Publicado no “A Bem
da Nação”.
Um texto que historia e
moraliza, sem medo dos detentores da verdade - muitas vezes os do mau gosto e que nunca se perguntam: “Quod sensus”?
«EU NÃO SOU CHARLIE - JE NE SUIS PAS CHARLIE»
Eu condeno os atentados em Paris, condeno todos
os atentados e toda
a violência. Apesar de muitas vezes xingar e esbracejar no meio de discussões,
sou da paz e esforço-me para ter auto controle sobre as minhas emoções…
Lembro-me
da frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me pois faço parte da
humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”.
Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro, ninguém o merece,
acredito na mudança, na evolução, na conversão. Em momento nenhum eu quis que
os cartunistas da Charlie Hebdo morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem,
que mudassem… Ainda estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa
imprensa, à honestidade que a revista Veja, a Globo e outros veículos da
imprensa brasileira promoveram nesta última eleição.
A
Charlie Hebdo é uma revista importante em França. Fundada em 1970, é mais ou
menos o que foi o Pasquim. Isso lá em França. 90% do mundo (eu inclusive) só
conheceu a Charlie Hebdo em 2006 e já de uma forma bastante negativa: a revista
republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como
“Liberal-Conservador”, ou seja, a direita europeia). E porque fez isso?
Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais…
O
editor da revista na época era Philippe Val. O mesmo que escreveu um texto em
2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados” (o que
gerou críticas da colega de revista Mona Chollet (críticas que foram resolvidas
com a demissão sumaria dela). Ele ficou no comando até 2009, quando foi
substituído por Stéphane Charbonnier, conhecido só como Charb. Foi sob o
comando dele que a revista intensificou as charges relacionadas ao Islão, ainda
mais após o atentado que a revista sofreu em 2011…
A
França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das
ex-colónias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na
sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de
segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões. Após os atentados do World
Trade Center, a situação piorou.
Alguns
chamam os cartunistas mortos “heróis” ou os “gigantes do humor politicamente
incorrecto”, outros muitos chamam-nos “mártires da liberdade de expressão”. Vou
colocar na conta do momento, da emoção. As charges polémicas do Charlie Hebdo,
como os comentários políticos de colunistas da Veja, são de péssimo gosto, mas
isso não está em questão. O facto é que elas são perigosas, criminosas até, por
dois motivos.
O
primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana há um princípio que diz que o
Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é um preceito
central da crença Islâmica e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos.
Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a imagem de Nossa
Senhora para atacar os católicos…
Qual
é o objectivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islão esteja tão
banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porquê? Para quê?
Note
que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos
específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islão,
por si só. Há décadas, os culturalistas já falavam da tentativa de impor os
valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia é sempre um acto
imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações
islâmicas sentiram-se ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais
franceses, famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerância (ver o
Caso Dreyfus), como o STF no Brasil, que foi parcial nas decisões nas últimas
eleições e no julgar com dois pesos e duas medidas casos de corrupção de
políticos do PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a revista.
Foi
como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges
e textos contra o Islão e contra o cristianismo. Se tem dúvidas, procure no
Google e veja as publicações que eles fazem, não tenho coragem de as publicar
aqui…
Mas
existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os
muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islão estavam sempre
caracterizados por suas roupas típicas e sempre portando armas ou fazendo
alusões à violência, com trocadilhos infames com “matar” e “explodir”…. Alguns
argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do
momento em que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma
generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele
muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que
aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e
disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros
que assaltam…
E
aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de
muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a
frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A
piada tem esse poder. Mas piadas são sempre preconceituosas, elas transmitem e
alimentam o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as
pessoas começam a acreditar que todo o árabe é terrorista. Se esse árabe
terrorista dos quadradinhos se veste exactamente da mesma forma que seu vizinho
muçulmano, a relação de identificação-projecção é criada mesmo que
inconscientemente. Os quadradinhos, capas e textos da Charlie Hebdo promoviam a
Islamofobia. Como toda a população marginalizada, os muçulmanos franceses são
alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas.
Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é
hipócrita. Com uma caneta prega-se o ódio que mata pessoas…
Uma
das defesas comuns ao estilo do Charlie Hebdo é dizer que eles também
criticavam católicos e judeus…
Se
as outras religiões não reagiram à ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é
obrigado a ser ofendido calado.
“Mas
isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã
consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior
na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é facto que o atentado poderia
ter sido evitado. Bastava que a Justiça tivesse punido a Charlie Hebdo no
primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a Veja pelas suas mentiras.
Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.
“Mas
isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos
significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se
decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas
sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos
fomentam o ódio e por isso devem ser evitados, como o racismo ou a homofobia,
isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode
usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso
também é censura. Nem toda censura é ruim…
Deixo
claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou
dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser
banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos
devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é
melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que de
balas de fuzis ou bombas.
Voltando
a França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do
que outros e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine
Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida.
Foi a eles que a guerra foi declarada”. Essa fala mostra exactamente as raízes
da islamofobia. Para os sectores nacionalistas franceses (de direita, centro ou
esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em
seguir “o modo de vida francês”. Essa colónia, que não se mistura, que não
abandona a sua identidade, é extremamente incómoda. Contra isso, todo o tipo de
medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar a sua religião
até… charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas
do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas.
De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de
culto islâmico em França foram atacados, um deles com granadas!, nessa
madrugada, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen,
que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos
ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos”, e ela sabe disso).
Por
isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o acto bárbaro do atentado, eu não sou
Charlie. Je ne suis pas Charlie.
10/01/2015
Leonardo Boff
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