Não
há, não. Vamos protelando, até
sempre. O PR prometeu pensar nisso lá em Moçambique,
mas decididamente o tempo é-lhe escasso para os assuntos sérios, na sua
roda-viva de futilidades angariadora das simpatias que sobretudo preza, rei
folgazão de uma população distraída. O PM já disse que se está nas tintas para
a escrita da língua, já passou por outro acordo e não se deu mal, que para
todos os efeitos já nenhum lhe corrige a
má pronúncia dos seus “acórdos” plurais, que Deus o abençoe com o “Deixai vir a
mim” para o reino dos Céus, quando lhe chegar a vez. Quanto ao ministro da
cultura, a vasta dimensão do termo, conforme o elemento geralmente de
proveniência clássica que se lhe antepõe – agricultura, floricultura,
piscicultura, apicultura e todas as mais temáticas que queiramos ou
possamos nela integrar, incluindo a suinicultura ou a “asinicultura”
– extrapola das competências do tal
ministro, por desconhecermos a qual dos compostos se refere o cargo ministerial,
certamente que também imune a imposições de consciência ortográfica. Por isso
me lembrei do Zeca Afonso e do seu cantar de desolação por motivos alheios a
este do AO, embora muito valiosos
para si e os seus comparsas de luta por outros “acôrdos”. E termino com ele, como homenagem a Gastão Cruz,
poeta, crítico literário e encenador, pela excelência do seu texto, que segue:
O injustificável acordo orto(?)gráfico
Gastão Cruz
Público 07/08/2016 -
07:30
Reabriu, porventura com redobrada intensidade, a
(felizmente) nunca fechada querela acerca do chamado “acordo ortográfico”.
Importa
começar por dizer que a alteração às normas da escrita do português que dá por esse
nome é uma aberração injustificável, assente em equívocos provenientes de uma
notória falta de ponderação e de uma gritante insensibilidade linguística.
É,
evidentemente, por isso que tantos escritores recusam ter em conta o rol de
incongruências que compromete e invalida essa proposta nova forma de escrever
português.
Chamando
as coisas pelos seus nomes, é uma completa irresponsabilidade que os políticos
(de vários sectores) persistam em defender tamanha aberração, ou, como fez, há
dias, numa entrevista, o meu velho amigo e excelente poeta Luís Filipe Castro
Mendes, assumam uma atitude de ligeireza e quase indiferença perante a medonha
agressão que o “Acordo” representa.
A
questão do chamado “acordo ortográfico” consiste, essencialmente, no facto de
ele ser uma completa inutilidade, que desfigura desnecessariamente o português
escrito, em nome de um suposto objectivo cujo ponto de partida não passa do
erro gerado por um entendimento absurdo do que faz divergir os diferentes usos
da língua.
A
que se destinariam, então, as alterações agora introduzidas na nossa grafia,
tal como ela tem existido desde 1945?
O
“objectivo” seria, segundo se afirma, “a unificação da ortografia do
português em todo o espaço lusófono”.
A
pretensa necessidade de aproximação colocar-se-ia, sobretudo, entre as duas
variantes ortográficas principais, as utilizadas em Portugal e no Brasil.
O
que foi feito assenta na suposição errónea de que as diferenças entre o
português europeu e o sul-americano são fundamentalmente ortográficas, quando
sabemos bem que a separação maior dessas duas vertentes não reside no domínio
da ortografia, e sim nos planos vocabular e sintáctico.
Nenhum
brasileiro, alguma vez, deixou de entender um texto oriundo de Portugal, por
causa da grafia usada até há pouco (e que continua a ser utilizada por muitos,
entre os quais me incluo), assim como nenhum português jamais encontrou
qualquer especial dificuldade, por causa das diferenças gráficas, em apreender
o que tenha sido escrito de acordo com as normas vigentes em terras
brasileiras.
Poderei,
a simples título de exemplo, citar um caso que me parece representativo de
diferenças de outra ordem, que não a ortográfica, entre as duas vertentes da
língua.
Encontrei,
em dado momento, uma notícia publicada no jornal O Globo, com o curioso título
“Jornalista preso por grampos”.
Era
na altura em que muito se falava dos escândalos do jornal britânico The Sun,
quando vários jornalistas foram acusados de fazer escutas telefónicas, ilegítimas,
evidentemente. Lendo o artigo, percebia-se facilmente o que a frase “jornalista
preso por grampos” significava: é claro que os “grampos” eram as tais “escutas
telefónicas”, que teriam levado à prisão do jornalista em causa. Mostrei esta
frase a várias pessoas, que, sem conhecerem o texto da notícia, não conseguiram
interpretá-la, imaginando talvez que o jornalista teria sido pendurado com
molas, numa corda, como roupa a secar.
Na
verdade, nenhum acordo ortográfico poderá impedir estas barreiras semânticas,
assim como, no domínio da construção frásica, nenhum brasileiro deixará de
dizer “Me diga”, onde os portugueses dizem “Diga-me”; e também não vale a pena
supor que, algum dia, algum brasileiro escreva ou, menos ainda, diga
“Dar-te-ei”, “Far-me-ás” e outras conjugações pronominais como estas.
Tanto
no plano vocabular como no da construção frásica, as diferenças são, como se
sabe, múltiplas e enormes. Alguém já se preocupou em fazer um
“acordo” para essas áreas?
É
claro que não: toda a gente sabe que isso seria estúpido e inútil, tão
estúpido e tão inútil como o chamado “acordo ortográfico”, que não se entende
como não foi ainda completamente e definitivamente afastado das nossas vidas,
continuando, pelo contrário, a espreitar-nos e a assombrar-nos, em cada esquina
televisiva e em vários periódicos de estimação (e saúdo, naturalmente, os que
não se submeteram a essa prática aberrante).
As
alterações que o acordo estipula vão, em geral, contra a etimologia das
palavras: são, evidentemente, entre muitos outros, os casos de “actor” ou
de “espectador”, que, perdendo-o agora em português, conservam o “c” em
várias das línguas de origem latina, o mesmo acontecendo com “espectro”, por
exemplo – o que sucede até em inglês, que tem, como sabemos, uma ampla raiz latina.
Para
os escritores, em particular, essas mudanças implicam também uma perda de
sensibilidade linguística, já que descaracterizam as palavras, despojando-as de
traços inalienáveis da sua natureza filológica, com tanto peso na imagem
gráfica respectiva.
É
óbvio que, para dar como exemplo um caso frequentemente referido, a aberrante
grafia “espetador”, aproximando o vocábulo do verbo “espetar”, é uma
monstruosidade que choca quem tiver um mínimo daquela sensibilidade linguística
que mencionei.
Não
posso deixar de referir, muito rapidamente, o facto de, entre muitos outros
casos semelhantes, “espectador”, “recepção”, “óptico”, manterem, na grafia
brasileira, respectivamente, o “c” e os “p”, enquanto em Portugal eles são
absurdamente eliminados. Não se destinava o acordo a “unificar a ortografia em
todo o espaço lusófono”?! É assim que a unificação é feita? O que justifica a
supressão dessas consoantes, se, em vez de aproximar, ela afasta as duas
grafias?
Terminarei
com mais um significativo caso, elucidativo, a meu ver, da insensatez, ou,
talvez mais exactamente, da incompetência linguística, dos responsáveis pela
elaboração do “acordo”: ao abolirem o “p” nas palavras “óptica” e “óptico”,
relacionadas com a visão, estabelecem uma confusão absoluta entre esse fenómeno
e o fenómeno acústico, uma vez que o vocábulo “ótico”, que, obviamente, já
tinha esta grafia, se tornou indistinto do outro “óptico”, o visual.
Em
Outubro de 1958, o número 3 dos Cadernos do Meio-Dia, dirigidos por António
Ramos Rosa e Casimiro de Brito e publicados em Faro, abria com um poema de
Emiliano da Costa, intitulado “Quiasmas”, cuja base era, precisamente, um jogo
entre o “óptico” visual e o “ótico” auditivo.
Eis
o curto poema: “Num cruzamento fibrilar, neurótico, / Feito de som e luz, de
luz e som, / Ouvi-me, dentro, vi-me um orfeom, / Eu, todo sensorial – um
ótico-óptico. // Como é belo ouvir, / Ouvir tua voz, / Depois teu olhar / Ver
dentro de nós! // Tecidas por mim, / Tecidas em cruz, / Fibras sensoriais / De
ver e de ouvir. / – Óticas de som. / – Ópticas de luz.”
Com
o chamado “acordo ortográfico”, este poema não poderia existir.
Termino,
apelando ao Presidente da República, ao Primeiro-Ministro, ao Ministro da
Cultura, para que reabram este processo, no cumprimento do dever
cultural que é a defesa das raízes e das característicaslinguísticas e
filológicas do português.
Vejam bem
Por Zeca Afonso
Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento na areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar
E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de febre a arder
Anda alguém
pela noite de breu à procura
e não há quem lhe queira valer
e não há quem lhe queira valer
Vejam bem
daquele homem a fraca figura
desbravando os caminhos do pão
desbravando os caminhos do pão
E se houver
uma praça de gente madura
ninguém vem levantá-lo do chão
ninguém vem levantá-lo do chão
Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento na areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar
que não há só gaivotas em terra
quando um homem se põe a pensar
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento na areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar
E se houver
uma praça de gente madura
e uma estátua
e uma estátua de febre a arder
Anda alguém
pela noite de breu à procura
e não há quem lhe queira valer
e não há quem lhe queira valer
Vejam bem
daquele homem a fraca figura
desbravando os caminhos do pão
desbravando os caminhos do pão
E se houver
uma praça de gente madura
ninguém vem levantá-lo do chão
ninguém vem levantá-lo do chão
Vejam bem
que não há só gaivotas em terra
quando um homem
quando um homem se põe a pensar
Quem lá vem
dorme à noite ao relento na areia
dorme à noite ao relento no mar
dorme à noite ao relento no mar
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