Mais duas crónicas que encanta
ler, de Alberto Gonçalves, um escritor habituado a “parar, olhar e escutar”,
antes de transpor para a escrita os seus variados temas de reflexão, num estilo
vigoroso, de frontalidade e graça crítica, e reveladores, simultaneamente, do seu
equilíbrio moral. E as figuras da sua leitura e da nossa realidade aí vão
perpassando, nos seus caprichos, nos seus ridículos, nos seus considerandos
disparatados, ou de sugestões de concerto provando a futilidade e o vazio de
pensamento – o caso da ministra Constança, do segundo texto, e a sua inverosímil
proposta de castigo aos infractores das matas - e a adaptação da mesma pena, na sátira de
Alberto Gonçalves, aos diversos incendiários governamentais, causadores da
ruína do país. Ou o punhado de frases entusiásticas do primeiro texto,
pronunciadas vezes sem conta aquando do acontecimento da nossa glória futebolística
deste ano - demonstração da nossa exaltação petulante e parola a merecer as
vergastadas do articulista.
Mas estamos na era dos “gosto”,
como comentário facilitador da nossa inapetência para uma escrita mais raciocinada,
as zurzidelas do comentarista não surtem efeito no retrocesso da nossa banalidade
ou na penetração da nossa “crosta”.
Frases
da semana
"Agora
vejo que somos uma grande nação" (popular entrevistado pelas
televisões após a vitória da selecção portuguesa sobre a selecção do País de
Gales). Naturalmente. É sabido que os êxitos futebolísticos traduzem e inspiram
as genéricas glórias de um país, e não vale a pena lembrar a felicidade que se
abateu sobre a Grécia depois da conquista, em 2004, do exacto campeonato de que
agora se fala. E do Brasil, campeão do mundo cinco vezes, nem é bom falar: a
cada título, a prosperidade subia para níveis quase insuportáveis. Em abono da
justiça, convém notar que não se trata de um predicado exclusivo da bola, já
que os triunfos nas corridas também fizeram do Quénia o portento económico e
social que se conhece.
"Somos milhões a festejar. Portugal está de parabéns. No Domingo gritaremos mais alto: Viva Portugal! #EURO2016 #POR" (António Costa no Twitter). Nunca um primeiro-ministro adoptara com tamanho vigor as chamadas "políticas de proximidade": atento aos assuntos verdadeiramente prioritários, o dr. Costa é indistinguível do cidadão que desabafa nas "redes sociais" ou no café, e que não perde uma transmissão do autocarro em Marcoussis. Só a quantidade e a qualidade dos clichés o distinguem e colocam entre os eleitos, ou, no caso, nem isso.
"Heróis do mar, nobre povo, nação valente etc." (locutores da bola no fim dos relatos). Além de constituir uma peça melódica e lírica superior, A Portuguesa cai sempre bem até em situações menos protocolares. De resto, está cientificamente provado que a sua interpretação emocionada em ocasiões sortidas e inesperadas consolida o nosso lugar muito acima das demais nações da Terra. Há que ter pena delas, coitadas. E esmagá-las nos relvados. Que importa sermos a vergonha da Europa a sério se somos o orgulho da de brincar?
"No Domingo cantaremos de galo" (trocadilho hilariante ouvido por aí). A ideia inicial passava por vencer a Alemanha na final e, assim, ridicularizar a sra. Merkel e arruinar os boches, esses presunçosos reticentes em patrocinar--nos a folia ad infinitum. Como a França já tratou disso (em dois dias, a sra. Merkel entrou em depressão e a miséria em Berlim atingiu dimensões dramáticas), cabe-nos esfrangalhar a França, porque acolheu os nossos compatriotas e isso, ao que parece, é uma afronta intolerável. Como diria o dr. Costa, Viva Portugal, o país que obrigou os nossos compatriotas a emigrar.
"Somos milhões a festejar. Portugal está de parabéns. No Domingo gritaremos mais alto: Viva Portugal! #EURO2016 #POR" (António Costa no Twitter). Nunca um primeiro-ministro adoptara com tamanho vigor as chamadas "políticas de proximidade": atento aos assuntos verdadeiramente prioritários, o dr. Costa é indistinguível do cidadão que desabafa nas "redes sociais" ou no café, e que não perde uma transmissão do autocarro em Marcoussis. Só a quantidade e a qualidade dos clichés o distinguem e colocam entre os eleitos, ou, no caso, nem isso.
"Heróis do mar, nobre povo, nação valente etc." (locutores da bola no fim dos relatos). Além de constituir uma peça melódica e lírica superior, A Portuguesa cai sempre bem até em situações menos protocolares. De resto, está cientificamente provado que a sua interpretação emocionada em ocasiões sortidas e inesperadas consolida o nosso lugar muito acima das demais nações da Terra. Há que ter pena delas, coitadas. E esmagá-las nos relvados. Que importa sermos a vergonha da Europa a sério se somos o orgulho da de brincar?
"No Domingo cantaremos de galo" (trocadilho hilariante ouvido por aí). A ideia inicial passava por vencer a Alemanha na final e, assim, ridicularizar a sra. Merkel e arruinar os boches, esses presunçosos reticentes em patrocinar--nos a folia ad infinitum. Como a França já tratou disso (em dois dias, a sra. Merkel entrou em depressão e a miséria em Berlim atingiu dimensões dramáticas), cabe-nos esfrangalhar a França, porque acolheu os nossos compatriotas e isso, ao que parece, é uma afronta intolerável. Como diria o dr. Costa, Viva Portugal, o país que obrigou os nossos compatriotas a emigrar.
"Contas
feitas, Portugal pode arrecadar neste Europeu 26 milhões" (jornalista
não identificado). Calha bem: 26 milhões é justamente o montante que nos
faltava para equilibrar o défice, colocar a dívida em ordem, recapitalizar a
CGD, financiar uma dúzia de feiras medievais e repor os direitos adquiridos da
função pública. É uma sorte, mas a sorte procura-se.
"Somos 11 milhões a acreditar" (quase 11 milhões de portugueses). Claro que a festa só é bonita se for totalitária e ninguém escapar ao fervor. Mas acho que os números pecam por excesso. Suspeito que, se procurarmos com afinco, encontraremos dois ou três vende-pátrias - além de Pedro Passos Coelho - nada empenhados no triunfo da selecção. No fundo, serão os mesmos dois ou três traidores - mais Pedro Passos Coelho - empenhados nas sanções de Bruxelas. É procurá-los, detê-los e, excepto se se encontrarem no rés-do-chão, defenestrá-los. Sem as doses adequadas de patriotismo transtornado, um indivíduo é capaz de tudo, inclusive "torcer" pela França ou contra o governo.
"Somos 11 milhões a acreditar" (quase 11 milhões de portugueses). Claro que a festa só é bonita se for totalitária e ninguém escapar ao fervor. Mas acho que os números pecam por excesso. Suspeito que, se procurarmos com afinco, encontraremos dois ou três vende-pátrias - além de Pedro Passos Coelho - nada empenhados no triunfo da selecção. No fundo, serão os mesmos dois ou três traidores - mais Pedro Passos Coelho - empenhados nas sanções de Bruxelas. É procurá-los, detê-los e, excepto se se encontrarem no rés-do-chão, defenestrá-los. Sem as doses adequadas de patriotismo transtornado, um indivíduo é capaz de tudo, inclusive "torcer" pela França ou contra o governo.
"Portugal
vai ter neste ano um novo recorde de turistas" (ministro da
Economia). Porquê? O clima melhorou? A temperatura do mar aqueceu? O peixe
ganhou sabor? O património abatido ressuscitou? Cristiano Ronaldo será exibido
numa montra em Albufeira? Que se saiba, não. Mas em que outro país do
hemisfério norte os estrangeiros podem sintonizar os noticiários e contemplar
um presidente especializado em dança, bola, obituários e assuntos de Estado em
geral? E um primeiro-ministro que, esteja ou não num estádio francês, ri sem
parar, talvez por aconselhar o povo a andar a pé ou a pedais (por causa da
saúde) enquanto, indiferente ao próprio bem-estar, se desloca de Falcon? E um
povo que, quando não insulta franceses, alemães, galeses, polacos ou croatas,
recebe maravilhosamente e, de brinde, festeja nas ruas um futuro radioso?
"Estamos
a viver um momento histórico" (transeunte alcoolizado na Praça
do Marquês). Depois da longa noite "austeritária" e
"neoliberal", já tínhamos saudades. No tempo do eng. Sócrates,
vivíamos momentos históricos com regularidade diária. O homem inaugurava uma
fábrica de alfinetes autossustentável com o dinheiro dos contribuintes e,
pimba, havia momento histórico. O homem assinava um protocolo com um
torcionário qualquer e, pumba, havia momento histórico. O homem espirrava e,
atchim, havia momento histórico. A coisa chegou a tal ponto que se tornava
complicado distinguir o que era realidade e o que era história. Hoje, graças à
selecção, ao governo, ao presidente, aos Falcon e a este prodigioso país, pode
ser dia de história. A realidade que espere.
Os malucos
Alberto Gonçalves
DN, 21/(/16
Encerrado
o "rescaldo" dos incêndios, é tempo de fazer o "rescaldo"
das declarações da ministra da Administração Interna sobre os
incêndios. Antes de mais, coloco a hipótese de as declarações em causa terem
sido realizadas sob coacção psicológica ou ameaça de arma, factores que
justificariam a radical imbecilidade das mesmas. Nesse caso, peço
antecipadamente desculpa à sra. ministra por tudo o que se segue.
Enquanto
o país ardia, uma revista "cor-de-rosa" fotografou a sra. ministra a
passear o glamour inato numa festa algarvia ou similar. Embora as proverbiais
más línguas se apressassem a condenar a dra. Constança, é inegável que,
divertida e calada, esse foi o melhor momento dela nesta história. Depois, a
sra. ministra cedeu às pressões populares, regressou a Lisboa e desatou a dizer
coisas.
A
primeira coisa que disse consistiu em lamentar a falta de solidariedade
europeia no combate aos fogos. Trata-se de uma reacção representativa das
principais qualidades socialistas (e, é chato acrescentar, portuguesas): perante
qualquer contrariedade, procuram instintiva e alucinadamente arranjar um bode
expiatório que os isente de obrigações. Para a sra. ministra, o problema não
são os incêndios, mas naturalmente as maçadas que os incêndios lhe podem
suscitar. Já basta o que basta, leia-se as férias interrompidas.
A
segunda coisa que a sra. ministra disse passou por defender a "utilização
comunitária" dos terrenos florestais abandonados, o que nas entrelinhas
significa roubá-los aos donos em proveito das autarquias, que cuidariam da sua
gestão e exploração: "É uma ideia que deve ser bem ponderada, bem
reflectida e penso que muito útil." Se ponderarmos bem, é claro que as
autarquias, esses paradigmas do rigor, seriam capazes de aproveitar as
desprezadas áreas em questão para magníficas rotundas, magníficos pavilhões
"multiusos" ou, com jeito, um daqueles magníficos projectos
financiados pelos "fundos" e de serventia nula (na minha terra
adoptiva, há um spa sem clientes que custou uma fortuna e está um primor). Se
reflectirmos bem, é claro que a sugestão ajudaria a um enorme avanço na luta
contra os incêndios, perdão, a propriedade privada que tanto consome as matas,
perdão, a alma dos socialistas. Muito útil seria a sra. ministra não pensar de
todo. E, quanto a punir o abandono de territórios, convinha notar os exemplos
dos membros do governo e do PR em pessoa, quase permanentemente em França, no
Brasil, na Índia ou onde calha a fim de "apoiar a selecção",
"apoiar a delegação" e outros propósitos vitais: não se pode
trespassar Portugal para estadistas a sério?
A
terceira coisa que a sra. ministra disse define, digamos, um estilo e merece
integrar um compêndio restrito dos Grandes Desígnios da História da Humanidade:
a dra. Constança quer que os incendiários sejam responsabilizados civilmente
além de criminalmente, isto é, que paguem o prejuízo. A sra. ministra está
imparável, ou, no jargão americano e sem trocadilhos, "is on fire".
De acordo com um psicólogo citado na imprensa, eis o perfil do
incendiário-padrão: "Baixo nível educacional e de qualificação
profissional, habitante em zona rural, consumidor de álcool, com atraso
cognitivo e patologias do foro mental." Bate certo. Não é necessário o
anunciado, e assaz democrático, acesso aos dados bancários dos cidadãos para
constatar que um alcoólico retardado do interior, sem estudos e provavelmente
sem emprego, é criatura de vastos recursos financeiros. Mal se apaguem as
chamas nos 200 hectares, uma comissão de avaliação enumera os danos e o tolinho
tem 15 dias para efectuar o respectivo pagamento, mediante cheque na
conservatória do registo predial ou por transferência no multibanco. O Estado
inicia o processo de reconstrução, com investimento público adicional e criação
de emprego, e o povo festeja nas ruas. Assunto encerrado.
A
ideia é tão boa que deveria ser alargada à própria esfera governamental, na
qual indivíduos demasiado incompetentes e nocivos seriam responsabilizados
criminal e civilmente pelos estragos cometidos. É evidente que os senhores que
nos tutelam não possuem a disponibilidade orçamental do típico maluquinho da
aldeia. Em contrapartida, os estragos, no bom senso, na economia e no que
calha, são imensamente maiores - e, até a julgar pelas sondagens, o castigo
nenhum. Quem é maluco, quem é?
Sexta-feira,
19 de Agosto
O
recurso à diplomacia
Os
filhos do embaixador do Iraque que, em Ponte de Sor, espancaram um rapaz quase
até à morte não possuem apenas imunidade diplomática: aparentemente possuem
também imunidade noticiosa. Houve pelo menos um canal televisivo que tratou o
caso sem sequer referir a origem dos agressores. Se a ideia era evitar críticas
preconceituosas, acho bem. Acolher os representantes oficiais de nações amigas
é compreender os respectivos costumes. Alguém condenaria os filhos do
embaixador americano por organizarem uma partida de softball com colegas? Ou os
filhos do embaixador cabo-verdiano por participarem numa sessão de mornas? Cada
um diverte-se como sabe e pode. São as diferenças culturais que fazem do mundo
um lugar lindo. E o respeito pelas diferenças torna-o ainda mais bonito.
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