Cada artigo de Alberto
Gonçalves é um repositório de informação atenta ao quotidiano nacional e
estrangeiro, um exemplo de saber técnico e literário, quer na expressão linguística, quer na mordacidade e na sátira,
é também um exemplo de coragem que poderia ter maior repercussão sobre as almas
prudentes do nosso património demográfico, já acobardado no costumeiro deixar
correr o marfim enquanto espera que a Virgem de Fátima nos vá envolvendo no seu
manto, ou que o tempo vá resolvendo, no seu vagar, o nosso destino, embevecidos
que ficamos na contemplação dos fogos, a partir do sofá e de mistura com o ar
condicionado, esperando chuva propícia que os elimine de vez.
Alberto Gonçalves culpa o
governo, por ser bonacheirão relativamente aos ateadores de fogos, e por aconselhar
contenção na sua divulgação jornalística, sobretudo na forma plena de humano calor – devido não
só à intensidade da temperatura, como por via das labaredas cada ano mais
ateadas - com que os repórteres em campo interrogam piedosamente os
prejudicados dos incêndios, excitando a
nossa emoção reprovadora desse vandalismo criminoso.
Parece que há interesses económicos
neste atear dos fogos, parece também que há doentes mentais a ateá-los, ou
simples criminosos divertidos e impunes, talvez remunerados pelos criminosos mandatários,
o certo é que Alberto Gonçalves, ao intitular o seu artigo “Sinais de fumo”,
faz sugerir também uma certa identificação nossa com os povos primitivos dos
vários continentes de se comunicarem entre si, dantes, à distância, com os
lumes e sobretudo os fumos, para avisar dos perigos.
Que a pátria está em perigo,
isso é certo. Que os fogos queiram avisar disso e de caminho ajudar à consumação dele,
talvez seja a dedução que devamos tomar em conta no simbolismo metafórico do
título da crónica. E à falta de medalhas olímpicas, como aquelas obtidas por
atletas do mundo que poderosamente as ganharam pelo seu esforço aturado, em
espectáculos surpreendentes de beleza e perícia, poderemos sempre orgulhar-nos,
todavia, da nossa participação incendiária única - pela calada da noite ou mesmo
do dia, sem esforço, mas com uma dimensão e uma projecção perfeitamente olímpicas.
Sinais de fumo
Alberto Gonçalves
DN, 15/8/16
Não
sou consumidor da cobertura televisiva dos incêndios, que inclui repórteres
ofegantes, populares desesperados e "directos" de labaredas que
terminam de madrugada, quando as labaredas continuam em pleno e as audiências
não. Porém, não partilho o zelo dos que apelam à "contenção", ou
de facto à abolição de imagens assim. O pretexto é evitar fenómenos de
contágio: segundo esta tese, o potencial pirómano, até aí sossegado no sofá de
casa, é instigado pelo "telejornal" a cumprir o seu destino e corre
para a mata com um Zippo e um jerricã de gasolina. O objectivo real é
evitar o mau aspecto e preservar a felicidade extrema que o povo, por graça do
governo, deve experimentar sem interrupções. Enquanto tudo ardia há dias, a
única manifestação do primeiro-ministro consistiu em congratular pelo Twitter a
vencedora de um "bronze" olímpico. Quem não salta de alegria e
prefere deprimir-se com a fuligem que esconde o céu não é patriota.
Entre
parêntesis, as tentativas de censura, perdão, de contenção não são, bem
entendido, uma novidade: desde que o país adquiriu o hábito de irromper em chamas
no Verão que cada poder vigente procura poupar os espectadores a maçadas. Nova,
parece-me, é a tendência de alargar a censura, perdão, a contenção a todos os
alvoroços que belisquem o sossego oficial e oficioso. Já a recente sucessão de
atentados na Europa levou almas delicadas a sugerir que os atentados não fossem
noticiados. O pretexto - lá vamos nós - era a necessidade de não cair na propaganda
do Estado Islâmico. O objectivo, esgotados os esforços para atribuir culpas à
psiquiatria e à exclusão social, era dissimular a influência do islão nas
matanças. Se a moda pega, não se passa nada sobre os
incêndios, não se passa nada sobre o terrorismo, não se passa nada sobre o
buraco sem retorno em que a frente de esquerda está a meter-nos, não se passa
nada, ponto. Descontados, claro, a medalha no judo ou no dominó, imensa
bola e tontinhos eufóricos com a sorte de serem portugueses. É a consagração da
escola de jornalismo de Pyongyang.
Fechado
o parêntesis, regresso, salvo seja, aos incêndios. E para constatar,
pasmado, a extraordinária quantidade disponível de peritos no tema.
Principalmente as televisões foram ocupadas por resmas de comentadores
especializados em fogos e especializados em ridicularizar as teses dos
restantes especialistas em fogos. Por um lado, estranha-se que um lugar com
esta concentração de sábios arda com tamanha facilidade e tamanha regularidade.
Por outro, compreende-se que apenas a profusão de devastações fomente o
surgimento dos sábios: em princípio, os estudiosos das cheias também não vivem
no Death Valley.
Por
mim, lamento não acrescentar coisa nenhuma ao emocionante debate. Salvo
banalidades: com frequência, a área ardida em Portugal supera a de qualquer
membro da União Europeia, e este ano quase supera a dos demais membros juntos.
É possível que o crime tenha demasiado a ver com isto. É possível que a incúria
e a demografia e o acaso não ajudem. É garantido que destruir é fácil, e que a
destruição é facílima onde a incúria manda e dois terços do território são
largados ao acaso. No fundo, é o que sempre disse, nas ocasiões em que a
actualidade me pedia umas linhas a propósito dos incêndios e eu, sob pena de
insensibilidade, obedecia. Muitos alteram o discurso de acordo com as
circunstâncias.
As
circunstâncias são aliás curiosas. Em 2005, o inimitável dr. Costa era ministro
da Administração Interna de um governo que recusou uma proposta de prevenção do
Instituto Superior de Agronomia e, nas palavras do actual deputado socialista
Ascenso Simões, cometeu o "erro grave" de optar "pelo derradeiro
elemento da cadeia de valor - o combate". Em 2016, o dr. Costa lidera o
governo e, logo que as férias e o Twitter lhe permitiram, apareceu a avisar os
néscios que "não pode haver a ilusão de que os incêndios se evitam
combatendo-os". Há dez anos, a cabeça do dr. Costa engendrou um encantador
Plano de Defesa da Floresta - obviamente um sucesso - e um concurso público
para aquisição de "meios aéreos", por sinal repleto de pormenores
pitorescos. Agora, da cabeça do dr. Costa sai um "grupo de trabalho"
para "reforma da floresta", que fatalmente correrá pelo melhor.
Nos
intervalos dos planos quinquenais, o PS andou pela oposição a gritar, com a
extrema-esquerda, que a responsabilidade pelos fogos cabia à
"direita". As acusações eram tão firmes que houve ingénuos a imaginar
Durão Barroso e Passos Coelho no meio do arvoredo, o jerricã de gasolina às
costas. Em 2016, PS e extrema-esquerda (se a distinção ainda se justifica)
partilham o poder, o lirismo e a falta de vergonha perante os flagelos
estivais. A amadora dramática Catarina Martins rima "coração" com
"aflição" e fala em "impotência". O PCP critica a Política
Agrícola Comum. Uma senhora que anda pelo MAI esperava "solidariedade
europeia". A sério?
Nem
a brincar. É difícil impedir os incêndios. É mais difícil impedir a repulsa
face ao uso "estratégico" das respetivas vítimas. Dia após dia, esta
gente que nos caiu em cima consegue avanços inéditos em matéria de
descaramento. O fumo no ar é um mero sinal da loucura que por aí vai: de
desgraça em desgraça, não são só as chamas literais que ameaçam reduzir
Portugal a cinzas. Infelizmente, os noticiários limitam-se, enquanto podem, a
relatar essas. E das outras não há "meios", terrestres ou aéreos, que
nos salvem. Mas haverá um fim. Daqueles tristes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário