Consulto na Internet a bibliografia da vasta obra de Jaime
Nogueira Pinto apenas para confirmar quanto tem publicado de estudos que não
conheço, mas que suponho de idêntica seriedade à que o seu “Portugal – Os
anos do Fim” continha, daqueles primeiros anos sucedâneos ao 25 de
Abril, obra que de certo modo atenuou, pela sua coragem e desassombro
tranquilo, a surpresa horrorizada ante a derrocada de um povo que, sem derramamento
de sangue, por cobardia e traição, chutou de si pedaços de uma história mais ou
menos épica, atraiçoando não só a história e os patriotas sinceros, mas as
gentes ultramarinas que lhe deram sentido - como um qualquer leigo extirpa de
si tumor maligno, sem as cautelas providentes do perito. E na Internet li que
Jaime Nogueira Pinto fez a guerra colonial como voluntário, o que justifica os
princípios e a seriedade dos seus pontos de vista, captados em todos os seus
artigos sobre a história dos novos tempos, para além do estudo sério da História
do passado, que no seu processo evolutivo,
serve de clarificação do presente.
O artigo que segue - O Verão do nosso
descontentamento – é uma síntese dessas histórias, do passado e das
evoluções e revoluções do presente, num interregno em que, aparentemente em
férias, os rugidos de transformação vão borbulhando, nas entranhas dos mundos
irrequietos, possibilitando todas as hipóteses, entre as quais aquela que defende Jaime Nogueira Pinto: «o
paradigma está em transformação e numa transformação em que o regresso da nação
como vértice das lealdades políticas e quadro regulador das economias é
incontornável.»
O Verão do nosso descontentamento
Jaime Nogueira Pinto, Historiador
DN , 7/8/16
Neste
tempo tão incerto, já nem a silly season é o que era - pelo menos a julgar por
esta, animada pelo terrorismo jihadista de direcção central ou de franchise,
por um golpe militar turco que vai para os manuais de "como não fazer
um golpe de Estado" e por candidatos à presidência americana que
têm mais inimigos do que defensores e se digladiam numa campanha de
confrontação ideológica e verbal nunca vista.
O
Reino Unido e a UE vão cicatrizando feridas, num divórcio pacífico de
negociação racional e pragmática: Theresa May fala com Merkel e
Hollande, deixando para depois o pitoresco Juncker e a Comissão de Bruxelas, e
os eurofundamentalistas pararam com os impropérios contra o nacionalismo e a
ignorância dos ingleses. Talvez tenham percebido que pedir agora
"mais Europa", no sentido de "mais União" ou "mais
Federação", em nada os ajuda, e que o melhor será ficarem-se pelo
"Mercado Comum".
É
que o que está a acontecer pode ser mais do que uma fronda dos povos contra
as elites, mais do que uma jacquerie dos descamisados contra os senhores
omniscientes da mão invisível. A reunificação alemã, o triunfo
nacional-autoritário na Rússia de Putin e na Turquia de Erdogan e o brexit
inglês podem ser sinal de uma vaga profunda gerada por forças políticas,
sociais e económicas prontas a convergir num novo paradigma. E, tal como no
final dos anos 80 uma URSS disfuncional, descrente e desacreditada se rendia
aos Estados Unidos, também hoje a globalização sem limites e o diktat dos
mercados contra os Estados parecem encaminhar-se para a descrença e o
descrédito.
O
mercado global, que teve as suas vantagens, causou também enormes traumas
políticos e sociais. O sucesso entre os operários e as classes médias de Donald
Trump e do Leave no Reino Unido só são incompreensíveis se não pensarmos nas
consequências invisíveis da globalização: o empobrecimento das classes
trabalhadoras dos países industriais, a desindustrialização, a depreciação dos
salários dos "nativos" pela concorrência dos trabalhadores migrantes.
E
não será por chamar "populistas" a estes movimentos - quer sejam de
direita, como o de Trump, o de Marine Le Pen, o da UKIP e o dos partidos no
governo na Polónia e na Hungria; ou de esquerda, como o Cinque Stelle e o Podemos
- que deixam de ser populares e de abalar o "centro".
Perante
esta mudança de paradigma, as almas mais alarmadas e alarmistas invocam o
"perigo fascista" - xenófobo, antidemocrático e autoritário -, que
aproximam da vaga totalitária do século passado.
Mas
as coisas são diferentes. Nenhum destes movimentos ou candidatos
"anti-sistema" apresenta um modelo de legitimidade constitucional
alternativa à democracia. O que está a ser posto em causa é a correcção
política obrigatória e os ditames do funcionamento ideal da democracia.
E é precisamente graças a esta dogmática arrogante (que pretende convencer-nos
de que uma ideologia, tão sectária como as outras, é a verdade política
absoluta) que os movimentos "populistas" ganham espaço.
Outro
estratagema tem sido o de dizer que o regresso da religião, da
nação e da família se deve exclusivamente ao medo - do desemprego, da
estagnação, do terrorismo. O pensamento único não tem também deixado de
insinuar que, uma vez que o apoio a Trump ou a Le Pen cresce com as acções
terroristas, são eles que estão na origem do terror, rejubilando
secretamente sempre que uma bomba explode ou um fanático esfaqueia um inocente.
Mas o que mais tem ocupado e preocupado os bem-pensantes é o chamado
regresso da nação.
A
nação foi o centro da história política europeia nos dois séculos
que vão da Revolução Francesa ao fim da Guerra Fria. Embora já se pudesse
descortinar na guerra da independência americana ou até em movimentos de
centralização dos Estados europeus a partir do Renascimento, a nação moderna
nasce na ponta das baionetas da França revolucionária e jacobina. Nasce,
por isso, republicana, igualitária e popular. Um César plebeu, coroado
imperador pelo Papa e aliado pelo casamento à crème de la crème da realeza europeia,
vai levar as suas águias até aos limites orientais e ocidentais da Europa,
onde sofre derrotas às mãos dos populares espanhóis e portugueses e de Kutuzov,
o general do czar, herói de Tolstói, de Estaline e de todos os russos.
Nas
invasões, a nação imperial, porta-estandarte da revolução e do nacionalismo,
acabou por ser vítima dele: foi a fúria patriótica que empurrou para a luta
contra os que se julgavam donos do nacionalismo os camponeses das Beiras
lusitanas, e os insurgentes de Madrid do 2 de Maio. E foi assim que os russos,
que queimaram as choças e os palácios para obrigar os franceses a fugir de
Moscovo, descobriram a nação russa.
Sempre
foi essa a força, a vulnerabilidade e a ambiguidade da nação e do nacionalismo:
enquanto o império integra comunidades diferentes - tribos, cidades, etnias,
religiões -, a nação inspira a sua própria comunidade mas gera o medo, a
contradição e a reacção nas outras.
À
sua maneira, a União Europeia quis ser uma espécie de império. Mas só é César
quem sabe e quem pode e, manifestamente, o Sr. Juncker não sabe nem pode.
O milagre português
O
nacionalismo português é um nacionalismo antigo que surgiu quando, em 1383-85
os nobres, os burgueses e os populares não quiseram um rei estrangeiro. Os
nobres "patriotas" eram geralmente filhos segundos e bastardos, como
o Mestre de Aviz, Nun"Álvares e os seus irmãos, e os burgueses, como
Álvaro Pais e João das Regras, foram os conspiradores, os guias do povo miúdo
que tinha sofrido as violências dos castelhanos no cerco de Lisboa e nas
invasões do tempo de D. Fernando. Perceberam o processo de unificação
peninsular em curso e não quiseram entrar nele. Por isso trataram de
ganhar massa crítica com as praças de Marrocos, o comércio e navegação
atlânticos e as especiarias orientais. E nos dois séculos seguintes, de
Aljubarrota a Alcácer Quibir, o reino foi consolidando uma identidade, uma
língua, uma base cultural.
Essa
identidade, feita também de mitos nacionais como o sebastianismo, ajudou a
firmar e a manter a nação nos tempos da monarquia filipina, de que nos
libertámos em 1640, graças a uma estratégia de guerra e diplomacia que teve no
rei D. João IV e no padre António Vieira os seus intérpretes. Pombal
centralizou o poder político e económico do Estado e, nas invasões francesas,
os populares - ao contrário das elites - entenderam que, por muito maus que
fossem os opressores nacionais, os estrangeiros eram sempre piores.
Tivemos
depois um século XIX igual ao do resto da Europa católica e do Sul: um conflito
dinástico e uma história de constitucionalismo convulso, estabilizado pela
Regeneração. Uma história animada por políticos medianos, elites
provincianas, caudilhos militares e golpes de Estado. Tudo isto a par
de trapalhice financeira e uma dívida pública e externa sempre crescente. Nos
finais do século, uma minoria político-militar esclarecida conseguiu
alinhar-nos na partilha e na corrida a África.
A
nação maltratada foi sobrevivendo. Em 1916, os republicanos, em nome de
Portugal, que para eles fora desprezado pelos Bragança no Ultimato, mas
sobretudo em nome da República e da defesa das colónias, levaram o país para a
guerra europeia. A ditadura militar e o Estado Novo salazarista assumiram o
nacionalismo antidemocrático que estava então na moda na Europa. Depois de
1945, graças à Guerra Fria, à melhoria da economia, à capacidade de Salazar e à
incapacidade das oposições, o Estado Novo sobreviveu mais três décadas. E, com
ele, o país que tinha sido pioneiro da expansão foi o último a fechar o ciclo
do Império em 1975, e a entrar - depois do interregno revolucionário de
1974--1976, na III República e na União Europeia.
Se
os dirigentes do Estado Novo tinham branqueado e manipulado a história nacional
para legitimar uma concepção do mundo, os antifascistas caricaturaram-na e aos
portugueses num retrato unidimensional, destorcido por uma pacóvia e acrítica
admiração pelos "povos civilizados" e avançados "da
Europa". Essa historiografia fez de nós uns escravocratas manhosos e
mesquinhos, uma espécie de potentados do Sudoeste europeu com tendência para a
obediência cega, a religiosidade supersticiosa e a trafulhice e a rapina
endémicas. Um povo e uma nação que só se terão redimido quando um punhado de
antifascistas restaurou a democracia e descobriu, entre perigos e trabalhos
mil, o caminho terrestre para a Europa.
Deste
modo, entre a ignorância e o propósito de uma elite política sem leitura nem
reflexão histórica, o país foi e vai sobrevivendo sem estratégia nem pensamento
independente. Como que por milagre.
Renacionalização das economias?
Quando
caíram os regimes autoritários de Portugal e de Espanha, foi fácil democratizar
porque havia nação, sociedade civil e classe média; na área soviética, a
democratização levou à fragmentação ou à reorganização da URSS e de parte de
Estados comunistas: a Jugoslávia desmembrou-se, a Checoslováquia partiu-se e a
Alemanha Oriental reunificou-se na nova e grande Alemanha. A Europa Ocidental
renacionalizou-se e nalguns dos seus Estados houve oposição sempre que na
integração europeia se quis passar da economia à política.
E
porque o tempo, mesmo quando aparentemente volta para trás nunca o faz do mesmo
ponto de partida, é interessante e importante saber se a relação e competição
Estados-Mercados vai continuar e como. A resposta não é clara e os fundamentalistas
devem moderar-se.
De
qualquer modo, o paradigma está em transformação e numa transformação em que o
regresso da nação como vértice das lealdades políticas e quadro regulador das
economias é incontornável. Os Estados nacionais têm aqui a sua vantagem.
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