domingo, 25 de janeiro de 2015

«Tratar da constipação quando temos uma pneumonia»



A frase ouvi-a eu ontem, à representante do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, figura seráfica que vai escorregando noções de boa formação moral, olhos azuis de menina modesta que acusa, acusa, como se não soubesse fazer mais nada neste mundo do que acusar, que para isso foi ensaiada, no seu discurso paralelo aos demais discursos da mesma banda, gotas de água caindo do telhado, monocórdicas, intransigentes, puras e embaladoras, numa solidariedade vivificadora da terra ressequida dos mais necessitados. Para ela não há desvios na sua visão dos acontecimentos, dura e inflexível no seu show macio de anjo azul que se preza, ditando pareceres condenatórios. Do lado do Governo apenas vê o negativo, sem cuidar das contingências, e sem se espantar dos gastos extraordinários da população que ela defende como pobrezinha, no espectáculo de uma tal Violeta - tão sintomático de pobreza real, de facto, mas não, afinal, no sentido pecuniário do termo.
Vem mais dinheiro da Europa e isso é mais um motivo para se acusar o Governo - Catarina Martins também - Governo a quem todos os homens e mulheres cultos deste nobre país diziam que era preciso renegociar a dívida, antes de a pagar. Também foi a opinião do Sr. Mário Draghi, homem rico, generoso e dirigente actual do BCE, o qual, contrariando a dura Srª Merkel, mulher de trabalho e exigente de boas contas, resolveu injectar mais dinheiro nas economias esfarrapadas, na tentativa de as erguer.
Mas ao invés de nos alegrar, tal decisão de imediato provocou rixas e novos ataques ao Governo, lembrando o espectáculo dos muitos cães agarrados ao osso, cada qual rosnando mais alto, sem deixarem o Governo parar para ponderar na forma de proceder.
Cuido que Catarina Martins entende que tal dinheiro serve apenas para mezinhas de tratamento de constipação, não chega para a nossa pneumonia.
Assim somos, ab initio, míseros, mesquinhos e ávidos, saecula saeculorum. Espertalhões, sempre, adeptos da fórmula, segundo o nosso Vieira, "Comei-vos uns aos outros", aplicada aos peixes apenas para disfarçar, com a particularidade de os maiores devorarem em maior quantidade. É certo que não é exclusivo nosso. Mas se tantos o escreveram entre nós, senhores, além disso, de uma “Arte de Furtar” do século XVII, decisiva na acusação da corrupção geral, se o próprio João de Deus o diz tão airosamente, que havemos de fazer para o impedir, frágeis que somos? Riamos com João de Deus:

O Dinheiro
O dinheiro é tão bonito,
Tão bonito, o maganão!
Tem tanta graça, o maldito,
Tem tanto chiste, o ladrão!
O falar, fala de um modo...
Todo ele, aquele todo...
E elas acham-no tão guapo!
Velhinha ou moça que veja,
Por mais esquiva que seja,
                            Tlim!
                            Papo.

E a cegueira da justiça
Como ele a tira num ai!
Sem lhe tocar com a pinça;
E só dizer-lhe: «Aí vai...»
Operação melindrosa,
Que não é lá qualquer coisa;
Catarata, tome conta!
Pois não faz mais do que isto,
Diz-me um juiz que o tem visto:
                            Tlim!
                            Pronta.

Nessas espécies de exames
Que a gente faz em rapaz,
São milagres aos enxames
O que aquele demo faz!
Sem saber nem patavina
De gramática latina,
Quer-se um rapaz dali fora?
Vai ele com tais falinhas,
Tais gaifonas, tais coisinhas...
                            Tlim!
                            Ora...

Aquela fisionomia
É lábia que o demo tem!
Mas numa secretaria
Aí é que é vê-lo bem!
Quando ele de grande gala,
Entra o ministro na sala,
Aproveita a ocasião:
«Conhece este amigo antigo?»
— Oh, meu tão antigo amigo!
                            (Tlim!)
                            Pois não!

João de Deus, in 'Campo de Flores'

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