terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Será que é?




«A caricatura é mais forte que as restrições e que as proibições. É imortal porque é uma das facetas daquele diamante que se chama verdade.»  Eça de Queirós -  leio no cabeçalho da última página do D.N de9/1/15.

De facto, a caricatura favorece o nosso comodismo, pela percepção imediata do traço avultado com que o caricaturista desejou acentuar o que a sua sensibilidade, parti pris ou intenção crítica captaram, geralmente em propósito satírico, não exigindo grande esforço de leitura gráfica ou iconográfica para a risada grossa da conivência com o grotesco. A desmistificação dos valores que hoje se projecta no cartunismo, já a encontráramos em Rabelais, a desmesura, a licenciosidade, a anarquia, a oposição ao preconceito sendo motivos da sua criatividade, de extraordinária dimensão e causadores do riso, (embora em leitura prolongada), segundo o seu conceito de que “Le rire est le propre de l’homme”.
O que leva um sorriso misterioso como o de Mona Lisa a uma vigília demorada de observadores em frente do quadro, para se decifrar nos olhos, no rictus bucal se se trata de uma postura de seriedade, ou de breve sorriso que os seus olhos parecem traduzir, e simultaneamente a nitidez clássica da paisagem envolvente da Gioconda, contrastando com a paisagem de escolas pictóricas mais recentes, de impressões e colorido, com sugestões apenas, por vezes, das figuras, num universo de captação e de prazer imediatos, percebemos quanto evoluiu o conceito de arte, em paralelo, aliás, e em consequência do aburguesamento social, de gente mais sensibilizada para colher o breve, o imediato, reduzido o esforço de atenção ao prazer da cor e da deformação dos traços de alusão satírica.
Eça tem bem a percepção de que as pinceladas dos seus descritivos figurativos, redundam, as mais das vezes, na criação de tipos sociais, no avolumar do traço caricatural, bem ao contrário de Balzac, Stendhal, Zola, Flaubert, cujo conhecimento da psicologia humana se traduziu em minúcia e autenticidade das personagens, que não excluíam a intenção irónica, em que Flaubert foi mestre, e bem assim Balzac.

«A caricatura é mais forte que as restrições e que as proibições. É imortal porque é uma das facetas daquele diamante que se chama verdade.»
Eça, todo vibratilidade e versatilidade, sentiu bem, todavia, a diferença entre ele e os seus congéneres na criação das suas figuras. Afirma-o em cartas aos amigos, com mágoa, por criar fantoches sem vida interior, na sua galeria social, tipos de farsa, caricaturais, que nos fazem rir. Mas por isso mesmo fortes, no traço forte, na sua intenção de condenação e de risada imediata.
Transcrevo uma carta de Eça a Ramalho, comprovativa destes dizeres, e, simultaneamente, da humildade intelectual de Eça, no reconhecimento dessas suas diferenças dos seus contemporâneos franceses:

« Eu por aqui – não fazendo, não pensando, não vivendo senão Arte. Acabei O Primo Basílio – uma obra falsa, ridícula, afectada, disforme, piegas e papoilosa – isto é, tendo a propriedade da papoila: -sonolificente. De resto Você lerá – isto é, dormirá. Seria longo explicar como eu – que sou tudo menos insípido – pude fazer uma obra insípida: …. Os personagens – e Você verá – não têm a vida que nós temos: não são inteiramente des images découpées – mas têm uma musculatura gelatinosa: oscilam, fazem beiço como os queijos da Serra, espapam, derretem. Há – inquestionavelmente – alguma cena, alguns traços correctos: e há maravilhas de habilidade, da habilidade de métier; enfim, sou uma besta. E o que é triste é que me desespero por isso. Nunca hei-de fazer nada como o Pai Goriot; e você conhece a melancolia em tal caso, da palavra nunca! Não falo naturalmente do Primo Basílio – isso é uma ninharia, abaixo da crítica de um crítico de Penafiel, mas mesmo este novo romance (“A Capital”) – de que estou tão contente – não dá, não sai. Faço mundos de cartão… não sei fazer carne nem alma. Como é? Como será? E todavia não me falta o processo: tenho-o, superior a Balzac, a Zola, e tutti quanti. Falta qualquer coisinha dentro: a pequena vibração cerebral; sou uma irremissível besta!» Newcastle, 3 de Novembro de 1877 (in "Correspondência" Vol. IV de OBRAS DE EÇA DE QUEIRÓS)

Simultaneamente, e segundo o dístico no cabeçalho da última página do DN, Eça é bem o homem que se sente feliz consigo próprio, pois com a sua arte ele pôde determinar o alcance social da caricatura, o traço forte e saliente tornando-se espelho do grupo social que o reflecte. Daí a função daquela, semelhante à da comédia de costumes: “Ridendo castigat mores”.

O certo é que o tal “diamante que se chama verdade”, pode ser facetado de diversas maneiras, segundo fontes de opinião diversificada, não deixando de ser um conceito subjectivo, tal como os demais conceitos, cuja verdade é hoje posta em causa, em liberdade democraticamente flexível.
Daí que as caricaturas do tipo “Charlie Hebdo”, na desmesura da sua verdade, tenham, como efeito, muitas vezes, uma risada amarela de resposta. Com consequências bem mais sombrias do que no tempo de Eça.

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