segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Fumemos



Cada artigo de Alberto Gonçalves é um repositório de informação atenta ao quotidiano nacional e estrangeiro, um exemplo de saber técnico e literário, quer na expressão  linguística, quer na mordacidade e na sátira, é também um exemplo de coragem que poderia ter maior repercussão sobre as almas prudentes do nosso património demográfico, já acobardado no costumeiro deixar correr o marfim enquanto espera que a Virgem de Fátima nos vá envolvendo no seu manto, ou que o tempo vá resolvendo, no seu vagar, o nosso destino, embevecidos que ficamos na contemplação dos fogos, a partir do sofá e de mistura com o ar condicionado, esperando chuva propícia que os elimine de vez.
Alberto Gonçalves culpa o governo, por ser bonacheirão relativamente aos ateadores de fogos, e por aconselhar contenção na sua divulgação jornalística, sobretudo na forma plena de humano calor – devido não só à intensidade da temperatura, como por via das labaredas cada ano mais ateadas - com que os repórteres em campo interrogam piedosamente os prejudicados  dos incêndios, excitando a nossa emoção reprovadora desse vandalismo criminoso.
Parece que há interesses económicos neste atear dos fogos, parece também que há doentes mentais a ateá-los, ou simples criminosos divertidos e impunes, talvez remunerados pelos criminosos mandatários, o certo é que Alberto Gonçalves, ao intitular o seu artigo “Sinais de fumo”, faz sugerir também uma certa identificação nossa com os povos primitivos dos vários continentes de se comunicarem entre si, dantes, à distância, com os lumes e sobretudo os fumos, para avisar dos perigos.
Que a pátria está em perigo, isso é certo. Que os fogos queiram avisar disso e de caminho ajudar à  consumação dele, talvez seja a dedução que devamos tomar em conta no simbolismo metafórico do título da crónica. E à falta de medalhas olímpicas, como aquelas obtidas por atletas do mundo que poderosamente as ganharam pelo seu esforço aturado, em espectáculos surpreendentes de beleza e perícia, poderemos sempre orgulhar-nos, todavia, da nossa participação incendiária única - pela calada da noite ou mesmo do dia, sem esforço, mas com  uma dimensão e uma projecção perfeitamente olímpicas.

Sinais de fumo
Alberto Gonçalves
DN, 15/8/16
Não sou consumidor da cobertura televisiva dos incêndios, que inclui repórteres ofegantes, populares desesperados e "directos" de labaredas que terminam de madrugada, quando as labaredas continuam em pleno e as audiências não. Porém, não partilho o zelo dos que apelam à "contenção", ou de facto à abolição de imagens assim. O pretexto é evitar fenómenos de contágio: segundo esta tese, o potencial pirómano, até aí sossegado no sofá de casa, é instigado pelo "telejornal" a cumprir o seu destino e corre para a mata com um Zippo e um jerricã de gasolina. O objectivo real é evitar o mau aspecto e preservar a felicidade extrema que o povo, por graça do governo, deve experimentar sem interrupções. Enquanto tudo ardia há dias, a única manifestação do primeiro-ministro consistiu em congratular pelo Twitter a vencedora de um "bronze" olímpico. Quem não salta de alegria e prefere deprimir-se com a fuligem que esconde o céu não é patriota.
Entre parêntesis, as tentativas de censura, perdão, de contenção não são, bem entendido, uma novidade: desde que o país adquiriu o hábito de irromper em chamas no Verão que cada poder vigente procura poupar os espectadores a maçadas. Nova, parece-me, é a tendência de alargar a censura, perdão, a contenção a todos os alvoroços que belisquem o sossego oficial e oficioso. Já a recente sucessão de atentados na Europa levou almas delicadas a sugerir que os atentados não fossem noticiados. O pretexto - lá vamos nós - era a necessidade de não cair na propaganda do Estado Islâmico. O objectivo, esgotados os esforços para atribuir culpas à psiquiatria e à exclusão social, era dissimular a influência do islão nas matanças. Se a moda pega, não se passa nada sobre os incêndios, não se passa nada sobre o terrorismo, não se passa nada sobre o buraco sem retorno em que a frente de esquerda está a meter-nos, não se passa nada, ponto. Descontados, claro, a medalha no judo ou no dominó, imensa bola e tontinhos eufóricos com a sorte de serem portugueses. É a consagração da escola de jornalismo de Pyongyang.
Fechado o parêntesis, regresso, salvo seja, aos incêndios. E para constatar, pasmado, a extraordinária quantidade disponível de peritos no tema. Principalmente as televisões foram ocupadas por resmas de comentadores especializados em fogos e especializados em ridicularizar as teses dos restantes especialistas em fogos. Por um lado, estranha-se que um lugar com esta concentração de sábios arda com tamanha facilidade e tamanha regularidade. Por outro, compreende-se que apenas a profusão de devastações fomente o surgimento dos sábios: em princípio, os estudiosos das cheias também não vivem no Death Valley.
Por mim, lamento não acrescentar coisa nenhuma ao emocionante debate. Salvo banalidades: com frequência, a área ardida em Portugal supera a de qualquer membro da União Europeia, e este ano quase supera a dos demais membros juntos. É possível que o crime tenha demasiado a ver com isto. É possível que a incúria e a demografia e o acaso não ajudem. É garantido que destruir é fácil, e que a destruição é facílima onde a incúria manda e dois terços do território são largados ao acaso. No fundo, é o que sempre disse, nas ocasiões em que a actualidade me pedia umas linhas a propósito dos incêndios e eu, sob pena de insensibilidade, obedecia. Muitos alteram o discurso de acordo com as circunstâncias.
As circunstâncias são aliás curiosas. Em 2005, o inimitável dr. Costa era ministro da Administração Interna de um governo que recusou uma proposta de prevenção do Instituto Superior de Agronomia e, nas palavras do actual deputado socialista Ascenso Simões, cometeu o "erro grave" de optar "pelo derradeiro elemento da cadeia de valor - o combate". Em 2016, o dr. Costa lidera o governo e, logo que as férias e o Twitter lhe permitiram, apareceu a avisar os néscios que "não pode haver a ilusão de que os incêndios se evitam combatendo-os". Há dez anos, a cabeça do dr. Costa engendrou um encantador Plano de Defesa da Floresta - obviamente um sucesso - e um concurso público para aquisição de "meios aéreos", por sinal repleto de pormenores pitorescos. Agora, da cabeça do dr. Costa sai um "grupo de trabalho" para "reforma da floresta", que fatalmente correrá pelo melhor.
Nos intervalos dos planos quinquenais, o PS andou pela oposição a gritar, com a extrema-esquerda, que a responsabilidade pelos fogos cabia à "direita". As acusações eram tão firmes que houve ingénuos a imaginar Durão Barroso e Passos Coelho no meio do arvoredo, o jerricã de gasolina às costas. Em 2016, PS e extrema-esquerda (se a distinção ainda se justifica) partilham o poder, o lirismo e a falta de vergonha perante os flagelos estivais. A amadora dramática Catarina Martins rima "coração" com "aflição" e fala em "impotência". O PCP critica a Política Agrícola Comum. Uma senhora que anda pelo MAI esperava "solidariedade europeia". A sério?
Nem a brincar. É difícil impedir os incêndios. É mais difícil impedir a repulsa face ao uso "estratégico" das respetivas vítimas. Dia após dia, esta gente que nos caiu em cima consegue avanços inéditos em matéria de descaramento. O fumo no ar é um mero sinal da loucura que por aí vai: de desgraça em desgraça, não são só as chamas literais que ameaçam reduzir Portugal a cinzas. Infelizmente, os noticiários limitam-se, enquanto podem, a relatar essas. E das outras não há "meios", terrestres ou aéreos, que nos salvem. Mas haverá um fim. Daqueles tristes.

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