A
leitura de um passo das “Lettres Philosophiques” de Voltaire, que serviu de corolário a uma breve análise sobre
“D. Maria I”, como biografia histórica assinalada por subtil
intenção satírica da sua autora – Jenifer Roberts – levou-me, uma vez mais, a
recrear-me com as «Cartas de Inglaterra», de Eça de Queirós, para nele
procurar um antídoto contra algum despeito – (a par do prazer e reconhecimento
por uma obra importante e sedutora) - que resultara da leitura dessa biografia
real. Em Eça pude desforrar-me, rindo do retrato trocista que o escritor
português faz dos ingleses e do seu carácter, do seu Times, das suas
conquistas, da sua arrogância, da sua autoconvicção de superioridade, sobre o
universo inteiro.
É
assim também o texto seguinte, sobre o Inverno em Londres, que no seu
descritivo impressionista, nos lembra tantas outras páginas de tanta
extraordinária beleza, precisão e graça semeadas ao longo da obra queirosiana
multifacetada. E nos traz à memória o fleumático e original Craft, mas também
as obras de Óscar Wilde, e os retratos e intrigas dessa nata de “humanidade
superior” que nelas se desenha. Ou mesmo as obras de Charles Dickens, nos
contrastes que estabelece entre a «humanidade» inglesa superior e a inferior,
ou outras obras como as de Jane Austen ou das irmãs Brontë, os filmes sobre
Sherlock Holmes, e o clima sombrio de
Londres, “A Volta ao Mundo em 80 dias” e a figura direita e absurdamente
impassível do actor David Niven, a contrastar com a do remexido Cantinflas, ou
até a série britânica “A família Bel Ami” que nos dá modelos de
contrastes nos hábitos como nos comportamento entre os lordes, as
ladies e a correcta e dedicada criadagem, tal como encontramos igualmente em
“My fair Lady” …
Um
encanto, poder relembrar o divino Eça, transcrevendo-o sem grande custo, da generosa
Internet. Mas o retrato sobre os Ingleses e a sua acção e comportamento no
mundo estão patentes em muito mais "Cartas da Inglaterra”, que pedem a sua
releitura.
Este,
sobre o clima de Londres, faz-nos pensar que o frio, forçando à acção, à
meditação e ao estudo, justifica a superioridade das competentes raças nórdicas
sobre as meridionais do salero ou da dolência, sem, contudo, lhes justificar o
desdém, que, já Cristo o fizera sentir, ninguém é suficientemente isento de culpa ou
vício para lançar pedrada assim, mesmo em democracia:
«O inverno em Londres»
«Eis
aí o inverno. Já todos os dias o encontro, e, agora mesmo, lhe ouço fora, na
rua, sob a névoa tristonha desse fim de outubro, a voz dolente e vaga: não é o
velho semideus de atributos mitológicos, com a barba em flocos de neve sobre o
manto branco de neve, soprando nos dedos, e o clássico feixe de lenha a
tiracolo: é um rapagão enfarruscado, de casquete e chicote em punho, que vai
conduzindo uma carroça negra com um forte percheron
aos
varais, pelo macadame já endurecido da geada, e soltando de porta em porta, o
seu pregão melancólico: Coals! coals!
(carvão! carvão!)
Estão,
pois, findos os dias purpureados do lindo outono inglês! Nada iguala o encanto
suavizador e meigo dos meados de outubro nestes condados do Sul. Um passeio, ao meio da tarde, nas
pitorescas margens do Severn, ou ainda ao longo do Avon, riba que a memória de
Shakespeare torna quase sagrada, ou pelas colinas amáveis de Surrey, é mais belo,
o mais útil repouso que pode ter o espirito sobressaltado, cansado dos livros,
ou do duro movimento da vida.
Tem-se
aqui alguma coisa daquela paz etérea, que os poetas pagãos sonhavam nas perspectivas inefáveis dos Elíseos: somente a natureza
particular do Norte, as linhas da arquitectura saxónia, o arranjo das culturas,
dão a feição romântica e elegíaca que falta á paisagem latina.
Caminha-se
n'uma luz ligeira, de um dourado triste, de um enternecimento quase magoado: o
verde das relvas sem fim que se pisam, verde repousado e adormecido sob as
grandes ramagens das árvores seculares e aristocráticas, solenes, isoladas, imóveis
n'um recolhimento religioso, leva a alma insensivelmente para alguma coisa de
muito alto e de muito puro: há um silêncio de uma extraordinária limpidez, como
o que deve haver por sobre as nuvens, um silêncio que não existe na paisagem
dos climas quentes, onde o labor incessante das seivas muito forte parece fazer
um vago rumorido, um silêncio que pousa no espirito com a influência de uma
carícia. E a cada momento são fundos encantadores de paisagem, de um vaporizado
azul, com alguma torre d'Abadia coberta de heras, que surge d'entre robles, ou
uma rica avenida de parques, onde se entrevêem vestidos claros correndo sobre
as relvas, ou a histórica arquitectura de um castelo, de bandeira feudal na torre,
que de repente aparece numa elevação, com os seus terraços de mármore escuro,
os grandes prados onde pastam ou repousam os animais de luxo, os faiscantes
meandros do rio entre a verdura e sons tristes de trompa, vindos da
profundidade dos arvoredos...
D'aqui
a dias, porém, por colina e vale, só haverá a triste névoa húmida que dura meses,
ou a neve redemoinhando ao vento...
Esta
monotonia, que começa escurecendo os campos desde novembro, vai causar este ano
uma inovação excelente nos costumes sociais da Inglaterra. Vai haver, de
dezembro a maio, uma estação d'inverno em Londres.
Como sabem, Londres só é habitado desde os começos de maio até
aos primeiros dias quentes de agosto. O resto do ano, Londres é a caída Palmira
ou a tenebrosa planície do deserto da Petreia. Ficam lá, é verdade, entre três
a quatro milhões de humanidade: mas é uma humanidade subalterna, feita de
barro vilão, sem valor social em Inglaterra: é a humanidade que não tem castelos,
nem parques de três léguas, nem o seu nome no Livro d'Ouro, nem yachts de luxo
para bordejar nas costas da Escócia; é a humanidade que não tem nas artérias o
famoso sangue normando, esse sangue invejado, mais precioso que o de Cristo,
cantado por todos os poetas da corte, e que foi importado pelos brutamontes
cobertos de ferro, e peludos como feras, que acompanhavam a estas ilhas
Guilherme da Normandia; é enfim a humanidade que Carlos Stuart, o Bem-amado,
chamava a canalha, e que o grande sacerdote da Bela Helena, o pobre
Offenbach, designava, com tanto critério, pelo nome de vil multidão: — é o
trabalhador, o artífice, o artista, o professor, o filósofo, o operário, o
romancista, tudo o que pensa, cria e produz.
É
esta fresca ralé que fica em Londres: de modo que apenas a humanidade
superior, os dez mil de cima, como aqui tão pitorescamente se diz, partem para
os seus castelos, as suas vilas á beira mar, ou os seus yachts. —Londres,
apenas habitado pela turba abjecta, torna-se sobre a face da terra, como
a lamentável Cacilhas. Nenhum gentleman que se respeite e queira
manter o seu bom nome social ousaria confessar que esteve em Londres em
janeiro: correria o risco de ser tomado por um tendeiro, ou, pior, por um filósofo,
um poeta, um desses seres rastejantes, vis como o lixo, sem castelo e sem matilha de cães, que nenhuma Lady quereria ter no seu «rol de visitas».
Se
um gentleman, tendo negócios instantes em Londres, é forçado a vir a este
deserto de plebeus, guarda um incógnito severo; não chegará talvez a pôr barbas
postiças; mas só se arrisca pelas ruas no fundo escuro de um cupé com os estores
descidos, e o paletó rebuçando-lhe a face. Todavia uma aventura tão poderosa
poucos a ousam!
Pois
bem, tudo isto se vai reformar! E este ano será moda passear em Piccadilly, ou
florear de rosa ao peito em Pall-Mall, em pleno janeiro, na espessura dos
nevoeiros.
Esta
revolução considerável foi, como todas as fecundas revoluções, tramada, pregada,
popularizada pelas mulheres. Havia longos anos que estes anjos sofriam com impaciência
a melancolia da vida do campo, durante o longo inverno saxónio. Ainda, nos
primeiros tempos, depois de deixar as glórias de Londres e os esplendores da
season, a existência era tolerável. Havia as regatas elegantes de Cowes; ia-se
estar uma semana na ilha de Wight; depois vinham as festas da abertura da caça;
seguia-se a época dos yachts, as viagens às costas da Noruega, às Hébridas, às
praias elegantes da Normandia; depois, quando a corte está na Escóca, vinha a
caça do veado, os bailes de gellies das montanhas... Enfim, vivia-se.
Mas,
com a chegada de dezembro, da neve, uma formidável lei social, a fashion,
obrigava os dez mil de cima a recolherem-se aos seus castelos, à
solidão do campo. E aí começava para as damas o tédio memorável!
Quando
se não tem um château e parque como os de Inglaterra, pode parecer um sonho de
paraíso o viver nessas faustosas residências, entre maravilhas d'arte, acumuladas
por gerações, com mobílias de duzentos contos, um serviço de sessenta criados,
vinte cavalos na cocheira e um parque de três léguas, um parque
de romance, para passear sobre a neve dura quando o céu brilha claro. Mas a
desgraçada dama, desde o seu primeiro dente acostumada a tantos esplendores, já
lhes não encontra encanto; uma simples corrida, n'um velho fiacre de Londres,
de loja em loja, é-lhe cem vezes mais doce. Depois, a vida do castelo é de um
vazio pardo e tristonho. Os homens, esses, de manhã, têm a caça, os galopes
furiosos, devorando prados, saltando sebes atrás de uma raposa espavorida, ao
grito bárbaro de hally-hó! Depois á noite, tomado o banho e vestida a casaca,
tem o grog forte no fumoir. Mas as desgraçadas damas? Todas bebem grog—mas
raras são as que caçam. O dia é-lhes lúgubre. Uma burguesa, em Inglaterra, tem
sempre uma ocupação, mesmo nas existências ricas: borda, pinta em porcelana, faz camisas para os pequenos Patagónios,
ensina a ler os filhos dos caseiros, escreve as suas memórias ou corresponde-se
com um Teólogo sobre pontos difíceis de doutrina.
Mas
um dama das dez mil não faz nada; os seus grandes talentos, a toilette, a graça
de receber, a intriga politica, o brilho da conversação, o chic estético,
cousas em que prima, não lhe servem no isolamento relativo do castelo, sob as
torrentes da chuva. O seu palco natural é o salão de Londres. Ali no
campo, nas longas galerias onde pendem as bandeiras que os seus antepassados
tomaram em Azincourt ou Poitiers, ou, se os avozinhos nunca invadiram a França,
as bandeiras compradas no antiquário da esquina, Mylady boceja; ou estendida num
sofá, na sua robe-de-chambre de brocado branco de Génova, com uma novela caída
no regaço, olha os flocos de neve empoando os grandes carvalhos do parque...
Depois
vem a noite. É o pior. Os homens que fizeram talvez cinco léguas de galope atrás
das raposas, ou que se estiveram adestrando em jogos atléticos, têm sono. De gardénia
na casaca e pérola negra na camisa, estendidos para o fundo do sofá, derreados,
meio adormentados pelo Nocturno de Chopin que um anjo louro preludia ao fundo
da sala, são tão inúteis para a flirtation, o espirito, a intriga, o amor, como
se fossem empalhados .
Debalde
as pobres damas fizeram uma toilette de duzentas libras: debalde resplandecem,
ás mil luzes de cera, os seus ombros de deusas. De nada vale. O gentleman anseia
por deixar a sala, ir reconfortar-se com o seu brandy and soda, estirar aqueles
membros que a raposa cansou, em lençóis bem perfumados e bem bassinés, e
ressonar forte.
Esta
situação era intolerável. E os homens mesmo sofriam. Galopar n'um cavalo de preço
sobre a terra dura da neve, ao ladrar da matilha, por uma manhã de brisa fria—tem
encanto. Mas pode-se isso comparar á delícia de ir tagarelar para o club, ter
todas as noites três ou quatro bailes,
fazer frases sobre a questão do Oriente, e cear com Miss Fanny, num quente
boudoir de veludo, enquanto fora a plebe patinha na lama de Londres?! Não, não
se pode comparar.
E
por isso veio o momento psicológico, como diz esse ilustre homem de prosa, o sr.
De Bismarck, em que ladies e lords concordaram que o inverno no campo era
bom para os lobos; e que para pares de Inglaterra, Londres era preferível.
E aí está como se vai ter esta cousa inesperada na vida inglesa—o inverno em
Londres. »
(In
«Cartas de Inglaterra”, Eça de Queirós)
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