar” em meu nome, nem da minha e mulher, filhos e restante família dos Espírito Santo, os Donos Disto Tudo, também nos elucida a propósito do pindérico capitalismo nacional: Os Donos Disto Tudo não têm onde cair mortos!
O
capitalismo em Portugal não tem onde cair morto!
Resta
ir perguntar pelas declarações de bens dos Amorins, o mais rico dos
donos disto, do senhor do Pingo Doce, do engenheiro Belmiro,
dos senhores Mellos da antiga Cuf, dos senhores Violas, dos Motas da
Engil e do senhor José Guilherme da Amadora para nos certificarmos se
o capitalismo nacional se resume a uma colecção de sem abrigo que não
têm onde cair mortos!
É
que, se assim for, os capitalistas portugueses, não só fazem o que é
costume: explorar os pobres portugueses, como os envergonham.
Os
ricos, antigamente, mandavam construir jazigos que pareciam basílicas
para terem onde cair depois de mortos – basta dar uma volta pelos
cemitérios das cidades e vilas. Os ricos de hoje alugam um talhão ao ano
em nome de uma sociedade anónima!
Os
Espírito Santo, nem têm um jazigo de família! Eu, perante a evidência da
miséria, se fosse ao senhor presidente da República, num intervalo da
hibernação em Belém, declarava o território nacional como uma zona de refúgio
de sem-abrigo, uma vala comum e acrescentava a legenda na bandeira
Nacional:
“Ditosa Pátria que tais filhos tem... sem
nada!”» João Sena
|
Diremos que são lúcidos, como o Álvaro de Campos do
poema infra, na melancolia de quem por vezes se sentirá “ao lado da escala
social”, embora não por convicção, mas por lucidez prática:
|
«Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que
se lhe vê na cara
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante,
dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira
onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar...).
Sinto urna simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
É estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
Às normas reais ou sentimentais da vida —
Não ser Juiz do Supremo, empregado certo, prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento de justiça, ou capitão de cavalaria
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos
novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para
chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão
para isso supor.
Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior
para ela?
Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem,
e isso é que é ser pedinte.
Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um
Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta
gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso
acontece.
Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido
translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.
Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua
melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos
olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco,
àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos
tristes por profissão.
Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se
importa!
Coitado dele que tem tanta pena de si mesmo!
E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e
vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.
Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da
minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.
Já disse: Sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: Sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.»
Álvaro de Campos
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