A questão Charlie
vai esmorecendo, ultrapassada por novos “atentados” – à bolsa, ao pudor, à
paciência, ou seja lá o que for que o tempo implacável vai trazendo
sucessivamente, a lembrar que somos mortais e esquecidos, embora não nos ódios,
que até os espectros nos convidam a vingar-nos, como aconteceu com o espectro
do pai de Hamlet, morto, ao que parece, pelo rei seguinte, Cláudio, que o
substituiu na governança do reino da Dinamarca e no tálamo conjugal, junto de
sua viúva Gertrudes, mãe de Hamlet. O pai de Hamlet não suportou tal ofensa e
fez-se representar pelo seu espectro junto do filho transtornado, convidando-o
a vingar-se. Contra a estranheza do seu amigo Horácio - e até do oficial da
guarda, Marcelo, que anteriormente afirmara que algo de podre havia
no Reino da Dinamarca - Hamlet observa, ciente da sua verdade a respeito
das ordens do espectro: “Há mais coisas na terra e no céu, Horácio,
do que sonha a vossa filosofia”. São histórias de outrora, mas histórias
fortes, mais que as de agora, mais elegantes também, na efabulação e na
expressividade dos sentimentos e na dimensão das réplicas. Um tempo actual mais
exposto, o palco das enormidades do “algo de podre” assente no mundo inteiro, traduzindo-se
na bestialidade, perante os espectadores da Terra, quer na criminalidade
cozinhada à vista, quer na reacção de apoio espectacular das gentes defendendo
a causa da liberdade em silêncio submisso e com desenho reivindicativo de
partilha, “Je suis Charlie”, disparando como bala, mais ou menos conscientemente,
mais ou menos infantilmente.
Apesar da filosofia ou dos
conceitos moderados de alguns, que tentam disciplinar as mentes num sentido de
racionalidade e sem demagogia. Tal é o caso do artigo claro e sereno do Juiz
Pedro Vaz Patto, saído no Público de 23/1/2015
Só que as palavras serenas, segundo
a parte contrária, não são tomadas, naturalmente, em conta, cada um impondo a
sua voz, num mundo precipitando-se no nada:
«Ser ou não ser Charlie»
Pedro
Vaz Patto
«A alternativa ao fanatismo fundamentalista não é a
liberdade sem limites, nem uma sociedade onde nada é sagrado.
Foi com viva comoção que
muitos assistiram à grande manifestação que se seguiu aos atentados de Paris,
um grito de repúdio do terrorismo. A frase mais ouvida, Je suis Charlie, para
muitos exprimia, antes de tudo, a solidariedade para com as vítimas, mesmo da
parte de quem nunca se identificou com a linha ideológica do jornal Charlie
Hebdo.
Mas por detrás dessa palavra de ordem também se nota a
vontade de apresentar o estilo que tem caraterizado esse jornal (a sátira que
não reconhece limites e ofende gravemente o que há de mais sagrado para crentes
de várias religiões) como o ícone mais representativo da sociedade de liberdade
e tolerância em que vivemos e queremos continuar a viver. Isto já não me parece
aceitável.
Subjacente a esta ideia está um conceito de liberdade
individualista, que não se detém diante do respeito pelo outro, pela sua
dignidade e pela sua sensibilidade. Para esta visão, só a própria liberdade
será sagrada; mas uma liberdade que se torna vazia, um fim em si mesmo e não um
meio para alcançar a verdade e a realização pessoal no relacionamento com os
outros.
A liberdade de expressão tem limites em qualquer
sociedade livre e democrática.
Quem instiga à prática do crime e do terrorismo (como
fazem alguns dos mentores de atos como os dos atentados de Paris) claramente
ultrapassa esses limites. Nesta ocasião, o próprio Governo francês participou,
pelo crime de propaganda do terrorismo, de um polémico ator, Dieudonné, que
afirmou: Je suis Coulibaly (um dos autores de um dos atentados). Em Itália, decorre
atualmente uma campanha contra o racismo em que se afirma, numa alusão ao
insulto racista: "As palavras também podem matar". Em sistemas
jurídicos como o português, a difamação e a injúria (isto é, a imputação a
outrem de factos desonrosos e a emissão pública de juízos atentatórios da honra
de outrem) são crime. Há que distinguir a crítica de atos, que deve ser livre,
da ofensa que atinge a dignidade da pessoa visada, seja ela quem for.
O que é próprio das sociedades livres e democráticas é
o livre debate de ideias. A
crítica da religião islâmica, como a da religião cristã ou das religiões em
geral, não pode deixar de ser livre. Nem há que temer esse debate e essa
crítica, porque às ideias pode sempre responder-se com outras ideias, e a
Verdade impõe-se por si, pela luz e força que lhe são intrínsecas. É
diferente da crítica motivada às religiões a falta de respeito pelos símbolos e
figuras tidos por sagrados, o achincalhar gratuito desses símbolos e figuras, a
ofensa aos sentimentos religiosos das pessoas. Às ideias pode responder-se
com outras ideias e assim se gera o diálogo e o debate. Os insultos já saem
fora do diálogo e do debate racional. Surge sempre a tentação de responder aos
insultos com outros insultos, e assim se gera a violência verbal, que nada tem
a ver com o debate que é próprio de sociedades livres e democráticas.
É verdade que os tribunais são cada vez mais
reticentes no reconhecer o respeito pelos sentimentos religiosos das pessoas
como limite à liberdade de expressão. Talvez isso se explique pelo peso da
memória de épocas em que a religião serviu para limitar a liberdade de
expressão de ideias, ou também por preconceito laicista (não liberal) contra a
religião. Parece que há “dois pesos e duas medidas”: aceitam-se mais
facilmente limites à liberdade de expressão noutros âmbitos, como quando estão
em causa discriminações em razão da raça, ou, mais recentemente, da orientação
sexual (desapareceu a sátira a pessoas homossexuais que, há alguns anos,
era muito comum em programas humorísticos, e isso é de saudar, mas já não o é a
tentativa de limitar a expressão de ideias contrárias à prática homossexual).
Mas não pode ignorar-se que, para muitas pessoas, não
só uma ofensa verbal pode ferir mais do que uma ofensa física, como a ofensa ao
que para elas é mais sagrado, aos seus sentimentos religiosos, fere mais do que
uma ofensa à sua pessoa ou à sua família.
Nada disto justifica o homicídio terrorista, ou atenua
a sua gravidade. Matar e odiar invocando o nome de Deus é também uma blasfémia
(di-lo o Catecismo da Igreja Católica, no seu n.º 2148), talvez a mais grave de
todas.
Mas a alternativa ao fanatismo fundamentalista não é a
liberdade sem limites, nem uma sociedade onde nada é sagrado. A alternativa ao
fundamentalismo é uma sociedade de diálogo entre religiões e entre crentes e
não crentes. Um diálogo que comporta a liberdade do debate de ideias e da
crítica, mas também o respeito pelo outro e pela sua sensibilidade. O diálogo
serve para construir a paz e a fraternidade, o insulto não serve.»
Juiz; presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz
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