Não podemos evitar um tal
assunto e vários são os que sobre ele escrevem. De João Miguel Tavares
cito dois seguidos, um de 9 outro de 10/8 e ambos pertinentes e directos na
acusação que muita vai para a nossa incúria – de povo e de governação, que nos
devia envergonhar. Não me lembro de casos de incêndio de tal envergadura nos
tempos de Salazar, embora Miguel Torga se rebelasse, como os torgas de
agora (salvo seja), contra o governo daquele, num país com um povo como o nosso,
de gente humilhada, insegura e mesquinha, e todavia preservando sempre uma
incontida ternura saudosista pelo seu país. Não posso deixar de o citar, nas suas
páginas de mestre e raiva que tantos discípulos criou – essencialmente na raiva
-, a ponto de o riscarem do nome da ponte que teve o seu nome, (certamente que
por homenagem a uma figura que salvara o país da bancarrota e da violência
anteriores, por meio, é certo, de mão pesada), para nela esculpirem o nome do movimento que derrubou o seu regime,
como arroto exibicionista e despudoradamente fanfarrão de um mérito alheio.
Da autobiografia “A Criação
do Mundo” (O Quinto Dia), de Torga, transcrevo o retrato desse povo e desse
governo, feito ao sabor de uma viagem a Itália, Suíça e França, de passagem por
uma Espanha dissidente, de gente tesa, bem contrastante com a do pedaço litoral
que nos coube, numa altura de gente também tesa:
…”Num sentimento de náusea íntima, como se
ouvisse eructações familiares, ia meditando no estranho fenómeno: ou ardíamos
na fogueira dum patriotismo descabelado ou nos envergonhávamos da condição. … Nenhum
de nós aceitava a pátria naturalmente, singelamente. Nas vozes que a exaltavam
ou denegriam vibrava o mesmo despeito, a mesma humilhação, o mesmo sentimento
de inferioridade. Passávamos a vida a confrontá-la. Media-se o génio de um
escritor pelo número de traduções, o talento de uma cantadeira pelos aplausos
que recebia lá fora. … O desgraçado lusíada, pelo contrário, sempre que se via
forçado a nomear a terra de nascimento, tinha a sensação de que se denunciava.
Impressionado há muito por essa marca do nosso carácter, cada vez se arraigava
mais no meu espírito a convicção de que era preciso estar em graça para merecer
certas pobrezas. À semelhança do que acontecia na vida, que também nos é
imposta e a que temos de dar sentido, assumindo-a, apenas num idêntico
assenhoreamento voluntário e corajoso do berço o poderíamos justificar. Mas só
agora, de regresso de terras ricas de tudo ou do mais essencial, via a dificuldade
de atingir tal nobreza de alma. Muito poucos o conseguiam. De aí os ditirambos
e os sarcasmos, lados do mesmo desespero. A impressiva evidência da crosta
impedia uma visão compreensiva da medula. Serras anãs, rios de poldras, aldeias
neolíticas… Uma arte desconfiada da sua originalidade, uma técnica em segunda
mão, uma economia de pedintes… Que orgulho resistia a semelhante sudário?
…O ambiente político, que se tornara
asfixiante, estrangulava todas as independências e desiludia as mais firmes
determinações. A ditadura catedrático-castrense, encarnada numa só vontade, que
utilizava e estimulava exclusivamente os defeitos ou as qualidades menores do
português, transformara a nação num espaço de terror, onde o silêncio tomava
corpo no carimbo da censura, e os inconformados arquejavam sob o pesadelo
latente da polícia secreta. Fomentada demagogicamente e coberta por um cínico
manto de impunidade, a corrupção invadira as próprias profissões ajuramentadas
à moral. Ninguém queria ouvir falar de civismo, dever, honradez e liberdade. Uma
cobardia funda, medular, entranhada na alma, reduzira a camada alfabeta do país
a uma massa amorfa, protoplásmica, egoísta, surda a todos os apelos fraternos e
cega a todos os acenos da razão, sorna, abúlica, pronta apenas em cada momento
a emitir pseudópodes tácticos de avidez nutritiva. A orquestração da verdade
oficial, realizada através dos vários meios de comunicação ao serviço do poder,
acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do
julgamento. Era como se a vara do mando, mágica e demoniacamente, tivesse apagado
em cada humanidade a luz racional e deixasse nela somente a escuridão
instintiva. Em vez de naturezas pensantes, seres vegetativos. Taxados de
palermas, intratáveis ou líricos, consoante o grau eufemístico do catalogador,
os raros resistentes, que teimosamente mantinham aceso o facho da insubmissão,
viam-se e desejavam-se para sobreviver. Antes que a força instituída os
aniquilasse, tornavam-lhes o ambiente irrespirável os próprios conviventes….”
Mas são também de Miguel Torga
as palavras sobre uma liberdade por que tanto lutou e se revelou posteriormente
tantas vezes abjecta (in Diário vol. XVI):
«Coimbra, 1 de Março, de 1990 - Liberdade.
Passei a vida a cantá-la, mas sempre com a identidade no pensamento, ciente de
que é ela o supremo bem do homem. Nunca podemos ser plenamente livres, mas
podemos em todas as circunstâncias ser inteiramente idênticos. Só que se o preço da liberdade é pesado, o da
identidade dobra. A primeira pode-nos ser outorgada até por decreto a outra é
sempre da nossa inteira responsabilidade.»
Ou ainda estas outras do mesmo
Diário que igualmente apontam para a decepção
trazida com os desmandos da revolução por que lutara, que bem denunciavam que o
defeito maior estava nas gentes em geral, de que os dirigentes eram apenas uma parte
representativa, feitos da mesma massa de todos e de todo o sempre:
«Coimbra, 3 de Maio de 1990 – Não há dúvida.
Perdemos colectivamente o rumo, e não há bússola política nem gajeiro
partidário que nos valha. Indiferentes à lição do passado, que lá nenhuma
escola nos ensina, se ânimo e sem estímulo para sonhar e merecer o futuro
granjeamos passivamente a courela do tempo até esquecidos que estamos no
presente e somos seus contemporâneos e protagonistas.»
Mas Miguel Torga era um
descrente, que só acreditava e si – e tinha mil razões para isso, génio que foi
na prosa e mais ainda no verso, sem tanta racionalidade - tantas vezes falível
- e com uma harmonia simultânea de artifício e simplicidade, sempre angustiado,
sempre Orfeu Rebelde, em busca de uma fugidia Eurídice.
Enquanto houver, contudo, espíritos rebeldes
às infâmias, que lutem por um Portugal decente para os seus filhos, e que o façam com
valentia e argúcia – caso de João Miguel Tavares – este país irá
continuar, mau grado as muitas fogueiras em que arde. Os seus dois escritos - Queremos ver Portugal a arder e Dantesco
são bem explícitos de uma expressiva qualidade, tanto de pesquisa, como de análise,
como de boa formação moral e amor pátrio. Oxalá deixem rastro.
E como “aviso à navegação”, o
dístico de “Escrito na Pedra” da mesma página de Dantesco: «Não se é
menos culpado não fazendo o que se deve fazer do que fazendo o que não se deve
fazer” de Marco Aurélio (121/180), Imperador da Roma Antiga. Segue-se
que a inércia é a grande responsável pelo brasido: dos povos e governos que não
limpam as matas, dos governos que protelam a prevenção dos fogos, não sei se
por interesses ocultos. Tal não se faz no Carnaval brasileiro, em que se começa
a trabalhar no próximo logo no dia seguinte ao anterior, e por isso resulta sempre.
Não podemos adiar a prevenção dos incêndios. João Miguel Tavares explica:
Queremos ver Portugal a arder
Público, 09/08/2016
Há
cerca de um ano foi divulgado um estudo da União Europeia sobre incêndios nos
países da bacia do Mediterrâneo que continha números impressionantes. Foram
analisados dados de 2000 a 2013 de Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia. Nesse
período 53,4% de todos os incêndios haviam ocorrido em Portugal. Ou seja, o
nosso país tinha maior número de incêndios do que Espanha, França, Itália e
Grécia juntas. Em termos de área ardida, o número baixava para 37,7%, mas
como a Portugal corresponde apenas 14,7% do território em causa, o resultado é
este: temos 3,5 vezes mais incêndios do que a média dos países
mediterrânicos e 2,5 vezes mais área ardida. São números que deveriam
envergonhar qualquer português. E, no entanto, não me recordo de esse
estudo ter tido alguma repercussão significativa em termos políticos ou
mediáticos, e eu próprio só dei por ele porque ontem já não conseguia suportar
mais labaredas à hora do almoço e pus-me a pesquisar.
A
falta de seriedade com que nós enfrentamos os problemas da floresta portuguesa
só tem paralelo na histeria que toma contas das televisões assim que, para citar
Quim Barreiros, entra Agosto. Há mais de dez anos que se fala em auto-regulação
das televisões, por uma razão muito atendível: estimando-se que um quarto dos
incêndios tem origem criminosa e estando comprovado que os pirómanos se
entusiasmam com a sua cobertura, o festim de chamas serve de alimento a futuros
fogos. Ontem, todos os canais abriram os noticiários da hora de
almoço com os incêndios, o que é compreensível tendo em conta a gravidade da
situação, mas depois pus-me a olhar para o relógio, num daqueles exercícios que
a ERC muito aprecia: a RTP terminou a cobertura dos fogos às 13.20; a CMTV às
13.15, mas depois voltou às 13.31 e arrastou um directo até às 13.43; a TVI às
13.31; e a SIC às 13.34. Sendo costume os jornais do almoço duraram uma hora, a
cobertura dos incêndios em Portugal está como os fogos: mais de metade dos
noticiários de Agosto são ocupados por chamas, chamas e mais chamas.
O
meu problema, claro está, não tem a ver com a questão dos incêndios, que é um
excelente tema jornalístico. Está na transformação do repórter num mero
recolector de lágrimas e labaredas. Os 34 minutos de incêndios no Primeiro
Jornal da SIC não são ocupados a questionar responsáveis ou a discutir o que
está a falhar no combate e na prevenção. O grosso da cobertura é floresta a
arder, e quanto mais próximo de casas maior o dramatismo e mais estúpidas as
perguntas do repórter. A próprio pivot vai lançado os directos com comentários
tão argutos quanto “este é mesmo um combate desigual…”, e do outro lado
confirma-se que sim, que é um combate desigual, e depois a senhora Maria
pergunta onde estão os bombeiros, e o senhor Manel pergunta porque é que
ninguém limpa as florestas.
Para
o ano, já se sabe, há mais. Ora, o que eu gostaria de ver era menos a senhora
Maria e o senhor Manel, e mais um bom debate televisivo com todos os ministros
do Ambiente e ministros da Administração Interna (António Costa incluído) que
ocuparam os cargos entre 2000 e 2013, para nos explicarem devagarinho porque é
que falhamos há tantos anos em matéria de incêndios e porque é que tudo indica
que vamos continuar a falhar. Os estudos não enganam. Isto não é azar
geográfico nem altas temperaturas. É mesmo uma profunda incompetência política,
muito mais árdua de combater do que o pior dos fogos.
Dantesco
Público, 10/08/2016
É evidente que isto não é só um problema português, mas
é um problema que em Portugal atinge dimensões dantescas, para utilizar o adjectivo
que mais temos escutado nos últimos dias: vivemos num país com uma absoluta
incapacidade para agir sem ser em face da tragédia. Seja no problema dos
incêndios, seja na questão das finanças públicas ou da implementação de
reformas no Estado, a nossa capacidade de planeamento de médio e longo prazo é
praticamente nula, e só quando somos colocados perante o abismo é que
arranjamos forças interiores para mudar de rumo. Encostados à parede, somos
excelentes a reagir: improvisamos, inventamos, desenrascamos. Mas antes de lá
chegarmos, mesmo com todos as luzes de perigo a piscar, não queremos nem saber.
E
claro está: assim que a tempestade amaina e nos sentimos um pouco folgados,
voltamos de imediato ao nosso estado natural, hipnotizados pelo curto prazo,
que isto da vida são dois dias e nenhum de nós sabe o amanhã. Não
admira que um filme como O Clube dos Poetas Mortos continue a ser o
favorito de tanta gente. José Sócrates, por exemplo, adorava-o. Carpe diem!
Seize the day! Aproveita o dia! Como se precisássemos de Robin Williams armado
em professor de Literatura para nos dizer isso. Nos Estados Unidos, o filme
será um estímulo para mudar de vida e quebrar o statu quo. Em Portugal é apenas
uma confirmação da maneira como vivemos há séculos – é esse o nosso statu
quo: um dia de cada vez. Com uma diferença significativa: os nossos
olhos não estão poeticamente postos no céu, mas brutamente enfiados na biqueira
dos sapatos.
Porque
é que somos assim? É consequência de uma pobreza antiga, com certeza, e de uma
população com profundíssimos défices de educação, atrasos ancestrais que estão
mais enfiados nos nossos genes do que gostaríamos. Temos expectativas de ser um
país europeu desenvolvido e rico, como os alemães, mas não temos qualquer
tradição de planeamento, e a maior parte de nós ainda vem de famílias que
contavam tostões e faziam filas nas bombas quando a gasolina subia dois
escudos. Não havia o que planear. Para mais, somos dados ao fatalismo, e a
nossa indignação desaparece à velocidade de um fósforo – as coisas são
rapidamente assimiladas como inevitáveis. Foi o destino.
Às
vezes é mesmo o destino, não digo que não, e as coisas são inevitáveis: ver
aquelas labaredas descer a encosta do Funchal num dia com temperaturas de 38
graus e ventos fortíssimos apenas nos reduz à nossa minúscula dimensão perante
a força imparável da natureza. Não há bombeiros, autotanques ou aviões que
parem chamas daquelas num dia daqueles. Mas experimentem recuar 10 ou 11
anos e leiam os jornais da altura, na última grande vaga de fogos em Portugal.
Eles estavam cheios de textos de especialistas acerca de qual era o problema da
floresta portuguesa e sobre aquilo que havia a fazer. Esses textos poderiam ser
todos impressos outra vez. A situação da floresta e do território não se alterou
um milímetro. Onze anos depois estamos no exacto lugar onde estávamos, apenas
com alguns bombeiros mais profissionais e uma protecção civil, segundo consta,
mais competente.
O
presidente da República não é o típico português, mas ouvi-lo dizer que é preciso
“pensar a sério como é que se trata da questão do ordenamento do território”
daria para rir, se não fosse tão triste. A sério? Será desta? Vai ser
agora? Ou daqui a 11 anos cá estarei eu, mais velho, mais gordo e mais careca,
a escrever um texto igualzinho a este?
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