quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Preservação: a concretização do sonho


É certo que há os que não se importam de destruir os seus monumentos de milhares de anos, levados por estranho facciosismo que se diz religioso, em actos gratuitos de vandalismo, como se fossem os agentes de transformação geológica que, irremediavelmente, vão alterando as estruturas da Terra, mas seguindo um percurso temporal relativamente lento. Aqueles são criminosos rápidos no agir, ao abrigo de uma estranha religião que incita ao ódio e à selvajaria impunes.
Mas nós, que não somos jihadistas, olhamos com indiferença igualmente destruidora aquilo que representa criação e criatividade humanas e deixamos que o tempo faça o seu trabalho de desgaste, passando ao largo, “na safra de apanhar”, sem nos lembrarmos do “quebranto” que o mesmo “Saturno” deu ao Onzeneiro da Barca...
António Barreto, sensível à nossa inércia também criminosa, escreve o seu alerta, que deveria ser tomado como prioridade de qualquer governo. Mas as nossas prioridades foram sempre outras, e até muitas vezes indignas.
Em Julho de 1955, uma bolsa de estudos, que havia então, possibilitou-me um mês de estudo em férias da Sorbonne para estudantes estrangeiros. Religiosamente, cumpri o meu horário nas aulas, mas reservei algumas tardes para visitar monumentos que recordo ainda – o Louvre, embora incompleto, o museu Rodin, o Museu Grévin, a Notre Dame vista de fora, como, aliás, o Arco de Triunfo, a Torre Eiffel… o palácio de Versailles, le Bois de Boulogne, tudo isso pude percorrer então, com agilidade e fervor, como recordo ainda. Mas o que mais me deslumbrou foi La Sainte Chapelle e os seus vitrais que estavam a ser recolocados, pois tinham sido retirados na Segunda Guerra. Nunca mais esqueci o esplendor de luz que atravessava os seus vitrais, e suponho que pela primeira vez me dei conta do trabalho a ter com os monumentos, sobretudo na contingência das guerras. Também foi quando estudante que me deslumbrei com a Batalha, com as suas Capelas Imperfeitas que certamente os desgastes do tempo não poupariam, pensava eu  ao olhar para a ausência de tecto nas tão perfeitas Capelas, pensando que se deveria remediar, ainda que com um guarda–intempéries envidraçado, abobadado, colocado muito acima. Os poucos monumentos que tenho visitado por cá, mostraram-me certa pobreza, apesar das riquezas que os interiores ofereciam, sobretudo os monumentos religiosos, como a Sé de Évora, e nunca esquecerei a forma descabidamente apalhaçada com que o “cicerone” do Palácio de Vila Viçosa se ia referindo aos artefactos ou aos costumes dos duques, creio que por snobismo parolo de democrata recente, pois foi ainda nos anos 70 que o visitámos.
Creio que se fez muita coisa no restauro dos nossos monumentos. Mas António Barreto – e com ele todos os amantes da pátria e do património  - desejaria que fosse mais. António Barreto expõe com saber e decisão o seu parecer sobre as prioridades na governação e nos cuidados a ter com a conservação do nosso património. E “As minhas fotografias” que encima o seu texto, para além da imagem da Virgem e o Menino de Santa Maria de Alcobaça (que também a Internet mostra) colocou o seguinte texto:

A Virgem e o Menino de Santa Maria de Alcobaça – A estátua já esteve em vários locais da catedral. Agora, encontra-se numa pequena capela própria, no Cruzeiro, à esquerda do altar-mor, em frente ao túmulo de D Pedro. É, para mim, em Portugal, a mais bela estátua sacra, a mais bonita Nossa Senhora que conheço, a mais humana, carnal e divina Santa Maria que jamais vi. Eu sei que se trata de opinião e que a avaliação é subjectiva. É também o meu sentimento. Mas já mais objectivo é o juízo que se pode fazer do Mosteiro de Alcobaça, maravilhosa construção que deveria ser venerada e poupada, estudada e preservada. Mas que, infelizmente, não recebe tudo a que tem direito. Faltam-lhe pessoal, técnicos competentes, investimento em estudo e arranjo. Carece de um destino cuidado para grande parte do mosteiro e dos claustros. Ninguém tem a certeza de que, com ou sem hotéis, com ou sem mecenas, aquela jóia única seja respeitada!
Uma comentadora – “Ilha da lua” escreveu em 30/8/16: 
«Esta imagem lembra-me um soneto de Antero de Quental, que começa assim:

"Num sonho todo feito de incerteza
de nocturna e indizível ansiedade
é que eu vi o teu olhar de piedade
e mais que piedade, de tristeza.


Completo o soneto- À Virgem Santíssima -  como homenagem a António Barreto e em súplica aos sucessivos governos, para que atendam o seu apelo, transformando o sonho em realidade:

«…..
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Pobre património
António Barreto
D.N.,28/816 - «Sem Emenda»

A discussão, sem fim, dura há dezenas de anos. Vai tendo, conforme os tempos, problemas e soluções diferentes. Que grau de prioridade deve ser atribuída à inventariação, à preservação, ao estudo e à divulgação do património edificado? Muito? Tudo de que precisa? Medianamente? Deixado ao mecenato privado? É mais importante do que as "artes vivas" ou "performativas", como se diz agora? Mais ou menos importante do que a música, a literatura, a pintura, o cinema e a escultura? Dentro da área vastíssima da cultura e do ponto de vista das políticas públicas, o que é mais importante, o património erudito e a "alta cultura" ou as artes e tradições populares? A investigação é mais importante do que a divulgação? O estudo é mais urgente do que a disseminação popular e de massas?
A resposta mais fácil é aquela que está no espírito de muita gente. Tudo é urgente, tudo é prioritário, não se deve subestimar nenhuma área, todas as artes são importantes, todas as formas de cultura são decisivas, todas as manifestações do espírito são indispensáveis, o passado é tão importante quanto o presente e o futuro. São conhecidos esses argumentos. Que não servem para nada, a não ser alimentar a polémica e manter vivas as expectativas dos grupos de interesses.
A verdade é que é importante estabelecer prioridades a partir de vários critérios: a beleza, a raridade, a importância, o valor, o significado, o conhecimento, o contexto histórico, o custo, o perigo de deterioração, a ameaça de destruição, o risco de apropriação indevida... É difícil enumerar tudo. Mas o estabelecimento de prioridades tem de responder a muitos desses critérios. Até porque nunca há dinheiro para tudo.
A prioridade política deveria ser atribuída ao património histórico e cultural, nomeadamente o edificado. O estudo, a investigação e a preservação deveriam ser as actividades prioritárias. Certas áreas do património não deveriam nunca ser objecto de apropriação privada ou mercantil. O mecenato privado de carácter comercial e publicitário deveria ser uma faculdade acessória, discreta e condicionada, sendo privilegiado o investimento público. As universidades, as associações culturais, profissionais e científicas deveriam ser chamadas a colaborar. Os monumentos deveriam ser rigorosamente estudados, investigados, acompanhados e protegidos.
Entre a penúria pública e a ganância privada, muitos monumentos vegetam sem meios nem técnicos. Visitei recentemente alguns dos mais conhecidos: Mosteiro de Alcobaça, Convento de Cristo em Tomar, Convento de Mafra, Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, Igreja da Memória em Lisboa, Ermida de Nossa Senhora da Conceição em Tomar, Igreja de São Vicente de Fora, Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel, Aqueduto dos Pegões em Tomar... Em todos estes sítios, que sei serem alguns dos mais bem arranjados, detectei progressos enormes, em comparação com o que se via há trinta ou quarenta anos. Mais limpos, mais acessíveis, por vezes menos abandonados. Mas ainda hoje há faltas e falhas imperdoáveis! O pessoal técnico é insuficiente. Há miséria absoluta nas oficinas de restauro. É gritante a falta de verba, de meios e de técnicos de restauro e de conservação. É diminuta a formação técnica e cultural. São muitas as infiltrações nas paredes. Abundam a erva e arbustos nos telhados. Há, por todo o lado, azulejos caídos e janelas quebradas. Ainda se vêem alas inteiras arruinadas e claustros a caírem de podre. Quase todos carecem de indicações e sinalização suficientes. Há, por falta de condições de segurança, edifícios ou partes deles inacessíveis.
O que faz falta é enorme. Por isso deve ser prioridade, em detrimento dos esforços feitos para agradar a clientelas e à "intermediação eleitoral". E em prejuízo do que "dá nas vistas". Sabemos que os monumentos não votam. Mas as pedras podem um dia cair sobre quem não cumpre os seus deveres.


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