terça-feira, 20 de janeiro de 2015

«Nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece»



Entre os três artigos que neste domingo pertencem à crónica “Dias Contados”, de Alberto Gonçalves (D.N., 18/1/15), sendo o primeiro artigo ainda em torno dos Charlies e dos seus direitos, destaco os dois últimos – “O Mistério da Educação” (13/1), sobre problemas da Educação, “Lindo Serviço” (14/1) a respeito da mudança da administração da RTP e do comentário seguinte, que ele acha humorístico, de Maria Rueff, a quem ele nunca concedeu, contudo, o atributo de humorista: “Conheço o Nuno Artur Silva há vinte anos. No fundo, o que eu quero mesmo é que ele devolva à RTP a capacidade de ser Charlie.”
Julgo que a frase de Maria Rueff quer apenas referir-se, na questão Charlie, a si mesma, a Ana Bola e outros actores que com elas contracenaram, em grotescas figuras de imitação e troça, que, provocando o riso imediato pelo reconhecimento da figura real que os seus bonecos distinguiam em ataque directo, de desmesura burlesca, visando sobretudo os governantes, não passavam de pura farsa, em caricaturas reconhecidas, chamariz do riso alvar, bem distante da ironia mais subtil que nos dá a comédia – não nossa, infelizmente - expressiva das sinuosidades dos caracteres humanos, e alcançando uma maior dimensão crítica ou satírica, se não mesmo dramática, até por inadaptação à realidade – caso do “Misantropo” de Molière, cuja seriedade e intransigência contrastam com o mundo de futilidade e cinismo – o mundo da sua amada Célimène, onde aquele – Alceste – naturalmente sairá perdendo.
Mas vejamos o engraçado artigo de Alberto Gonçalves:
«Lindo serviço» (14/1)
«Não tinha Maria Rueff por humorista até ler, há dias no DN, o comentário da senhora ao novo administrador da RTP para os conteúdos: : “Conheço o Nuno Artur Silva há vinte anos. No fundo, o que eu quero mesmo é que ele devolva à RTP a capacidade de ser Charlie”.
Além de engraçadíssima, a frase abre um mundo de possibilidades para a futura programação do canal público. “Ser Charlie” significa que se vai transformar o “Prós e Contras” num espaço de achincalhamento de Maomé? Ou que o Telejornal reservará meia hora para o inventário dos atentados em nome do islão? Ou que, numa emissão especial da Praça da Alegria, os estúdios da estação acabarão destruídos à bomba? Ou que a próxima administração admite morrer pela liberdade?
Pensando bem, qualquer das hipóteses é pouco provável. O mais certo é que, a fim de “ser Charlie”, a RTP seja apenas aquilo que sempre foi: uma estratégia para retirar dinheiro de todos de modo a patrocinar meia dúzia. Dito de outra maneira, quem paga não escolhe e com aquele tipo de coragem que não se distingue do descaramento, quem recebe não se importa. Não é o lendário serviço público, mas é um lindo serviço

Quanto ao «O Mistério da Educação», que foca as incapacidades de realização escolar em vários domínios, de que enfermam os nossos alunos, incapacidades reconhecidas pelo IAVE, com sugestões deste para as colmatar, o artigo de Alberto Gonçalves é realmente um mimo de graça, no apontamento de idiotia rebuscada de quem ditou o tal relatório, ao procurar no sinal de «igual» uma tentativa pedante de explicitação do termo - talvez por motivos ideológicos, de efeito milagroso sobre as cabeças dos camaradinhas juvenis, que assim se vão habituando às reivindicações igualitárias, junto dos pais, professores e todos os que eles se habituaram a considerar seus pares, por iguais dificuldades em aprender educação ou, no caso dos adultos, permissivos ou inertes, de a ensinar : «Vejamos um excerto do referido relatório: “Sugere-se que seja dedicada especial atenção ao significado do sinal de igual (que estabelece uma relação de igualdade dos valores apresentados em cada um dos lados do sinal), trabalhando-se no sentido da passagem de uma visão “procedimental” (a seguir ao sinal de igual coloca-se o resultado) para uma visão relacional.”
Há lá nada mais simples para as cabecinhas da segunda classe! Leiamos o texto de Alberto Gonçalves:

«O Mistério da Educação» (13/1
         «O Instituto de Avaliação Administrativa (IAVE) informa que os alunos da segunda classe dominam escassamente o português (mas apenas na escrita, na gramática e na leitura) e a Matemática (não entendem o conceito de igualdade e mostram dificuldade em contar dinheiro). Em Física, Botânica, Plasticina e Latim são fortíssimos, presume-se.
         Isto é grave? Vamos com calma. No que respeita ao Português, o próprio IAVE prova que a respectiva compreensão  é sobrevalorizada. Vejamos um excerto do referido relatório: “Sugere-se que seja dedicada especial atenção ao significado do sinal de igual (que estabelece uma relação de igualdade dos valores apresentados em cada um dos lados do sinal), trabalhando-se no sentido da passagem de uma visão “procedimental” (a seguir ao sinal de igual coloca-se o resultado) para uma visão relacional.” Quem fala assim possui, evidentemente, uma relação complicada com a língua (ou uma visão relacional míope da mesma), pormenor que não impediu os senhores do IAVE de emitir palpites alusivos.
           Quanto à Matemática, o facto de as nossas crianças desconhecerem a igualdade é capaz de vir a ser-lhes útil num futuro em que, a julgar pelos indícios de analfabetismo, não terão grande legitimidade para reivindicá-la. E no que toca à contagem de dinheiro, o salário mínimo ou o subsídio de “inserção” contam-se num instante. Excepto, claro, no caso dos felizardos que consigam emprego num dos diversos, pedagógicos e indispensáveis organismos do Ministério da Educação.»

Quanto às dificuldades de aprendizagem do Português e dum modo geral das demais disciplinas, para além dos condicionalismos provenientes da unificação do ensino e multiplicação de factores de descontrolo e divergência, o facto tem a ver também com a multiplicidade de informação que de repente se abate sobre os alunos, ainda mal habituados a uma leitura e escrita correctas, com justificação gramatical elucidativa, e a quem desde cedo são veiculadas informações sobre estruturas múltiplas, níveis de língua, variedades da lusofonia, quando nem se aperceberam ainda da forma correcta de articular as palavras.
«Coitado do Álvaro de Campos!»

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