Também Álvaro de Campos deu pontapés no equilíbrio gramatical
e rítmico, tal como o fez no lirismo convencional que jamais nenhum poeta se
atrevera a adulterar em temáticas ultrapassando o belo ou o abstracto da
expressão dos sentimentos, segundo o modelo clássico greco-latino. Dessacralização
da arte, se chamou a uma nova forma gritante de exprimir os ruídos e as
violências do progresso contemporâneo, material, dinâmico, brutal. Retomo um
passo da Ode Triunfal, exemplificativo dessa técnica poética interjectiva e alucinante:
…Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes
transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados,
invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve
o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!
Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.
E no entanto, Fernando Pessoa não inventou o processo
dessa técnica futurista, foi-o buscar, inteligentemente, ao “Manifesto
Futurista” do italiano Marinetti, de que transponho um significativo passo da
Internet:
« … E o que mais se pode ver, num velho
quadro, senão a fatigante contorção do artista que se esforçou
para infringir as insuperáveis barreiras opostas ao
desejo de exprimir inteiramente seu sonho?...
Admirar um quadro antigo equivale a despejar nossa
sensibilidade numa urna funerária, no lugar de
projetá-la longe, em violentos jatos de criação e de
ação.
Vocês querem, pois, desperdiçar todas as suas melhores
forças nesta eterna e inútil admiração do
passado, da qual vocês só podem sair fatalmente exaustos,
diminuídos e pisados?
Em verdade eu lhes declaro que a frequência diária aos
museus, às bibliotecas e às academias
(cemitérios de esforços vãos, calvários de sonhos
crucificados, registro de arremessos truncados!...)
é para os artistas tão prejudicial, quanto a tutela
prolongada dos pais para certos jovens ébrios de
engenho e de vontade ambiciosa. Para os moribundos,
para os enfermos, para os prisioneiros, vá lá:
- o admirável passado é, quiçá, um bálsamo para seus
males, visto que para eles o porvir está
trancado... Mas nós não queremos nada com o passado,
nós, jovens e fortes futuristas!
E venham, pois, os alegres incendiários de dedos
carbonizados! Ei-los! Ei-los!... Vamos! Ateiem
fogo às estantes das bibliotecas!... Desviem o curso
dos canais, para inundar os museus!... Oh! a
alegria de ver boiar à deriva, laceradas e desbotadas
sobre aquelas águas, as velhas telas gloriosas!...
Empunhem as picaretas, os machados, os martelos e destruam
sem piedade as cidades veneradas!
Wikipédia, a
enciclopédia livre. Disponível em:
As odes futuristas de Álvaro de Campos são,
pois, resultado de leituras e experiências alheias, que logo captou e tomou
como suas, mais por efeito de leituras sobre o desenvolvimento industrial
exterior do que interno, num país decadente, como fez sentir na 3ª parte da sua
Mensagem.
O AO90, na sua hediondez tenebrosa,
que nenhum chefe de Estado se propõe eliminar, mau grado as tentativas das
pessoas gradas que já demonstraram centenas de vezes o erro da imposição de regras
escritas que adulterarão irremediavelmente a fonética da língua, abastardou-a no
lamaçal de uma profunda e trafulha ignorância, e desonrou o país dessa língua,
como se fossem primitivos de um
país de instintos e uivos amacacados, cada vez mais decadente e arruinado,
apesar de amostras de evolução em alguns “lances” produtivos actuais.
O texto « AO90, a fórmula do desastre», do professor linguista Fernando
Venâncio, alerta para as anomalias dessa ortografia e a mudança, dela
resultante, na oralidade, além do caricato tantas vezes paradoxal da respectiva
escrita.
Um texto que devia ser
fundamental para esclarecer as obtusidades dos tais fazedores do acordo que vão
prometendo rever, mas sem compromisso, na cobardia de enfrentar um cenário que
irremediavelmente os apouque. Connosco é assim e manda quem pode, não quem
sabe. Como já muitos disseram, e o sentimos a cada passo, valemos pouco e o
país cada vez menos. Que importância pode ter essa coisa chamada língua num mísero
país cuja escrita e pronúncia podemos adaptar… ao calhas?
AO90, a fórmula do desastre
FERNANDO VENÂNCIO
Público, 01/08/2016
Este Acordo surgiu da ingénua convicção de que
a grafia do português europeu era ordenável a nosso bel-prazer. Não é. Mas
podem, e devem, atalhar-se desordens maiores. Hoje. Já. Cada dia perdido, o
desastre aumenta.
1. Alguma vez um anti-acordista disse sobre o Acordo
Ortográfico de 1990 qualquer coisa boa, mesmo boa? Pois aqui vai uma
magnífica. O AO90, ao qual se deseja uma rápida e humana morte, terá deixado um
precedente deveras valioso. Pela primeira vez no nosso secular debate
ortográfico, a Pronúncia é feita critério
decisivo da grafia, assim destronando a Etimologia do topo do pódio,
invertendo beneficamente a hierarquia. Mas
foi mais sorte que esperteza, já que nunca os autores e promotores do Acordo
reivindicaram o cometimento. Só que, no momento de ser aplicada a Portugal essa
sã primazia da Pronúncia, as coisas correram mal. Já lá iremos.
2. Houve um momento, por 1990, em que fomos
colectivamente patetas. Ou, em versão atenuada, deixámos a
patetice à solta. Tínhamos tido, é certo, o discernimento de rejeitar sem
perdão o Acordo Ortográfico de 1986. Era um produto desconchavado, a pingar
óleo por todos os lados, um absurdo de alto requinte. Mandava, pois, a mais
singela chispa de inteligência que lembrássemos bem alto, a quem de direito,
que nem um só dos artífices da façanha pensasse em propor mais o que quer que
fosse. Quem concebera o monstro de 86 jamais
seria de confiar. Sabe-se o que
aconteceu. Aos mesmos exactos e impreparados senhores foi estendida de novo
a passadeira vermelha, só se lhes pedindo, por deferência, que apresentassem
qualquer coisinha menos repugnante. Pagámo-lo como se viu.
3. A
coisa ortográfica é, hoje, gerida por duas instituições
de que não se conhecem mútuos entendimentos: o ILTEC (Instituto de
Linguística Teórica e Computacional), encarregado pelo Estado de definir as
formas a adoptar, e a ACL (Academia das Ciências de Lisboa), que se
declara instância competente para "elaboração e publicação" do
Vocabulário Ortográfico do idioma. As suas propostas divergem, às vezes do modo
mais arbitrário. Dois exemplos por recente consulta online.
Ambos
os institutos admitem as grafias (e pronúncias) perfeccionismo, perfeccionista, perfectível,
mas só o ILTEC patrocina perfecionismo,
perfecionista, perfetível. Os dois dão a cara por conceptista, conceptual econceptualizar, os
dois negam a variante concepcional,
mas conceptualmente e conceptível admitem-se
só no ILTEC e conceptivo só
na ACL.
4. Não
resolvendo nenhum real problema, o Acordo veio agravá-los. Mais alguns
exemplos, sempre em estrito cenário europeu. O vocabulário do ILTEC e o da ACL
avançam conectar como
forma única (excluindo portanto conetar).
Mas, surpreendentemente, permitem conectividade e conetividade, conectivo e conetivo, conector e conetor.
Não
existirá, então, conetar?
Os bem informados dicionários online da Priberam e da Porto Editora acham que
sim, e neles figuram conectar e conetar.
Para
nos orientarmos neste sombrio mundo, tomamos o Dicionário da ACL,
organizado por João Malaca Casteleiro (um "dicionário de autor", no
fino dizer de Ivo Castro), que fornece pronúncias e se pretende
"normalizador", publicado em 2001, com o AO90 já no terreno. Aí
achamos, sempre com som k, só conectar, conectivo, conector.
Agora
em movimento contrário, pesquisamos os casos de séptico e asséptico. O
dicionário de Malaca Casteleiro grafa-os assim, mas só em séptico o p aparece
audível. A ACL de hoje apadrinha asséptico e assético,
mas só inculca séptico. O oficial ILTEC, esse, avaliza
todas as grafias (e portanto pronúncias): séptico e asséptico, sético e assético.
Situações
destas multiplicam-se por dezenas. E recordemos que o
panorama brasileiro (que o leitor português frequenta, mesmo quando só lhe cai
sob os olhos) está longe de coincidir com qualquer destes. Que teria feito,
pois, gente sensata? Não teria feito nada. Manter-se-ia longe deste vespeiro, e nunca certamente se
meteria a esgaravatar nele.
Tudo
isso se fez invocando uma "pronúncia
culta", outra novidade conceptual do
AO90, não decerto disparatada, mas de aplicação factualmente leviana. A
simples realidade é esta: o sistema
português das consoantes etimológicas encontra-se, desde há séculos, em
profunda instabilidade, digamos tudo, em estado caótico, e não se lhe vislumbra
melhoria. Podemos lamentá-lo, podemos tentar
abrir aqui e ali corta-fogos, mas a
instabilidade veio para ficar. E
que fez este AO? Tirou-nos duma situação em si suportável, e introduziu-nos,
sem ganho nenhum, num emaranhado de perplexidades.
5. A indecisão da nossa pronúncia não pára no articular de
consoantes. As vogais, também elas, e sobretudo o a, podem
comportar-se caoticamente. Veja-se o caso da primeira vogal do prefixo para- no vocabulário
do ILTEC. É aberta
em para-brisas, para-choques, para-raios, para-sol,
mas fechada
(e repare-se na grafia) em paraquedas.
O fechamento em paramédico ou paranormal, podendo explicar-se, continua
da ordem do especioso.
Também as vogais que precedem consoantes etimológicas vêm
sendo historicamente afectadas. De modo lento, decerto pontual,
mas irreversível, mostram um processo de fechamento (de elevação, dizem os
linguistas), também ele de tipo caótico. Pronunciamos àtor,
mas âtuar e
crescentemente âtriz.
Dizemos
olfáto mas olfâtivo, exáto mas exâtidão. O próprio dicionário de Malaca
Casteleiro ensina as pronúncias àção e
àcionamento, mas âcionado, âcionar, âcionista.
Mas
há mais extraordinário ainda. Mesmo quando articulamos a consoante, a
vogal precedente pode, contra toda a expectativa, fechar-se. Assim, a nossa pronúncia
"culta" pede (são meros exemplos) lácteo mas lâcticínio, capturar e
càptura mas
captar, bactéria (ou
já bâctéria?) mas bâcteriano, facto mas
fâctual. É, de novo, o caos em todo o esplendor.
Pois bem, num raro pronunciamento público, os fabricadores do AO
mostram-se aqui triunfantes. "Estão a ver? As consoantes não fazem serviço nenhum". É uma elaborada forma de cinismo. Em vez de
reconhecerem que em sistemas caóticos, ou não se interfere, ou se o faz com
tino, apenas esfregam sal na ferida, numa satisfação alarve.
6. Como
se tudo isto não bastasse, a
aplicação do AO entrou numa dinâmica perversa. Mal informados, desorientados,
os utentes refugiam-se no excesso de zelo, cortando consoantes a torto e a
direito, em patéticas violações do Acordo em nome do próprio Acordo.
De dezenas de casos documentáveis, citem-se atidão, cócix, helicótero, núcias, oção, óvio, rétil, sução, tenológico. Nem faltam as soluções invencivelmente
criativas como "os fatos
consumados", "em idade proveta",
"travagem abruta", "pato com o diabo" (em
reedição de Saramago), "catação de investimento",
"o entusiasmo elipsou-se", "a mulher latente".
E que fazem os procriadores do Acordo? Encolhem os ombros,
sorriem distantes, não é com eles. Há-de passar. Hipercorrecções sempre as
houve e haverá. Tirando isso o Acordo é um sucesso. Não lhes ouvimos um público
e curial "Não foi isto o que quisemos!", como se até isso os
humilhasse.
7. Ao fim de anos e anos de queixas, denúncias,
ataques, implorações, os inventores do AO continuam, pois, a festejá-lo. Nunca,
porém, a protegê-lo. A sério: jamais se viu defenderem materialmente o
seu produto. Não existe um simples artigo em que o AO90 veja defendidas as suas
concretas opções, esclarecidas naturais dúvidas, expostas vantagens. Em horas
de aperto, vêm promessas de não se negar uma revisãozinha, não senhor, mas só
com todas as ratificações no bolso. É a mais transparente das chantagens. Se o
empenho numa revisão deveras existisse, o racional seria oferecê-la desde já em
troca das ratificações em falta. Mas a questão não se lhes põe sequer. Os
guardiães do AO sabem que a mais ténue fresta conduziria à implosão do
edifício. Chamem-lhes parvos.
8. Hoje, e de há muito, a eficaz resistência ao Acordo
é devedora a autores, a tradutores, a jornalistas e, sim, também a editores. É
devedora a ensaístas como António Emiliano (O fim da ortografia, 2008) e
Francisco Miguel Valada (Demanda, deriva, desastre, 2009), mais o saudoso Vasco
Graça Moura, que puseram em crua luz os abismos de absurdo a que, em matéria de
economia linguística, este AO conduzirá. É devedora a professores, gente na
primeira linha de fogo, e a muitos, muitos cidadãos. É devedora a activistas na
rede como o tradutor João Roque Dias e o colectivo "Tradutores contra o
Acordo Ortográfico", que vêm cartografando desmandos, incongruências,
arbitrariedades. É devedora ao Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, que,
mesmo acordizante, se fez repositório de quanto sobre o AO se publica.
Este Acordo surgiu da ingénua convicção de que a grafia do
português europeu era ordenável a nosso bel-prazer. Não é. Mas podem, e devem,
atalhar-se desordens maiores. Hoje. Já. Cada dia perdido, o desastre aumenta.
Professor e linguista
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