terça-feira, 16 de agosto de 2016

Sobre brasas




Não podemos evitar um tal assunto e vários são os que sobre ele escrevem. De João Miguel Tavares cito dois seguidos, um de 9 outro de 10/8 e ambos pertinentes e directos na acusação que muita vai para a nossa incúria – de povo e de governação, que nos devia envergonhar. Não me lembro de casos de incêndio de tal envergadura nos tempos de Salazar, embora Miguel Torga se rebelasse, como os torgas de agora (salvo seja), contra o governo daquele, num país com um povo como o nosso, de gente humilhada, insegura e mesquinha, e todavia preservando sempre uma incontida ternura saudosista pelo seu país. Não posso deixar de o citar, nas suas páginas de mestre e raiva que tantos discípulos criou – essencialmente na raiva -, a ponto de o riscarem do nome da ponte que teve o seu nome, (certamente que por homenagem a uma figura que salvara o país da bancarrota e da violência anteriores, por meio, é certo, de mão pesada), para nela esculpirem o nome do movimento que derrubou o seu regime, como arroto exibicionista e despudoradamente fanfarrão de um mérito alheio.
Da autobiografia “A Criação do Mundo” (O Quinto Dia), de Torga, transcrevo o retrato desse povo e desse governo, feito ao sabor de uma viagem a Itália, Suíça e França, de passagem por uma Espanha dissidente, de gente tesa, bem contrastante com a do pedaço litoral  que nos coube, numa altura de gente também tesa:

…”Num sentimento de náusea íntima, como se ouvisse eructações familiares, ia meditando no estranho fenómeno: ou ardíamos na fogueira dum patriotismo descabelado ou nos envergonhávamos da condição. … Nenhum de nós aceitava a pátria naturalmente, singelamente. Nas vozes que a exaltavam ou denegriam vibrava o mesmo despeito, a mesma humilhação, o mesmo sentimento de inferioridade. Passávamos a vida a confrontá-la. Media-se o génio de um escritor pelo número de traduções, o talento de uma cantadeira pelos aplausos que recebia lá fora. … O desgraçado lusíada, pelo contrário, sempre que se via forçado a nomear a terra de nascimento, tinha a sensação de que se denunciava. Impressionado há muito por essa marca do nosso carácter, cada vez se arraigava mais no meu espírito a convicção de que era preciso estar em graça para merecer certas pobrezas. À semelhança do que acontecia na vida, que também nos é imposta e a que temos de dar sentido, assumindo-a, apenas num idêntico assenhoreamento voluntário e corajoso do berço o poderíamos justificar. Mas só agora, de regresso de terras ricas de tudo ou do mais essencial, via a dificuldade de atingir tal nobreza de alma. Muito poucos o conseguiam. De aí os ditirambos e os sarcasmos, lados do mesmo desespero. A impressiva evidência da crosta impedia uma visão compreensiva da medula. Serras anãs, rios de poldras, aldeias neolíticas… Uma arte desconfiada da sua originalidade, uma técnica em segunda mão, uma economia de pedintes… Que orgulho resistia a semelhante sudário?
…O ambiente político, que se tornara asfixiante, estrangulava todas as independências e desiludia as mais firmes determinações. A ditadura catedrático-castrense, encarnada numa só vontade, que utilizava e estimulava exclusivamente os defeitos ou as qualidades menores do português, transformara a nação num espaço de terror, onde o silêncio tomava corpo no carimbo da censura, e os inconformados arquejavam sob o pesadelo latente da polícia secreta. Fomentada demagogicamente e coberta por um cínico manto de impunidade, a corrupção invadira as próprias profissões ajuramentadas à moral. Ninguém queria ouvir falar de civismo, dever, honradez e liberdade. Uma cobardia funda, medular, entranhada na alma, reduzira a camada alfabeta do país a uma massa amorfa, protoplásmica, egoísta, surda a todos os apelos fraternos e cega a todos os acenos da razão, sorna, abúlica, pronta apenas em cada momento a emitir pseudópodes tácticos de avidez nutritiva. A orquestração da verdade oficial, realizada através dos vários meios de comunicação ao serviço do poder, acabara por destruir nas mentes o sentido crítico, a apetência da análise e do julgamento. Era como se a vara do mando, mágica e demoniacamente, tivesse apagado em cada humanidade a luz racional e deixasse nela somente a escuridão instintiva. Em vez de naturezas pensantes, seres vegetativos. Taxados de palermas, intratáveis ou líricos, consoante o grau eufemístico do catalogador, os raros resistentes, que teimosamente mantinham aceso o facho da insubmissão, viam-se e desejavam-se para sobreviver. Antes que a força instituída os aniquilasse, tornavam-lhes o ambiente irrespirável os próprios conviventes….”

Mas são também de Miguel Torga as palavras sobre uma liberdade por que tanto lutou e se revelou posteriormente tantas vezes abjecta (in Diário vol. XVI):

«Coimbra, 1 de Março, de 1990 - Liberdade. Passei a vida a cantá-la, mas sempre com a identidade no pensamento, ciente de que é ela o supremo bem do homem. Nunca podemos ser plenamente livres, mas podemos em todas as circunstâncias ser inteiramente idênticos. Só que se o preço da liberdade é pesado, o da identidade dobra. A primeira pode-nos ser outorgada até por decreto a outra é sempre da nossa inteira responsabilidade.»

Ou ainda estas outras do mesmo Diário que igualmente apontam para a decepção trazida com os desmandos da revolução por que lutara, que bem denunciavam que o defeito maior estava nas gentes em geral, de que os dirigentes eram apenas uma parte representativa, feitos da mesma massa de todos e de todo o sempre:

«Coimbra, 3 de Maio de 1990 – Não há dúvida. Perdemos colectivamente o rumo, e não há bússola política nem gajeiro partidário que nos valha. Indiferentes à lição do passado, que lá nenhuma escola nos ensina, se ânimo e sem estímulo para sonhar e merecer o futuro granjeamos passivamente a courela do tempo até esquecidos que estamos no presente e somos seus contemporâneos e protagonistas.»

Mas Miguel Torga era um descrente, que só acreditava e si – e tinha mil razões para isso, génio que foi na prosa e mais ainda no verso, sem tanta racionalidade - tantas vezes falível - e com uma harmonia simultânea de artifício e simplicidade, sempre angustiado, sempre Orfeu Rebelde, em busca de uma fugidia Eurídice.
 Enquanto houver, contudo, espíritos rebeldes às infâmias, que lutem por um Portugal  decente para os seus filhos, e que o façam com valentia e argúcia – caso de João Miguel Tavares – este país irá continuar, mau grado as muitas fogueiras em que arde. Os seus dois escritos -  Queremos ver Portugal a arder e Dantesco são bem explícitos de uma expressiva qualidade, tanto de pesquisa, como de análise, como de boa formação moral e amor pátrio. Oxalá deixem rastro.
E como “aviso à navegação”, o dístico de “Escrito na Pedra” da mesma página de Dantesco: «Não se é menos culpado não fazendo o que se deve fazer do que fazendo o que não se deve fazerde Marco Aurélio (121/180), Imperador da Roma Antiga. Segue-se que a inércia é a grande responsável pelo brasido: dos povos e governos que não limpam as matas, dos governos que protelam a prevenção dos fogos, não sei se por interesses ocultos. Tal não se faz no Carnaval brasileiro, em que se começa a trabalhar no próximo logo no dia seguinte ao anterior, e por isso resulta sempre. Não podemos adiar a prevenção dos incêndios. João Miguel Tavares explica:

Queremos ver Portugal a arder
Público, 09/08/2016
Há cerca de um ano foi divulgado um estudo da União Europeia sobre incêndios nos países da bacia do Mediterrâneo que continha números impressionantes. Foram analisados dados de 2000 a 2013 de Portugal, Espanha, França, Itália e Grécia. Nesse período 53,4% de todos os incêndios haviam ocorrido em Portugal. Ou seja, o nosso país tinha maior número de incêndios do que Espanha, França, Itália e Grécia juntas. Em termos de área ardida, o número baixava para 37,7%, mas como a Portugal corresponde apenas 14,7% do território em causa, o resultado é este: temos 3,5 vezes mais incêndios do que a média dos países mediterrânicos e 2,5 vezes mais área ardida. São números que deveriam envergonhar qualquer português. E, no entanto, não me recordo de esse estudo ter tido alguma repercussão significativa em termos políticos ou mediáticos, e eu próprio só dei por ele porque ontem já não conseguia suportar mais labaredas à hora do almoço e pus-me a pesquisar.  
A falta de seriedade com que nós enfrentamos os problemas da floresta portuguesa só tem paralelo na histeria que toma contas das televisões assim que, para citar Quim Barreiros, entra Agosto. Há mais de dez anos que se fala em auto-regulação das televisões, por uma razão muito atendível: estimando-se que um quarto dos incêndios tem origem criminosa e estando comprovado que os pirómanos se entusiasmam com a sua cobertura, o festim de chamas serve de alimento a futuros fogos. Ontem, todos os canais abriram os noticiários da hora de almoço com os incêndios, o que é compreensível tendo em conta a gravidade da situação, mas depois pus-me a olhar para o relógio, num daqueles exercícios que a ERC muito aprecia: a RTP terminou a cobertura dos fogos às 13.20; a CMTV às 13.15, mas depois voltou às 13.31 e arrastou um directo até às 13.43; a TVI às 13.31; e a SIC às 13.34. Sendo costume os jornais do almoço duraram uma hora, a cobertura dos incêndios em Portugal está como os fogos: mais de metade dos noticiários de Agosto são ocupados por chamas, chamas e mais chamas.
O meu problema, claro está, não tem a ver com a questão dos incêndios, que é um excelente tema jornalístico. Está na transformação do repórter num mero recolector de lágrimas e labaredas. Os 34 minutos de incêndios no Primeiro Jornal da SIC não são ocupados a questionar responsáveis ou a discutir o que está a falhar no combate e na prevenção. O grosso da cobertura é floresta a arder, e quanto mais próximo de casas maior o dramatismo e mais estúpidas as perguntas do repórter. A próprio pivot vai lançado os directos com comentários tão argutos quanto “este é mesmo um combate desigual…”, e do outro lado confirma-se que sim, que é um combate desigual, e depois a senhora Maria pergunta onde estão os bombeiros, e o senhor Manel pergunta porque é que ninguém limpa as florestas.
Para o ano, já se sabe, há mais. Ora, o que eu gostaria de ver era menos a senhora Maria e o senhor Manel, e mais um bom debate televisivo com todos os ministros do Ambiente e ministros da Administração Interna (António Costa incluído) que ocuparam os cargos entre 2000 e 2013, para nos explicarem devagarinho porque é que falhamos há tantos anos em matéria de incêndios e porque é que tudo indica que vamos continuar a falhar. Os estudos não enganam. Isto não é azar geográfico nem altas temperaturas. É mesmo uma profunda incompetência política, muito mais árdua de combater do que o pior dos fogos.

Dantesco
Público, 10/08/2016
É evidente que isto não é só um problema português, mas é um problema que em Portugal atinge dimensões dantescas, para utilizar o adjectivo que mais temos escutado nos últimos dias: vivemos num país com uma absoluta incapacidade para agir sem ser em face da tragédia. Seja no problema dos incêndios, seja na questão das finanças públicas ou da implementação de reformas no Estado, a nossa capacidade de planeamento de médio e longo prazo é praticamente nula, e só quando somos colocados perante o abismo é que arranjamos forças interiores para mudar de rumo. Encostados à parede, somos excelentes a reagir: improvisamos, inventamos, desenrascamos. Mas antes de lá chegarmos, mesmo com todos as luzes de perigo a piscar, não queremos nem saber.
E claro está: assim que a tempestade amaina e nos sentimos um pouco folgados, voltamos de imediato ao nosso estado natural, hipnotizados pelo curto prazo, que isto da vida são dois dias e nenhum de nós sabe o amanhã. Não admira que um filme como O Clube dos Poetas Mortos continue a ser o favorito de tanta gente. José Sócrates, por exemplo, adorava-o. Carpe diem! Seize the day! Aproveita o dia! Como se precisássemos de Robin Williams armado em professor de Literatura para nos dizer isso. Nos Estados Unidos, o filme será um estímulo para mudar de vida e quebrar o statu quo. Em Portugal é apenas uma confirmação da maneira como vivemos há séculos – é esse o nosso statu quo: um dia de cada vez. Com uma diferença significativa: os nossos olhos não estão poeticamente postos no céu, mas brutamente enfiados na biqueira dos sapatos.
Porque é que somos assim? É consequência de uma pobreza antiga, com certeza, e de uma população com profundíssimos défices de educação, atrasos ancestrais que estão mais enfiados nos nossos genes do que gostaríamos. Temos expectativas de ser um país europeu desenvolvido e rico, como os alemães, mas não temos qualquer tradição de planeamento, e a maior parte de nós ainda vem de famílias que contavam tostões e faziam filas nas bombas quando a gasolina subia dois escudos. Não havia o que planear. Para mais, somos dados ao fatalismo, e a nossa indignação desaparece à velocidade de um fósforo – as coisas são rapidamente assimiladas como inevitáveis. Foi o destino.
Às vezes é mesmo o destino, não digo que não, e as coisas são inevitáveis: ver aquelas labaredas descer a encosta do Funchal num dia com temperaturas de 38 graus e ventos fortíssimos apenas nos reduz à nossa minúscula dimensão perante a força imparável da natureza. Não há bombeiros, autotanques ou aviões que parem chamas daquelas num dia daqueles. Mas experimentem recuar 10 ou 11 anos e leiam os jornais da altura, na última grande vaga de fogos em Portugal. Eles estavam cheios de textos de especialistas acerca de qual era o problema da floresta portuguesa e sobre aquilo que havia a fazer. Esses textos poderiam ser todos impressos outra vez. A situação da floresta e do território não se alterou um milímetro. Onze anos depois estamos no exacto lugar onde estávamos, apenas com alguns bombeiros mais profissionais e uma protecção civil, segundo consta, mais competente.
O presidente da República não é o típico português, mas ouvi-lo dizer que é preciso “pensar a sério como é que se trata da questão do ordenamento do território” daria para rir, se não fosse tão triste. A sério? Será desta? Vai ser agora? Ou daqui a 11 anos cá estarei eu, mais velho, mais gordo e mais careca, a escrever um texto igualzinho a este?

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