quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Companheirismo linguístico-fónico




O título - «Escrita irritada pode ser delicada»  - chamou-me a atenção para o confronto entre os seus dois adjectivos, que geralmente se contrapõem embora haja os indivíduos educados nas boas maneiras que expandem as suas irritações com extrema cordialidade e, diria mesmo, nobreza de atitude, o que muitas vezes envergonha o parceiro e o fazem desistir da sua luta. Suponho que João Cidreira Lopes pretende isso mesmo, ele que foi professor de línguas, talvez muitas, e por isso não se lhe dá que elas sejam escritas ou pronunciadas mais correctamente ou menos – à balda e fé em Deus, como se costuma dizer - já que, como as suas línguas de professor foram ensinadas no estrangeiro, a ninguém teve que prestar contas do seu desempenho linguístico escrito nem fonético. Que lhe importava, pois, ter os alunos no engano, “ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?”, como clamava o pobre Adamastor à perversa Tétis, «nada» devendo ser a resposta, para mais que a sua tese peca por umas tantas incongruências.
 Exemplificando na questão destas,  diz ele que “gostou de ler a crónica de Gastão Cruz”, tendo definido este como “apreciado poeta e crítico literário”, aceitandoque se irrite e ache inútil” o tal AO, e considerando a sua crítica “muito bem fundamentada”, de acordo com o “conhecimento de que dispõe sobre o acordo.”
Por aqui se vê que o seu conhecimento – dele, Cidreiro Lopes – é superior ao de Gastão Cruz que só referiu no AO aspectos negativos”, ignorando “tudo o resto”, que a ele, C.L., não foi alheio, e lhe competirá esclarecer, ou seja, os aspectos positivos do mesmo, embora ele – C. L. - entenda que, na situação de G. C. – ex-colega que ele bem conheceu e preza, no desempenho cultural – talvez pensasse “da mesma forma”, só que com “menos violência”, o que comprova a sua perfeita educação – dele, C. D. - bem contrária à do irritadiço G. C.. Assim, enquanto este é dado às escritas, aquele, C. L., é um simples “anónimo” que “nunca escreveu para publicar”, segundo afirma – o que é falso, como este seu escrito comprova – conquanto não se me dê de pensar que no seu trabalho docente fosse verdadeira a asserção, vendo-se que lidou sobretudo com as oralidades do mesmo tónus linguístico, mas de diferentes proveniências globais.  É certo que a gafe do 4º parágrafo – «sai» em lugar de «saí» – me fez eventualmente pensar que talvez pertencesse às regras do AO, mesmo no contexto pretérito, 1ª pessoa do singular – e não presente, 3ª - mas pensei em país, em saía, em caía e por fora que ainda não estavam – parecia-me - transformados em pais, saia caia, nem sequer em angustioso ai, e sosseguei a minha apreensão, depois de confirmar na Internet – que agora já nem é preciso consultar o livro da gramática para esclarecermos as dúvidas, permanecendo colados à cadeira da nossa alteração óssea progressiva. Tratava-se mesmo de uma simples gafe como as que eu cometo, por ignorância ou distracção, que ambas pertencem  ao “errare humanum est” dos nossos antepassados clássicos que gostavam de escrever coisas.
Seguidamente informa Cidreiro Lopes da sua profissão de professor de português no estrangeiro – não, pois, de línguas como se subscreve, mas apenas de uma só – a sua – pelo que retiro o que disse sobre a multiplicidade linguística impeditiva de concentração numa só, baralhando necessariamente as pistas, ao ter que se adaptar aos registos orais dos seus alunos de outros glossários, o que o predispôs para a maleabilidade relativamente ao seu próprio glossário, quer no que toca à escrita quer na questão da oralidade.
Segue-se que daí resulta a sua crítica amarga contra os que estagnaram no seu pequeno rectângulo lusíada, parando de sonhar - mau grado o poetar de alguns desses - contra os progressistas que souberam “dar a volta” desenvoltamente, sem pesos na consciência - «Há dois tipos de portugueses adultos: os que “deram a volta” e se atualizaram e continuam a sonhar, e os que “não deram a volta” e estacionaram, satisfeitos com as posições já alcançadas. – embora eu ache isso uma asserção incorrecta, já que os que «estacionaram» na questão do «sonho», podem talvez ter estudado outras línguas mesmo as de origem das novilatinas e isso lhes faz que possam «continuar a sonhar» com mais dignidade linguística, na minha modesta opinião, defendendo a sua língua mãe contra a “acefalia” (designação mais bem educada incontestavelmente que o designativo  “estupidez” de G. C. ) dos fazedores do actual AO.
De resto se o português provém de um latim muito bárbaro, segundo opinião de João Cidreiro Lopes, o certo é que o mesmo sucedeu com as outras línguas novilatinas, e nem por isso os respectivos povos as abastardaram, como connosco sucede. Na verdade, por alturas do Renascimento, a leitura dos clássicos greco-latinos, preservados na Idade Média conventual, trouxe a aristocratização e enriquecimento da língua, acompanhando a evolução e enriquecimento das mais, com influências constantes ainda, dessas e outras sobre a nossa – estrangeirismos se lhes chama (além dos latinismos e helenismos mais comuns) - mas também temos a marmelada e o barroco entre muitos outros termos que aquelas de nós colheram, para nossa glória.
E nada disso tem a ver com o AO, estapafúrdio e perfeitamente arbitrário - estúpido diria eu, acompanhando a indignação de Gastão Cruz, já sem pruridos da cortesia que Cidreiro Lopes exige no seu texto incongruente, de grande pobreza espiritual, ao pretender adaptar a oralidade à grafia, sem ter em conta a pronúncia, que a escrita protege tendo em conta também a etimologia, através de regras próprias indispensáveis à sua manutenção
Cidreiro Lopes foi professor que usou a oralidade mais do que a escrita, que, segundo informa, está cheia de regras absurdas.
Nossa! Desisto de continuar a exploração do seu texto, todo ele ditado pela subserviência oportunista, apesar da homenagem introdutória ao ríspido colega de universidade, que honestamente zela pela dignificação da sua língua.
Um fedor de texto, que não apetece reler. Pouah! Na interjeição inglesa para desprezo. Oba! , na brasileira, mais doce. Irra! na minha, contrariada, e até preferindo estoutra mais grosseira, de Chiça! do fundo da alma, soltando-se.

Escrita irritada pode ser delicada
João Cidreiro Lopes Professor de línguas aposentado
Público
14/08/2016

 Compreendi que o Português só poderá ter valor como língua importante quando deixar de ter variações locais em diferentes continentes.

Tópicos  Angola  Brasil Moçambique Língua Portuguesa   Acordo Ortográfico  Gastão Cruz Qustões sociais

Gostei muito de ler a crónica “O injustificável acordo orto(?)gráfico” do apreciado poeta e crítico literário Gastão Cruz, repudiando a Língua Portuguesa atual e argumentando que o Acordo Ortográfico em vigor é estúpido e inútil, o que muito o irrita.
Aceito que se irrite e o ache inútil, mas não que chame “estúpido” ao trabalho coletivo de uma série de homens de letras de uma craveira possivelmente tão elevada como a sua. Apreciei a argumentação dura do poeta (talvez num dia um tanto azedo?), mas a sua crítica está muito bem fundamentada, tendo em conta o conhecimento de que dispõe sobre o Acordo.
O texto é pouco objetivo, pois só refere aspetos negativos e ignora tudo o resto. Se estivesse na sua situação, eu provavelmente pensaria da mesma forma, mas com menos violência. Por vezes uma pessoa, mesmo sendo poeta, na falta de argumentos recorre à ofensa física ou oral.
Pela minha parte sou um simples professor. Não tenho obras publicadas nem contatos com figuras públicas. Sou anónimo. Mais duas diferenças: apesar de ter o mesmo curso de Gastão Cruz, sai da faculdade quando ele entrou, e estou bastante mais a par do Acordo, pois nele reconheço aspetos negativos mas também positivos. E a diferença fundamental: a ortografia de antes ou depois do A.O. não me afeta, pois a minha vida não depende da imobilidade indispensável a quem escreve por profissão.
Há dois tipos de portugueses adultos: os que “deram a volta” e se atualizaram e continuam a sonhar, e os que “não deram a volta” e estacionaram, satisfeitos com as posições já alcançadas.
Como professor lecionei durante décadas Português no estrangeiro, principalmente na Alemanha, e Língua Portuguesa para Estrangeiros na Faculdade de Letras. Ao longo da vida dediquei-me somente a estudar a nossa língua e devo confessar que só comecei a compreendê-la em profundidade depois de vários anos a ensinar universitários estrangeiros e a tentar responder às suas perguntas e dúvidas. Até então eu era um docente interessado e culto, que pensava dominar perfeitamente a língua portuguesa, depois de a ter usado, estudado e ensinado ao longo de muitos anos.
Ao tentar esclarecer as dúvidas e questões que os meus alunos europeus, asiáticos, americanos, africanos e oceânicos me punham, tentando compreendê-las por comparação com a descrição que me iam fazendo da gramática das suas línguas maternas, descobri que a língua que eu falo não é tão perfeita como eu julgava.
A nível mundial o Português que falamos é uma língua com origem num latim muito bárbaro, com forte influência do grego e do árabe, para além de outras, como o francês e modernamente o inglês. Comparada com outras é uma língua um tanto confusa e bastante ilógica, com vagas e antiquadas regras, que pouca gente conhece e respeita. E o que é errado, depois de repetido milhões de vezes, torna-se correto.
Compreendi que o Português só poderá ter valor como língua importante quando deixar de ter variações locais em diferentes continentes. E descobri também que quase todos os alunos estrangeiros queriam afinal aprender Português para futuras ligações, integrações e negócios com o Brasil, Angola, Moçambique, Guiné, Macau, Timor etc e também para poderem depois ensinar Português nos seus próprios países.
A relativamente poucos interessa aprender o “Português só de Portugal”: só para turismo de férias, namoro ocasional, segunda residência de estrangeiros reformados ou falso casamento negociado para permitir a entrada na Europa.
Esta descoberta surpreendeu-me e causou-me problemas, ao reconhecer que afinal não dominava a língua mundial que os alunos pediam que lhes ensinasse.
Felizmente as línguas são na sua essência faladas. Quando nascemos não sabemos falar. Aprendemos a comunicar com as pessoas que nos estão próximas por ruídos, gestos e finalmente pela fala, que nos acompanha e vai evoluindo ao longo da vida. Só anos depois compreendemos que não é possível falar com pessoas que estão longe de nós. Informam-nos ser possível comunicar por nuvens de fumo, reflexos de espelhos, bandeirolas em mastros. Obrigam-nos depois a ir para a escola e a reproduzir por escrito os sons com que comunicamos com as outras pessoas. Mas criam regras nem sempre claras, para nos cercear a liberdade.
A ortografia é sempre uma tentativa de acompanhar a fala, e esta, como a língua é viva, vai-se alterando lentamente e evoluindo ao longo do tempo. Vão aparecendo novas invenções a que é preciso dar nome e desaparecendo outras tornadas inúteis, às quais ninguém mais se refere.
A maioria dos neologismos são cópias e imitações de palavras inglesas que nada têm a ver com as nossas raízes linguísticas. Ainda mais infelizmente, as mensagens que os jovens teclam nos seus telemóveis e afins já não são escritas em Português, mas numa mistura de abreviaturas, símbolos e anglicismos que horrorizam os cada vez menos puristas da língua.
Mas nem tudo é mau. A comunicação escrita é cada vez menor, substituída pela comunicação oral, que no fundo é a forma original de as pessoas comunicarem entre si. Felizmente foram sendo inventadas formas de comunicar à distância usando a fala e não necessitando de recorrer à complicada escrita. Quando a comunicação oral progride, a comunicação escrita regride.
Eu próprio acreditava escrever sem erros até descobrir que ainda faço vários. E ao ouvir gravações de como falo, ainda mais horrorizado fiquei.
O mesmo acontece com as pessoas que conheço, incluindo professores de Português. Não consigo recordar um português culto em cuja escrita não tenha encontrado pequenos erros de língua.
Na Faculdade apareciam-me por vezes estudantes portugueses, finalistas de Letras, a pedir autorização para assistir às aulas de Português dos estrangeiros, “para os ajudar a integrar-se, a conviver e a conhecer a cidade”, principalmente suecas e italianas.
Quando havia ditado, os portugueses, “para ajudar a integração” sorriam e pediam para fazer também o ditado. Curioso é verificar que os alunos estrangeiros fazem menos erros do que os finalistas portugueses, que tinham anunciado que “aquilo ia ser canja”. Uma chinesa perguntou até a um dos visitantes: Se você aprendeu bem a sua língua, porque faz tantos erros?
Na sua essência as divergências que hoje existem entre quem se declara a favor ou contra o Acordo são naturais mas não são fáceis de eliminar. Na anterior Reforma Ortográfica, em 2011, foi tudo muitíssimo mais complicado.
O A.O. veio facilitar a comunicação em língua portuguesa a nível internacional e mundial, mas a nível local veio prejudicar muitos cidadãos cuja subsistência está relacionada com a manutenção da imobilidade da ortografia em que nasceram, principalmente escritores, editores e críticos literários. Tal como os teclados eletrónicos estragaram a vida aos tipógrafos que enfileiravam à mão as letras das frases, também o “Português mundial” vem pôr de lado o “Português só nacional” que até agora dava emprego e estabilidade financeira a profissionais desejosos de sossego e paz. Mas a nível particular cada adulto é livre de escrever como lhe tentaram ensinar na escola primária.
No fundo cada pessoa tem hoje de optar entre duas opções:
– Ser uma pessoa que prefere viver num país pequeno e isolado, se sente satisfeita com o nível de estabilidade e reconhecimento que o seu trabalho lhes proporciona, e que comunica com o exterior numa antiga língua local com 10 milhões de falantes.
– Ser uma pessoa que nasceu num país pequeno e isolado, mas que se sente também cidadão do mundo e ousa enfrentar novos desafios, aceitando várias mudanças na sua vida e na sua relação com uma língua viva com mais de 200 milhões de falantes.
Creio integrar-me no segundo grupo. Apesar de ser hoje um septuagenário, mantenho o meu espírito em bom estado, acompanho o meu tempo e continuo com vontade de ajudar o meu país a progredir.

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