quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Preservação: a concretização do sonho


É certo que há os que não se importam de destruir os seus monumentos de milhares de anos, levados por estranho facciosismo que se diz religioso, em actos gratuitos de vandalismo, como se fossem os agentes de transformação geológica que, irremediavelmente, vão alterando as estruturas da Terra, mas seguindo um percurso temporal relativamente lento. Aqueles são criminosos rápidos no agir, ao abrigo de uma estranha religião que incita ao ódio e à selvajaria impunes.
Mas nós, que não somos jihadistas, olhamos com indiferença igualmente destruidora aquilo que representa criação e criatividade humanas e deixamos que o tempo faça o seu trabalho de desgaste, passando ao largo, “na safra de apanhar”, sem nos lembrarmos do “quebranto” que o mesmo “Saturno” deu ao Onzeneiro da Barca...
António Barreto, sensível à nossa inércia também criminosa, escreve o seu alerta, que deveria ser tomado como prioridade de qualquer governo. Mas as nossas prioridades foram sempre outras, e até muitas vezes indignas.
Em Julho de 1955, uma bolsa de estudos, que havia então, possibilitou-me um mês de estudo em férias da Sorbonne para estudantes estrangeiros. Religiosamente, cumpri o meu horário nas aulas, mas reservei algumas tardes para visitar monumentos que recordo ainda – o Louvre, embora incompleto, o museu Rodin, o Museu Grévin, a Notre Dame vista de fora, como, aliás, o Arco de Triunfo, a Torre Eiffel… o palácio de Versailles, le Bois de Boulogne, tudo isso pude percorrer então, com agilidade e fervor, como recordo ainda. Mas o que mais me deslumbrou foi La Sainte Chapelle e os seus vitrais que estavam a ser recolocados, pois tinham sido retirados na Segunda Guerra. Nunca mais esqueci o esplendor de luz que atravessava os seus vitrais, e suponho que pela primeira vez me dei conta do trabalho a ter com os monumentos, sobretudo na contingência das guerras. Também foi quando estudante que me deslumbrei com a Batalha, com as suas Capelas Imperfeitas que certamente os desgastes do tempo não poupariam, pensava eu  ao olhar para a ausência de tecto nas tão perfeitas Capelas, pensando que se deveria remediar, ainda que com um guarda–intempéries envidraçado, abobadado, colocado muito acima. Os poucos monumentos que tenho visitado por cá, mostraram-me certa pobreza, apesar das riquezas que os interiores ofereciam, sobretudo os monumentos religiosos, como a Sé de Évora, e nunca esquecerei a forma descabidamente apalhaçada com que o “cicerone” do Palácio de Vila Viçosa se ia referindo aos artefactos ou aos costumes dos duques, creio que por snobismo parolo de democrata recente, pois foi ainda nos anos 70 que o visitámos.
Creio que se fez muita coisa no restauro dos nossos monumentos. Mas António Barreto – e com ele todos os amantes da pátria e do património  - desejaria que fosse mais. António Barreto expõe com saber e decisão o seu parecer sobre as prioridades na governação e nos cuidados a ter com a conservação do nosso património. E “As minhas fotografias” que encima o seu texto, para além da imagem da Virgem e o Menino de Santa Maria de Alcobaça (que também a Internet mostra) colocou o seguinte texto:

A Virgem e o Menino de Santa Maria de Alcobaça – A estátua já esteve em vários locais da catedral. Agora, encontra-se numa pequena capela própria, no Cruzeiro, à esquerda do altar-mor, em frente ao túmulo de D Pedro. É, para mim, em Portugal, a mais bela estátua sacra, a mais bonita Nossa Senhora que conheço, a mais humana, carnal e divina Santa Maria que jamais vi. Eu sei que se trata de opinião e que a avaliação é subjectiva. É também o meu sentimento. Mas já mais objectivo é o juízo que se pode fazer do Mosteiro de Alcobaça, maravilhosa construção que deveria ser venerada e poupada, estudada e preservada. Mas que, infelizmente, não recebe tudo a que tem direito. Faltam-lhe pessoal, técnicos competentes, investimento em estudo e arranjo. Carece de um destino cuidado para grande parte do mosteiro e dos claustros. Ninguém tem a certeza de que, com ou sem hotéis, com ou sem mecenas, aquela jóia única seja respeitada!
Uma comentadora – “Ilha da lua” escreveu em 30/8/16: 
«Esta imagem lembra-me um soneto de Antero de Quental, que começa assim:

"Num sonho todo feito de incerteza
de nocturna e indizível ansiedade
é que eu vi o teu olhar de piedade
e mais que piedade, de tristeza.


Completo o soneto- À Virgem Santíssima -  como homenagem a António Barreto e em súplica aos sucessivos governos, para que atendam o seu apelo, transformando o sonho em realidade:

«…..
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Pobre património
António Barreto
D.N.,28/816 - «Sem Emenda»

A discussão, sem fim, dura há dezenas de anos. Vai tendo, conforme os tempos, problemas e soluções diferentes. Que grau de prioridade deve ser atribuída à inventariação, à preservação, ao estudo e à divulgação do património edificado? Muito? Tudo de que precisa? Medianamente? Deixado ao mecenato privado? É mais importante do que as "artes vivas" ou "performativas", como se diz agora? Mais ou menos importante do que a música, a literatura, a pintura, o cinema e a escultura? Dentro da área vastíssima da cultura e do ponto de vista das políticas públicas, o que é mais importante, o património erudito e a "alta cultura" ou as artes e tradições populares? A investigação é mais importante do que a divulgação? O estudo é mais urgente do que a disseminação popular e de massas?
A resposta mais fácil é aquela que está no espírito de muita gente. Tudo é urgente, tudo é prioritário, não se deve subestimar nenhuma área, todas as artes são importantes, todas as formas de cultura são decisivas, todas as manifestações do espírito são indispensáveis, o passado é tão importante quanto o presente e o futuro. São conhecidos esses argumentos. Que não servem para nada, a não ser alimentar a polémica e manter vivas as expectativas dos grupos de interesses.
A verdade é que é importante estabelecer prioridades a partir de vários critérios: a beleza, a raridade, a importância, o valor, o significado, o conhecimento, o contexto histórico, o custo, o perigo de deterioração, a ameaça de destruição, o risco de apropriação indevida... É difícil enumerar tudo. Mas o estabelecimento de prioridades tem de responder a muitos desses critérios. Até porque nunca há dinheiro para tudo.
A prioridade política deveria ser atribuída ao património histórico e cultural, nomeadamente o edificado. O estudo, a investigação e a preservação deveriam ser as actividades prioritárias. Certas áreas do património não deveriam nunca ser objecto de apropriação privada ou mercantil. O mecenato privado de carácter comercial e publicitário deveria ser uma faculdade acessória, discreta e condicionada, sendo privilegiado o investimento público. As universidades, as associações culturais, profissionais e científicas deveriam ser chamadas a colaborar. Os monumentos deveriam ser rigorosamente estudados, investigados, acompanhados e protegidos.
Entre a penúria pública e a ganância privada, muitos monumentos vegetam sem meios nem técnicos. Visitei recentemente alguns dos mais conhecidos: Mosteiro de Alcobaça, Convento de Cristo em Tomar, Convento de Mafra, Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, Igreja da Memória em Lisboa, Ermida de Nossa Senhora da Conceição em Tomar, Igreja de São Vicente de Fora, Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel, Aqueduto dos Pegões em Tomar... Em todos estes sítios, que sei serem alguns dos mais bem arranjados, detectei progressos enormes, em comparação com o que se via há trinta ou quarenta anos. Mais limpos, mais acessíveis, por vezes menos abandonados. Mas ainda hoje há faltas e falhas imperdoáveis! O pessoal técnico é insuficiente. Há miséria absoluta nas oficinas de restauro. É gritante a falta de verba, de meios e de técnicos de restauro e de conservação. É diminuta a formação técnica e cultural. São muitas as infiltrações nas paredes. Abundam a erva e arbustos nos telhados. Há, por todo o lado, azulejos caídos e janelas quebradas. Ainda se vêem alas inteiras arruinadas e claustros a caírem de podre. Quase todos carecem de indicações e sinalização suficientes. Há, por falta de condições de segurança, edifícios ou partes deles inacessíveis.
O que faz falta é enorme. Por isso deve ser prioridade, em detrimento dos esforços feitos para agradar a clientelas e à "intermediação eleitoral". E em prejuízo do que "dá nas vistas". Sabemos que os monumentos não votam. Mas as pedras podem um dia cair sobre quem não cumpre os seus deveres.


terça-feira, 30 de agosto de 2016

Ingratidão é obra


Um texto de um juiz, para mais jubilado, para mais conselheiro.
Leio e pôr-me-ia a corar, se fosse de tez pálida e o rubor da indignação, da timidez ou da vergonha ainda conseguisse subir-me ao rosto, arrefecido dos anos. De facto, o título do seu artigo, a ser mais modesto e ponderado, deveria ser invertido nos sintagmas – Para que serve Portugal à Europa e não o contrário.
A isso, poderíamos responder, orgulhosamente, que outrora ajudámos a desbravar  os litorais do mundo e isso foi enriquecedor para os povos. Como, entretanto, nessas tarefas interesseiras, não acompanhámos o desenvolvimento cultural dos povos europeus - as classes mais cimeiras entretidas a esbanjar os ganhos ultramarinos erguendo palácios e a cuidando dos seus físicos em luxos extravagantes, mais do que em prol de todos – mas outras razões haverá da nossa apatia, que se prolongou pelos tempos – vivemos,o grosso demográfico, do desenrascanço, ou da humilhação face aos outros, e ultimamente, mais do que nunca, somos dos que se encontram enterrados numa dívida que, na opinião de alguns – suponho que do juiz-conselheiro também – não tem razão de ser, que as dívidas não são para se pagarem, nova modalidade de critério legislativo, mesmo para um magistrado ligado a criminologia, talvez disposto a alterar-lhe as leis. Bastar-nos-ia dar um piparote na adesão à União Europeia, agora que fomos servidos e mais uma vez esbanjámos, a pensar no nosso presente, não no futuro dos nossos, substituindo o actual euro pelo antigo escudo e ignorando a dívida. Suponho que Guilherme Fonseca pensa isso mesmo, ao concluir que «não tem havido, ao longo da nossa história, e não há, um contributo verdadeiramente favorável a Portugal da parte da Europa, a servir o desenvolvimento/modernidade do país, devendo gritar-se bem alto que é chegado o momento de reconquistar a soberania nacional plena, desprendendo-nos das amarras que nos prendem à UE e, para o efeito, apagando e esquecendo os comandos constitucionais referidos e que nos comprometem com a UE.»
Ou seja, agora que nos aproveitámos da Europa e dos seus dinheiros, em regabofe construidor de estradas e estádios, e fortalecedor dos bolsos de muitos, nada de pensar em saldar a larga dívida. O «Para que serve a Europa a Portugal?» dá conta das nossas intenções – ou tão só da do juiz conselheiro jubilado Guilherme Fonseca, mas com os respectivos acólitos - de aproveitadores da ajuda alheia sem a responsabilidade de a sanar. Alambazámo-nos, correu mal por culpa nossa, mas, como filhos ingratos, culpamos os pais dos nossos desmandos, pretexto para os chutarmos de nós, sem mais responsabilidade. 
Custa a crer tanta desvergonha, para mais num juiz, para mais conselheiro, para mais jubilado. Esse sim, desacredita Portugal, que não merecia gente desta a habitá-lo, sem uma Justiça a reprimi-la, pois esta se conta no meio da mesma engrenagem  de desrespeito e podridão.

Para que serve a Europa a Portugal?
Guilherme Fonseca , Juiz-conselheiro jubilado
Público, 29/07/2016

Quando se enuncia de modo interrogativo a questão, pretende-se chamar a atenção para um assunto actual, pois estamos a assistir ao confronto entre o Reino Unido e a UE, com risco da separação, consumada com o resultado do referendo "Brexit" e é indiscutível o seu significado, na situação de crise que atravessa a UE, nestes últimos anos, reflectida actualmente, além do mais, na problemática dos refugiados/migrantes. E pretende-se ainda, e de modo provocatório, buscar uma resposta que nos elucide sobre o verdadeiro contributo da Europa para o desenvolvimento/modernidade do nosso país, que todos qualificam como país da periferia do continente europeu, com índices económico financeiros e socioculturais de baixo valor, sendo poucas as excepções (sirvam de exemplo marcante a diminuta percentagem da mortalidade infantil e alguns dados interessantes em certas áreas tecnológicas e científicas).
Ora, Portugal tem mais de oito séculos de existência, atravessou já momentos difíceis de crise na sua história, até com risco da sua sobrevivência, como país soberano, constantemente acossado pela vizinha Espanha, mas soube resolvê-los ou ultrapassá-los, nunca, porém, com ajuda/apoio ou solidariedade da Europa. Pelo contrário, a Europa envolveu muitas vezes o nosso país em situações que sempre nos prejudicaram. Sem aludir à maior ou menor dependência da Inglaterra, a partir da II Dinastia, podemos lembrar, nos últimos 150 anos, o seguinte: o Ultimatum inglês de 1890, a propósito do mapa cor-de-rosa, arrastando a perda de possessões portuguesas na África, o envolvimento na I Guerra Mundial, de 1914-1918, estendida às colónias de Angola e Moçambique, com uma economia de guerra que subjugou Portugal, e as crises financeiras do final do século XIX e ao longo do século XX, com implicações no nível de vida dos portugueses. E a Europa sempre maltratou o nosso país.
E a adesão à UE, em 1985, também se inscreve ou não nesse patamar histórico negativo acabado de registar?
Mesmo admitindo que nos primeiros anos dessa adesão Portugal obteve ou conseguiu ajudas comunitárias, em dinheiro, que permitiram um aparente benefício público e uma aparente melhoria do bem-estar e do nível de vida dos portugueses, o certo é que, em pouco tempo, tudo passou a evoluir negativamente, com Portugal a aderir à zona euro, em 1999, como membro fundador da União Económica e Monetária, apesar de todas as promessas optimistas. A progressiva submissão aos desígnios europeus e a circulação da nova moeda, a partir de 2002, precipitaram a situação no século XXI, numa envolvência negativa que chegou até aos nossos dias, com os resultados que todos conhecem e sofrem.
E os compromissos com a Europa passaram a constar da Constituição da República Portuguesa (CRP), através de sucessivas revisões constitucionais, implicando o enfraquecimento ou até a perda da soberania.
Assim, a porta abriu-se para UE com a revisão constitucional de 1989, uma das mais nefastas para o texto originário da CRP, que até então apontava nos art.ºs 7.º e 8.º para um relacionamento internacional de cariz positivo, numa cumplicidade com os outros Estados, no bom sentido. É a partir dessa revisão que a linguagem da CRP muda e passa a falar-se no "reforço da identidade europeia", no "fortalecimento da acção dos Estados Europeus" (art.º 7.º, n.º 5), agravando-se o panorama com a revisão de 1992, quando se acrescenta o n.º 6 ao art.º 7.º, onde se prevê que Portugal pode "convencionar o exercício em comum dos poderes necessários à constituição da União Europeia". Mas é com o texto actual da CRP, resultando ainda de revisões constitucionais posteriores, que tudo se consumou e para pior. Assim, alterou-se aquele n.º 6 do art.º 7.º, reforçando-se a construção e o aprofundamento da UE e, perigosamente, acrescentou-se um n.º4 ao art.º 8.º, prevendo que as normas emanadas das instituições da UE "são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático", de que é exemplo recente o chamado Tratado Orçamental, que Portugal se apressou a aprovar/ratificar na Assembleia da República.
Enfim, a coberto da CRP, desfigurada, de certo modo, com as revisões constitucionais, a UE instalou-se em Portugal, a governar o país, sem que, aliás, tivesse sido dada oportunidade aos portugueses para se pronunciarem, em referendo.
E instalou-se, sem um fim à vista, de pé firme, com a aceitação do nosso país, em 2011, do chamado "memorando da troika", em permanente revisão, com sucessivas avaliações, de tal modo que verdadeiramente nunca se sabe, no momento, o que a troika quer, nem se sabe como vai evoluir proximamente o resgate a que se chegou. Instalação essa facilitada pela moeda própria, o euro, e também pelas regras próprias de ordem financeira e orçamental, implicando, por exemplo, o enfraquecimento da soberania nacional, em colisão com símbolos nacionais, como sejam a moeda e o Orçamento do Estado, ou mesmo a perda da soberania nacional, à medida do avanço da federalização da Europa, que pode ter, entre o mais, reflexos graves na representação externa do país e no modelo das Forças Armadas.
Tudo isto sem perder de vista os malefícios que a UE, aliada ao FMI, nos tem provocado a partir de 2011, como sejam a austeridade, que foi sempre mais agravada, arrastando o empobrecimento, o desemprego e a precariedade no mercado do trabalho; a emigração em subida constante; os cortes, sobretudo, à custa dos salários/remunerações, das pensões/reformas e das prestações sociais, também os cortes nos serviços públicos, com afectação da sua capacidade financeira e dos quadros dos seus trabalhadores (e na base está a dívida soberana, em montante indesejável, submetida ao pagamento de juros usurários aos nossos credores). Factores que só agora, com o XXI Governo Constitucional, parece que vão inflectir com a viragem da página que felizmente se anuncia, no fim de seis meses da governação PS.
Em conclusão, considerando todo este quadro, a resposta à questão inicialmente posta só pode ser uma: não tem havido, ao longo da nossa história, e não há, um contributo verdadeiramente favorável a Portugal da parte da Europa, a servir o desenvolvimento/modernidade do país, devendo gritar-se bem alto que é chegado o momento de reconquistar a soberania nacional plena, desprendendo-nos das amarras que nos prendem à UE e, para o efeito, apagando e esquecendo os comandos constitucionais referidos e que nos comprometem com a UE.


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Revolução não é solução


A foto é dispensável, pois, na banalidade dos atropelos, que tantos aqui se dão, bastará mais um nome para o nosso “tudo ao molho” sem fé em qualquer disciplina moral, os retratos físicos causando a mesma repugnância que todos os outros do habitual cinismo, nas actuações de alguns, com a anuência de outros da vasta rede. Mas não vai acabar em revolução, que o povo é “sereno”, Deus nos dê saúde e muita vida para alombar com estes ultrajes de colarinho e gravata.  Dantes, os salteadores davam a cara e o corpo, agora há cada vez mais destes, da "calada" que pode ser do dia, como o que se conta aqui, que se junta aos assaltos dos banqueiros, aos de ministros, aos da justiça colaborante, como este caso assinala, à sombra e na anuência das leis impecáveis.
Foi-me enviado por João Sena, por email, o tom é indignado q.b., dispensa mais comentário, que também nada resolve:
Não. Revolução não é solução. A menos que fosse na educação e na formação moral. E essa… está quieto!...

ISTO AINDA VAI ACABAR POR PROVOCAR UMA REVOLUÇÃO E O PIOR É QUE EM VEZ DE SER UM 25 DE ABRIL ATÉ PODE SER UM 28 DE MAIO.

 Mais uma golpada - Jorge Viegas Vasconcelos despediu-se da ERSE. É uma golpada com muita classe e os golpeados somos nós....

Era uma vez um senhor chamado Jorge Viegas Vasconcelos, que era presidente de uma coisa chamada ERSE, ou seja, Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, organismo que praticamente ninguém conhece e, dos que conhecem, poucos devem saber para que serve.

Mas o que sabemos é que o senhor Vasconcelos pediu a demissão do seu cargo porque, segundo consta, queria que os aumentos da electricidade ainda fossem maiores. Ora, quando alguém se demite do seu emprego, fá-lo por sua conta e risco, não lhe sendo devidos, pela entidade empregadora, quaisquer reparos, subsídios ou outros quaisquer benefícios.

Porém, com o senhor Vasconcelos não foi assim. Na verdade, ele vai para casa com 12 mil euros por mês durante o máximo de dois anos, até encontrar um novo emprego. Aqui, quem me ouve ou lê pergunta, ligeiramente confuso ou perplexo: «Mas
você não disse que o senhor Vasconcelos se despediu?
E eu respondo: «Pois disse. Ele demitiu-se, isto é, despediu-se por vontade própria!».

E você volta a questionar-me: «Então, porque fica o homem a receber os tais 12 000 por mês durante dois anos? Qual é, neste país, o trabalhadorque se despede e fica a receber seja o que for?».

Se fizermos esta pergunta ao ministério da Economia, ele responderá, como já respondeu, que «o regime aplicado aos membros do conselho de administração da ERSE foi aprovado pela própria ERSE». E que, «de acordo com o artigo 28 dos
Estatutos da ERSE, os membros do conselho de administração estão sujeitos ao estatuto do gestor público em tudo o que não resultar desses estatutos».


Ou seja: sempre que os estatutos da ERSE forem mais vantajosos para os seus gestores, o estatuto de gestor público não se aplica.

Dizendo ainda melhor: o senhor Vasconcelos (que era presidente da ERSE desde a sua fundação) e os seus amigos do conselho de administração, apesar de terem o estatuto de gestores públicos, criaram um esquema ainda mais vantajoso para si próprios, como seja, por exemplo, ficarem com um ordenado milionário quando resolverem demitir-se dos seus cargos. Com a bênção avalizadora, é claro, dos nossos excelsos governantes.

Trata-se, obviamente, de um escândalo, de uma imoralidade sem limites, de uma afronta a milhões de portugueses que sobrevivem com ordenados baixíssimos e subsídios de desemprego miseráveis. Trata-se, em suma, de um desenfreado, abusivo e desavergonhado abocanhar do erário público.

Mas, voltemos à nossa história...

O senhor Vasconcelos recebia 18 mil euros mensais, mais subsídio de férias, subsídio de Natal e ajudas de custo.

Aqui, uma pergunta se impõe: Afinal, o que é - e para que serve - a ERSE? A missão da ERSE consiste em fazer cumprir as disposições legislativas para o
sector energético.

E, pergunta você, que não é burro: «Mas, para fazer cumprir a lei não bastam os governos, os tribunais, a polícia, etc.?». Parece que não.

A coisa funciona assim: após receber uma reclamação, a ERSE intervém através da mediação e da tentativa de conciliação das partes envolvidas. Antes, o consumidor tem de reclamar junto do prestador de serviço.

Ou seja, a ERSE não serve para nada. Ou serve apenas para gastar somas astronómicas com os seus administradores. Aliás, antes da questão dos aumentos da electricidade, quem é que sabia que existia uma coisa chamada ERSE?


domingo, 28 de agosto de 2016

Y asi nos va


E os jornais que a minha irmã me traz vão-se acumulando, na premência dos afazeres ou de outras leituras, e descubro agora, já antigo, este, com o artigo já sublinhado por ela. Pouco tenho a dizer, na anuência de opinião com a dum jovem, João Miguel Tavares, que não enfileira no grupo oportunista, como já tantos passaram ao longo destes anos de “liberdade” e agora têm a oportunidade de se exibirem novamente, descendentes da geração antiga, ou novamente estreitados, para não deixarem passar a ocasião de relembrar... E insistir. Um artigo que desejo guardar, auscultador de uma sociedade de grande penúria, que se entretém a alardear excitações, mais do que reais convicções, fundamentadas em argumentos de ombridade e solidez - quais rãs da fábula, inchando, a aspirar ao tamanho do boi...
Patriotismo? Tenham vergonha
Público, 7/07/2016
Já ouvem ao longe as trombetas? Neste momento, a luta contra as sanções não é apenas um combate político – é um desígnio patriótico ao nível do ultimato inglês de 1890. É a dignidade de Portugal que está em causa! É a obrigação de reagirmos à chantagem europeia! É a necessidade de defendermos a alma lusitana e o espírito de Viriato! Vocês lembram-se do tempo em que o nacionalismo era coisa salazarenta e o patriotismo uma bandeira poeirenta do CDS? Esqueçam. O patriotismo está super-fashion e há um novo nacionalismo 2.0. O PCP, o Bloco de Esquerda e o próprio PS estão embriagados de nacional-patriotismo, e não é por causa do Europeu de futebol: é porque os alemães – ou melhor: os boches – querem impor a todo o custo a ditadura da austeridade. Em 1890 cantava-se pelas ruas “contra os bretões, marchar, marchar”. Com o advento da República passou a cantar-se “contra os canhões, marchar, marchar”. Chegou a hora de uma nova e imprescindível actualização: “contra os teutões, marchar, marchar”.   
O secretário-geral do PCP pede ao Governo “brio patriótico” para informar Wolfgang Schäuble que “no seu país manda ele, mas aqui mandam os portugueses”. O Bloco garante que se as sanções forem para a frente ele lança contra a Europa a sua mais recente canhoneira: o referendo-a-não-se-sabe-bem-o-quê. Já no final do ano passado, o Bloco discutia num dos seus fóruns a candente questão: “A esquerda deve ser patriótica?” Luís Fazenda mostrava o caminho: “Há um nacionalismo progressivo e um nacionalismo reaccionário. Nós somos do campo do nacionalismo progressista.” Viva, pois, o nacionalismo progressista, que o PS tem vindo a adoptar com entusiasmo crescente, cumprindo mais uma das suas promessas eleitorais: ser, nas palavras de António Costa, “o campeão do patriotismo na Europa”.
A coisa funciona assim: quanto mais a Europa se desconvence da sanidade mental dos planos económicos de Mário Centeno, mais o fervor patriótico toma conta do Partido Socialista. Por cada mapa Excel que se afunda há uma bandeira verde-rubra que se ergue. Pelas ruas, estão plantados cartazes onde os socialistas prometem “defender Portugal na Europa” e a destacada Ana Catarina Mendes elogia a “voz grossa” do Governo e do PS. Os agudos de Pedro Passos Coelho foram substituídos pelos baixos profundos de António Costa.
Por favor, alguém informe os nacionalistas progressistas e os campeões do patriotismo da figura ridícula que estão a fazer. Não por haver mal algum em defender os interesses de um país – acho óptimo –, mas porque o único interesse que a esquerda está a defender é a sua sobrevivência política. Isto não é um patriotismo corajoso, de faca nos dentes. Isto é apenas um patriotismo dependente, de chucha na boca.

Eis a dura verdade: esta esquerda não tem qualquer projecto político plausível para o país que tanto diz amar. Aquilo a que chamam patriotismo é o eterno prolongamento do Portugal de mão estendida e incapaz de produzir o suficiente para sustentar o seu nível de vida. Patriotismo é tentar quebrar esse círculo vicioso. Patriotismo é trabalhar pelas reformas indispensáveis, é fazer sacrifícios por um país melhor, é lutar pela nossa independência financeira. Patriotismo não é berrar alto, a ver se nos voltam a encher a velha gamela. Dizem por aí que o bom aluno era demasiado subserviente. Já o aluno cábula, esse, é um grande patriota. Com uma mentalidade destas, só temos aquilo que muito patrioticamente merecemos.

sábado, 27 de agosto de 2016

O que não tem remédio…



Leio agora um texto antigo, um texto sério
Que não posso deixar de transcrever.
Recorda-me imagens que passaram
Tempos que se viveram
De maior sobriedade e exigência
- Apesar das fugas que se cometiam -
Pois sempre ilicitudes existiram
Num mundo onde antigos fabulistas
Usavam animais que exemplificavam
As tolices que os homens praticavam.
Fábulas  que, afinal, não resultaram
Com o aumento das prisões nem dos juristas
Ou sequer dos moralistas,
Que parece até que apresentam
Efeito contraproducente.
E aqui estamos nós a discutir
Se é lícito não pagarmos à Europa
Aquilo que a Europa confiante
Nos  emprestou em tempos de penúria.
Mas leio no Público outra notícia
Que prova que pagar
Para nós não é relevante:
«Multas, nos transportes, por cobrar
50 milhões  de euros ultrapassaram»
Não, não há solução
Quando falta educação
- Além da outra penúria -
 Na nossa idiossincrasia.
E, embora sem eficácia
 O texto de A. B., de impaciência,
Aqui está, com a minha concordância.

As dívidas da Pátria
António Barreto
DN, 10 /7/16, - «Sem emenda»

Já hoje sofremos sanções e não é pouco! Os juros que pagamos são superiores aos dos outros países. Os investimentos, nacionais e estrangeiros, caíram a pique. Continua a exportação de capitais para países mais seguros e bancos mais honestos. Nos mercados, o dinheiro para Portugal é escasso ou muito caro. Os credores internacionais têm dúvidas. Todas estas realidades têm nomes mais técnicos e suaves, mas são verdadeiras sanções. Parece que não chegam! Ainda são precisas mais!
Como é evidente, devemos pagar sanções. E ser punidos. É bom que assim seja. A impunidade é um defeito grave. Quem não faz o que deve tem de assumir as consequências. Em última análise, quem sofre com as sanções são os contribuintes. Sabemos isso. Por isso as sanções podem ser injustas. Mas são instrumentos necessários a pôr os políticos em ordem e a obrigá-los a ter disciplina. Sobretudo é o modo de informar os eleitores que os seus políticos governaram mal, tomaram decisões erradas, gastaram o que não é deles e não fizeram contas porque queriam ser eleitos. As sanções são uma condição necessária à formação de um juízo racional dos eleitores. Sem sanções, não há políticos a despedir, não há governantes indisciplinados a castigar, não há mentirosos a punir nem há demagogos a contrariar!
Distribuir o que não há, gastar a mais e não pagar dívidas merece castigo! Mentir nas contas, gerir mal e favorecer a corrupção deve ser punido! Decretadas pelas autoridades competentes, as sanções servem para tornar evidentes aos eleitores os erros e os defeitos dos seus políticos.
Por isso é confrangedor o actual debate sobre sanções, assim como a onda de patriotismo bacoco que o governo e os seus apoiantes fomentam. É ridículo declarar guerra à União Europeia e à Alemanha! É idiota invocar a pátria para aumentar a dívida! É infantil tentar camuflar os erros políticos sob as roupagens da dignidade nacional! O patriotismo sempre foi o refúgio dos demagogos, dos ditadores e dos aldrabões.
Estamos a chegar lentamente ao país dos crédulos: nós temos sempre razão, eles, nunca! Os debates parlamentares resumem-se a isto. Os fiéis de um culto só acreditam no seu sacerdote. Os simpatizantes de um partido só confiam nele. O pensamento é o do rebanho. Inteligência, informação, razão e rigor são dispensados. Estas semanas de futebol só vieram agravar os espíritos. O que importa é ganhar, nem que seja com a mão, dizia alguém na televisão. A lógica é a mesma. Com argumentos nacionalistas, que as esquerdas envergonhadas designam por patrióticos, com emoções patetas e com sentimentos totalmente deslocados, pretende-se manter aliados e iludir eleitores. Sendo que os apoiantes comunistas e bloquistas querem mais do que isso. Querem mesmo dar cabo do Euro, do Tratado Orçamental e desta União. Para o que esperam evidentemente pela cumplicidade pacóvia dos socialistas e pelos sentimentos patrióticos dos Portugueses vexados na sua dignidade nacional!
Verdade seja dita que os outros intervenientes não se portam melhor. O que faz com que seja difícil compreender o que realmente se passou e está em causa. Portugal infringiu ou não as regras? Quando? Por quanto? Quem foram os responsáveis? E os outros países da União? Esta trata todos da mesma maneira, como diz, ou com parcialidade, como parece? A União ainda não conseguiu demonstrar que, na questão dos défices, está a ser justa e equitativa. O PSD não provou que a sua gestão ficou abaixo do défice. O governo não conseguiu demonstrar que a sua actuação não agrava os défices. Chegámos ao ponto do inferno das emoções, próprio do patriotismo: o que fizemos é bem, porque fomos nós. O que eles fizeram é mau, porque foram eles. Ao que nós chegámos!
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Mas decididamente não penetram



Mais duas crónicas que encanta ler, de Alberto Gonçalves, um escritor habituado a “parar, olhar e escutar”, antes de transpor para a escrita os seus variados temas de reflexão, num estilo vigoroso, de frontalidade e graça crítica, e reveladores, simultaneamente, do seu equilíbrio moral. E as figuras da sua leitura e da nossa realidade aí vão perpassando, nos seus caprichos, nos seus ridículos, nos seus considerandos disparatados, ou de sugestões de concerto provando a futilidade e o vazio de pensamento – o caso da ministra Constança, do segundo texto, e a sua inverosímil proposta de castigo aos infractores das matas - e a adaptação da mesma pena, na sátira de Alberto Gonçalves, aos diversos incendiários governamentais, causadores da ruína do país. Ou o punhado de frases entusiásticas do primeiro texto, pronunciadas vezes sem conta aquando do acontecimento da nossa glória futebolística deste ano - demonstração da nossa exaltação petulante e parola a merecer as vergastadas do articulista.
Mas estamos na era dos “gosto”, como comentário facilitador da nossa inapetência para uma escrita mais raciocinada, as zurzidelas do comentarista não surtem efeito no retrocesso da nossa banalidade ou na penetração da nossa “crosta”.

Frases da semana
"Agora vejo que somos uma grande nação" (popular entrevistado pelas televisões após a vitória da selecção portuguesa sobre a selecção do País de Gales). Naturalmente. É sabido que os êxitos futebolísticos traduzem e inspiram as genéricas glórias de um país, e não vale a pena lembrar a felicidade que se abateu sobre a Grécia depois da conquista, em 2004, do exacto campeonato de que agora se fala. E do Brasil, campeão do mundo cinco vezes, nem é bom falar: a cada título, a prosperidade subia para níveis quase insuportáveis. Em abono da justiça, convém notar que não se trata de um predicado exclusivo da bola, já que os triunfos nas corridas também fizeram do Quénia o portento económico e social que se conhece.
"Somos milhões a festejar. Portugal está de parabéns. No Domingo gritaremos mais alto: Viva Portugal! #EURO2016 #POR" (António Costa no Twitter). Nunca um primeiro-ministro adoptara com tamanho vigor as chamadas "políticas de proximidade": atento aos assuntos verdadeiramente prioritários, o dr. Costa é indistinguível do cidadão que desabafa nas "redes sociais" ou no café, e que não perde uma transmissão do autocarro em Marcoussis. Só a quantidade e a qualidade dos clichés o distinguem e colocam entre os eleitos, ou, no caso, nem isso.
"Heróis do mar, nobre povo, nação valente etc." (locutores da bola no fim dos relatos). Além de constituir uma peça melódica e lírica superior, A Portuguesa cai sempre bem até em situações menos protocolares. De resto, está cientificamente provado que a sua interpretação emocionada em ocasiões sortidas e inesperadas consolida o nosso lugar muito acima das demais nações da Terra. Há que ter pena delas, coitadas. E esmagá-las nos relvados. Que importa sermos a vergonha da Europa a sério se somos o orgulho da de brincar?
"No Domingo cantaremos de galo" (trocadilho hilariante ouvido por aí). A ideia inicial passava por vencer a Alemanha na final e, assim, ridicularizar a sra. Merkel e arruinar os boches, esses presunçosos reticentes em patrocinar--nos a folia ad infinitum. Como a França já tratou disso (em dois dias, a sra. Merkel entrou em depressão e a miséria em Berlim atingiu dimensões dramáticas), cabe-nos esfrangalhar a França, porque acolheu os nossos compatriotas e isso, ao que parece, é uma afronta intolerável. Como diria o dr. Costa, Viva Portugal, o país que obrigou os nossos compatriotas a emigrar.
"Contas feitas, Portugal pode arrecadar neste Europeu 26 milhões" (jornalista não identificado). Calha bem: 26 milhões é justamente o montante que nos faltava para equilibrar o défice, colocar a dívida em ordem, recapitalizar a CGD, financiar uma dúzia de feiras medievais e repor os direitos adquiridos da função pública. É uma sorte, mas a sorte procura-se.
"Somos 11 milhões a acreditar" (quase 11 milhões de portugueses). Claro que a festa só é bonita se for totalitária e ninguém escapar ao fervor. Mas acho que os números pecam por excesso. Suspeito que, se procurarmos com afinco, encontraremos dois ou três vende-pátrias - além de Pedro Passos Coelho - nada empenhados no triunfo da selecção. No fundo, serão os mesmos dois ou três traidores - mais Pedro Passos Coelho - empenhados nas sanções de Bruxelas. É procurá-los, detê-los e, excepto se se encontrarem no rés-do-chão, defenestrá-los. Sem as doses adequadas de patriotismo transtornado, um indivíduo é capaz de tudo, inclusive "torcer" pela França ou contra o governo.
"Portugal vai ter neste ano um novo recorde de turistas" (ministro da Economia). Porquê? O clima melhorou? A temperatura do mar aqueceu? O peixe ganhou sabor? O património abatido ressuscitou? Cristiano Ronaldo será exibido numa montra em Albufeira? Que se saiba, não. Mas em que outro país do hemisfério norte os estrangeiros podem sintonizar os noticiários e contemplar um presidente especializado em dança, bola, obituários e assuntos de Estado em geral? E um primeiro-ministro que, esteja ou não num estádio francês, ri sem parar, talvez por aconselhar o povo a andar a pé ou a pedais (por causa da saúde) enquanto, indiferente ao próprio bem-estar, se desloca de Falcon? E um povo que, quando não insulta franceses, alemães, galeses, polacos ou croatas, recebe maravilhosamente e, de brinde, festeja nas ruas um futuro radioso?
"Estamos a viver um momento histórico" (transeunte alcoolizado na Praça do Marquês). Depois da longa noite "austeritária" e "neoliberal", já tínhamos saudades. No tempo do eng. Sócrates, vivíamos momentos históricos com regularidade diária. O homem inaugurava uma fábrica de alfinetes autossustentável com o dinheiro dos contribuintes e, pimba, havia momento histórico. O homem assinava um protocolo com um torcionário qualquer e, pumba, havia momento histórico. O homem espirrava e, atchim, havia momento histórico. A coisa chegou a tal ponto que se tornava complicado distinguir o que era realidade e o que era história. Hoje, graças à selecção, ao governo, ao presidente, aos Falcon e a este prodigioso país, pode ser dia de história. A realidade que espere.

Os malucos
Alberto Gonçalves
DN, 21/(/16
Encerrado o "rescaldo" dos incêndios, é tempo de fazer o "rescaldo" das declarações da ministra da Administração Interna sobre os incêndios. Antes de mais, coloco a hipótese de as declarações em causa terem sido realizadas sob coacção psicológica ou ameaça de arma, factores que justificariam a radical imbecilidade das mesmas. Nesse caso, peço antecipadamente desculpa à sra. ministra por tudo o que se segue.
Enquanto o país ardia, uma revista "cor-de-rosa" fotografou a sra. ministra a passear o glamour inato numa festa algarvia ou similar. Embora as proverbiais más línguas se apressassem a condenar a dra. Constança, é inegável que, divertida e calada, esse foi o melhor momento dela nesta história. Depois, a sra. ministra cedeu às pressões populares, regressou a Lisboa e desatou a dizer coisas.
A primeira coisa que disse consistiu em lamentar a falta de solidariedade europeia no combate aos fogos. Trata-se de uma reacção representativa das principais qualidades socialistas (e, é chato acrescentar, portuguesas): perante qualquer contrariedade, procuram instintiva e alucinadamente arranjar um bode expiatório que os isente de obrigações. Para a sra. ministra, o problema não são os incêndios, mas naturalmente as maçadas que os incêndios lhe podem suscitar. Já basta o que basta, leia-se as férias interrompidas.
A segunda coisa que a sra. ministra disse passou por defender a "utilização comunitária" dos terrenos florestais abandonados, o que nas entrelinhas significa roubá-los aos donos em proveito das autarquias, que cuidariam da sua gestão e exploração: "É uma ideia que deve ser bem ponderada, bem reflectida e penso que muito útil." Se ponderarmos bem, é claro que as autarquias, esses paradigmas do rigor, seriam capazes de aproveitar as desprezadas áreas em questão para magníficas rotundas, magníficos pavilhões "multiusos" ou, com jeito, um daqueles magníficos projectos financiados pelos "fundos" e de serventia nula (na minha terra adoptiva, há um spa sem clientes que custou uma fortuna e está um primor). Se reflectirmos bem, é claro que a sugestão ajudaria a um enorme avanço na luta contra os incêndios, perdão, a propriedade privada que tanto consome as matas, perdão, a alma dos socialistas. Muito útil seria a sra. ministra não pensar de todo. E, quanto a punir o abandono de territórios, convinha notar os exemplos dos membros do governo e do PR em pessoa, quase permanentemente em França, no Brasil, na Índia ou onde calha a fim de "apoiar a selecção", "apoiar a delegação" e outros propósitos vitais: não se pode trespassar Portugal para estadistas a sério?
A terceira coisa que a sra. ministra disse define, digamos, um estilo e merece integrar um compêndio restrito dos Grandes Desígnios da História da Humanidade: a dra. Constança quer que os incendiários sejam responsabilizados civilmente além de criminalmente, isto é, que paguem o prejuízo. A sra. ministra está imparável, ou, no jargão americano e sem trocadilhos, "is on fire". De acordo com um psicólogo citado na imprensa, eis o perfil do incendiário-padrão: "Baixo nível educacional e de qualificação profissional, habitante em zona rural, consumidor de álcool, com atraso cognitivo e patologias do foro mental." Bate certo. Não é necessário o anunciado, e assaz democrático, acesso aos dados bancários dos cidadãos para constatar que um alcoólico retardado do interior, sem estudos e provavelmente sem emprego, é criatura de vastos recursos financeiros. Mal se apaguem as chamas nos 200 hectares, uma comissão de avaliação enumera os danos e o tolinho tem 15 dias para efectuar o respectivo pagamento, mediante cheque na conservatória do registo predial ou por transferência no multibanco. O Estado inicia o processo de reconstrução, com investimento público adicional e criação de emprego, e o povo festeja nas ruas. Assunto encerrado.
A ideia é tão boa que deveria ser alargada à própria esfera governamental, na qual indivíduos demasiado incompetentes e nocivos seriam responsabilizados criminal e civilmente pelos estragos cometidos. É evidente que os senhores que nos tutelam não possuem a disponibilidade orçamental do típico maluquinho da aldeia. Em contrapartida, os estragos, no bom senso, na economia e no que calha, são imensamente maiores - e, até a julgar pelas sondagens, o castigo nenhum. Quem é maluco, quem é?
Sexta-feira, 19 de Agosto
O recurso à diplomacia
Os filhos do embaixador do Iraque que, em Ponte de Sor, espancaram um rapaz quase até à morte não possuem apenas imunidade diplomática: aparentemente possuem também imunidade noticiosa. Houve pelo menos um canal televisivo que tratou o caso sem sequer referir a origem dos agressores. Se a ideia era evitar críticas preconceituosas, acho bem. Acolher os representantes oficiais de nações amigas é compreender os respectivos costumes. Alguém condenaria os filhos do embaixador americano por organizarem uma partida de softball com colegas? Ou os filhos do embaixador cabo-verdiano por participarem numa sessão de mornas? Cada um diverte-se como sabe e pode. São as diferenças culturais que fazem do mundo um lugar lindo. E o respeito pelas diferenças torna-o ainda mais bonito.