sábado, 27 de agosto de 2016

Mas decididamente não penetram



Mais duas crónicas que encanta ler, de Alberto Gonçalves, um escritor habituado a “parar, olhar e escutar”, antes de transpor para a escrita os seus variados temas de reflexão, num estilo vigoroso, de frontalidade e graça crítica, e reveladores, simultaneamente, do seu equilíbrio moral. E as figuras da sua leitura e da nossa realidade aí vão perpassando, nos seus caprichos, nos seus ridículos, nos seus considerandos disparatados, ou de sugestões de concerto provando a futilidade e o vazio de pensamento – o caso da ministra Constança, do segundo texto, e a sua inverosímil proposta de castigo aos infractores das matas - e a adaptação da mesma pena, na sátira de Alberto Gonçalves, aos diversos incendiários governamentais, causadores da ruína do país. Ou o punhado de frases entusiásticas do primeiro texto, pronunciadas vezes sem conta aquando do acontecimento da nossa glória futebolística deste ano - demonstração da nossa exaltação petulante e parola a merecer as vergastadas do articulista.
Mas estamos na era dos “gosto”, como comentário facilitador da nossa inapetência para uma escrita mais raciocinada, as zurzidelas do comentarista não surtem efeito no retrocesso da nossa banalidade ou na penetração da nossa “crosta”.

Frases da semana
"Agora vejo que somos uma grande nação" (popular entrevistado pelas televisões após a vitória da selecção portuguesa sobre a selecção do País de Gales). Naturalmente. É sabido que os êxitos futebolísticos traduzem e inspiram as genéricas glórias de um país, e não vale a pena lembrar a felicidade que se abateu sobre a Grécia depois da conquista, em 2004, do exacto campeonato de que agora se fala. E do Brasil, campeão do mundo cinco vezes, nem é bom falar: a cada título, a prosperidade subia para níveis quase insuportáveis. Em abono da justiça, convém notar que não se trata de um predicado exclusivo da bola, já que os triunfos nas corridas também fizeram do Quénia o portento económico e social que se conhece.
"Somos milhões a festejar. Portugal está de parabéns. No Domingo gritaremos mais alto: Viva Portugal! #EURO2016 #POR" (António Costa no Twitter). Nunca um primeiro-ministro adoptara com tamanho vigor as chamadas "políticas de proximidade": atento aos assuntos verdadeiramente prioritários, o dr. Costa é indistinguível do cidadão que desabafa nas "redes sociais" ou no café, e que não perde uma transmissão do autocarro em Marcoussis. Só a quantidade e a qualidade dos clichés o distinguem e colocam entre os eleitos, ou, no caso, nem isso.
"Heróis do mar, nobre povo, nação valente etc." (locutores da bola no fim dos relatos). Além de constituir uma peça melódica e lírica superior, A Portuguesa cai sempre bem até em situações menos protocolares. De resto, está cientificamente provado que a sua interpretação emocionada em ocasiões sortidas e inesperadas consolida o nosso lugar muito acima das demais nações da Terra. Há que ter pena delas, coitadas. E esmagá-las nos relvados. Que importa sermos a vergonha da Europa a sério se somos o orgulho da de brincar?
"No Domingo cantaremos de galo" (trocadilho hilariante ouvido por aí). A ideia inicial passava por vencer a Alemanha na final e, assim, ridicularizar a sra. Merkel e arruinar os boches, esses presunçosos reticentes em patrocinar--nos a folia ad infinitum. Como a França já tratou disso (em dois dias, a sra. Merkel entrou em depressão e a miséria em Berlim atingiu dimensões dramáticas), cabe-nos esfrangalhar a França, porque acolheu os nossos compatriotas e isso, ao que parece, é uma afronta intolerável. Como diria o dr. Costa, Viva Portugal, o país que obrigou os nossos compatriotas a emigrar.
"Contas feitas, Portugal pode arrecadar neste Europeu 26 milhões" (jornalista não identificado). Calha bem: 26 milhões é justamente o montante que nos faltava para equilibrar o défice, colocar a dívida em ordem, recapitalizar a CGD, financiar uma dúzia de feiras medievais e repor os direitos adquiridos da função pública. É uma sorte, mas a sorte procura-se.
"Somos 11 milhões a acreditar" (quase 11 milhões de portugueses). Claro que a festa só é bonita se for totalitária e ninguém escapar ao fervor. Mas acho que os números pecam por excesso. Suspeito que, se procurarmos com afinco, encontraremos dois ou três vende-pátrias - além de Pedro Passos Coelho - nada empenhados no triunfo da selecção. No fundo, serão os mesmos dois ou três traidores - mais Pedro Passos Coelho - empenhados nas sanções de Bruxelas. É procurá-los, detê-los e, excepto se se encontrarem no rés-do-chão, defenestrá-los. Sem as doses adequadas de patriotismo transtornado, um indivíduo é capaz de tudo, inclusive "torcer" pela França ou contra o governo.
"Portugal vai ter neste ano um novo recorde de turistas" (ministro da Economia). Porquê? O clima melhorou? A temperatura do mar aqueceu? O peixe ganhou sabor? O património abatido ressuscitou? Cristiano Ronaldo será exibido numa montra em Albufeira? Que se saiba, não. Mas em que outro país do hemisfério norte os estrangeiros podem sintonizar os noticiários e contemplar um presidente especializado em dança, bola, obituários e assuntos de Estado em geral? E um primeiro-ministro que, esteja ou não num estádio francês, ri sem parar, talvez por aconselhar o povo a andar a pé ou a pedais (por causa da saúde) enquanto, indiferente ao próprio bem-estar, se desloca de Falcon? E um povo que, quando não insulta franceses, alemães, galeses, polacos ou croatas, recebe maravilhosamente e, de brinde, festeja nas ruas um futuro radioso?
"Estamos a viver um momento histórico" (transeunte alcoolizado na Praça do Marquês). Depois da longa noite "austeritária" e "neoliberal", já tínhamos saudades. No tempo do eng. Sócrates, vivíamos momentos históricos com regularidade diária. O homem inaugurava uma fábrica de alfinetes autossustentável com o dinheiro dos contribuintes e, pimba, havia momento histórico. O homem assinava um protocolo com um torcionário qualquer e, pumba, havia momento histórico. O homem espirrava e, atchim, havia momento histórico. A coisa chegou a tal ponto que se tornava complicado distinguir o que era realidade e o que era história. Hoje, graças à selecção, ao governo, ao presidente, aos Falcon e a este prodigioso país, pode ser dia de história. A realidade que espere.

Os malucos
Alberto Gonçalves
DN, 21/(/16
Encerrado o "rescaldo" dos incêndios, é tempo de fazer o "rescaldo" das declarações da ministra da Administração Interna sobre os incêndios. Antes de mais, coloco a hipótese de as declarações em causa terem sido realizadas sob coacção psicológica ou ameaça de arma, factores que justificariam a radical imbecilidade das mesmas. Nesse caso, peço antecipadamente desculpa à sra. ministra por tudo o que se segue.
Enquanto o país ardia, uma revista "cor-de-rosa" fotografou a sra. ministra a passear o glamour inato numa festa algarvia ou similar. Embora as proverbiais más línguas se apressassem a condenar a dra. Constança, é inegável que, divertida e calada, esse foi o melhor momento dela nesta história. Depois, a sra. ministra cedeu às pressões populares, regressou a Lisboa e desatou a dizer coisas.
A primeira coisa que disse consistiu em lamentar a falta de solidariedade europeia no combate aos fogos. Trata-se de uma reacção representativa das principais qualidades socialistas (e, é chato acrescentar, portuguesas): perante qualquer contrariedade, procuram instintiva e alucinadamente arranjar um bode expiatório que os isente de obrigações. Para a sra. ministra, o problema não são os incêndios, mas naturalmente as maçadas que os incêndios lhe podem suscitar. Já basta o que basta, leia-se as férias interrompidas.
A segunda coisa que a sra. ministra disse passou por defender a "utilização comunitária" dos terrenos florestais abandonados, o que nas entrelinhas significa roubá-los aos donos em proveito das autarquias, que cuidariam da sua gestão e exploração: "É uma ideia que deve ser bem ponderada, bem reflectida e penso que muito útil." Se ponderarmos bem, é claro que as autarquias, esses paradigmas do rigor, seriam capazes de aproveitar as desprezadas áreas em questão para magníficas rotundas, magníficos pavilhões "multiusos" ou, com jeito, um daqueles magníficos projectos financiados pelos "fundos" e de serventia nula (na minha terra adoptiva, há um spa sem clientes que custou uma fortuna e está um primor). Se reflectirmos bem, é claro que a sugestão ajudaria a um enorme avanço na luta contra os incêndios, perdão, a propriedade privada que tanto consome as matas, perdão, a alma dos socialistas. Muito útil seria a sra. ministra não pensar de todo. E, quanto a punir o abandono de territórios, convinha notar os exemplos dos membros do governo e do PR em pessoa, quase permanentemente em França, no Brasil, na Índia ou onde calha a fim de "apoiar a selecção", "apoiar a delegação" e outros propósitos vitais: não se pode trespassar Portugal para estadistas a sério?
A terceira coisa que a sra. ministra disse define, digamos, um estilo e merece integrar um compêndio restrito dos Grandes Desígnios da História da Humanidade: a dra. Constança quer que os incendiários sejam responsabilizados civilmente além de criminalmente, isto é, que paguem o prejuízo. A sra. ministra está imparável, ou, no jargão americano e sem trocadilhos, "is on fire". De acordo com um psicólogo citado na imprensa, eis o perfil do incendiário-padrão: "Baixo nível educacional e de qualificação profissional, habitante em zona rural, consumidor de álcool, com atraso cognitivo e patologias do foro mental." Bate certo. Não é necessário o anunciado, e assaz democrático, acesso aos dados bancários dos cidadãos para constatar que um alcoólico retardado do interior, sem estudos e provavelmente sem emprego, é criatura de vastos recursos financeiros. Mal se apaguem as chamas nos 200 hectares, uma comissão de avaliação enumera os danos e o tolinho tem 15 dias para efectuar o respectivo pagamento, mediante cheque na conservatória do registo predial ou por transferência no multibanco. O Estado inicia o processo de reconstrução, com investimento público adicional e criação de emprego, e o povo festeja nas ruas. Assunto encerrado.
A ideia é tão boa que deveria ser alargada à própria esfera governamental, na qual indivíduos demasiado incompetentes e nocivos seriam responsabilizados criminal e civilmente pelos estragos cometidos. É evidente que os senhores que nos tutelam não possuem a disponibilidade orçamental do típico maluquinho da aldeia. Em contrapartida, os estragos, no bom senso, na economia e no que calha, são imensamente maiores - e, até a julgar pelas sondagens, o castigo nenhum. Quem é maluco, quem é?
Sexta-feira, 19 de Agosto
O recurso à diplomacia
Os filhos do embaixador do Iraque que, em Ponte de Sor, espancaram um rapaz quase até à morte não possuem apenas imunidade diplomática: aparentemente possuem também imunidade noticiosa. Houve pelo menos um canal televisivo que tratou o caso sem sequer referir a origem dos agressores. Se a ideia era evitar críticas preconceituosas, acho bem. Acolher os representantes oficiais de nações amigas é compreender os respectivos costumes. Alguém condenaria os filhos do embaixador americano por organizarem uma partida de softball com colegas? Ou os filhos do embaixador cabo-verdiano por participarem numa sessão de mornas? Cada um diverte-se como sabe e pode. São as diferenças culturais que fazem do mundo um lugar lindo. E o respeito pelas diferenças torna-o ainda mais bonito.

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