De
Júlio Dantas, lera, na adolescência, da estante do meu pai, “A Ceia dos
Cardeais”, de que gostara, no contraste entre as histórias amorosas da sua juventude, narradas
pelos três protagonistas - um cardeal espanhol, espadachim, um cardeal francês,
herói bem falante, e o Cardeal Gonzaga, português, sentimental à boa maneira de
um segundo romantismo trágico e lacrimejante, qualquer das narrativas espelho
do seu povo, segundo a tradição literária – galanteria francesa, donaire e
enfatuamento espanhóis, autenticidade virtuosa na tradição portuguesa. A Internet
devolveu-me a história, e revi a questão feita pelos outros dois protagonistas
ao cardeal português – «Vossa Eminência o que diz? – O que pensa, Cardeal? –
Penso em como é diferente o amor em Portugal» - resposta que parafraseávamos,
na juventude, galhofeiramente: “Em ti, meu grande animal», embora sem
conhecermos ainda o “Manifesto” de Almada Negreiros, mas refractários a
uma literatura de snobismo e igualmente de pieguice pacóvia, no que nos tocava
a nós, sempre distintos na humildade da condição e na virtude do sentimento. E
todavia, lemos na crónica de António Valdemar que a peça – em um acto - lhe
valeu fama e traduções. Nada mais li de Júlio Dantas, nem desejo ler
por, entretanto, ter enveredado por leituras de outros escritores, quer por
obrigação, quer por prazer ocasional, bem mais musculadas estas, na
racionalidade e dimensão humanística, arredadas do dolicodoce bonitinho e
enjoativo de uma literatura fútil e artificiosa.
Mas,
se o 1º Modernismo, movimento a que pertencia Almada Negreiros, fora – mais tarde
- uma surpresa e um deslumbramento na sua arte provocatória de inversão das
estruturas temáticas e artísticas, numa paridade ideológica com o
desenvolvimento tecnológico e científico, trazendo realidades progressivamente
desestabilizadoras que exerciam sobre os poetas do “Orpheu” - e mais tarde sobre nós - um fascínio, encontrado
já na literatura estrangeira, os manifestos virulentos – como o “Anti-Dantas”
de Almada – nunca os li senão como uma curiosidade insensata, de total
desvergonha e má criação, no ataque directo insolente e desbragado, despejando
ódio, um ódio gratuito, tal como se vê hoje em tantas manifestações
televisivas, de adeptos do mal pelo mal. Longe, pois, dos textos citados por António
Valdemar, como “Bom Senso e Bom Gosto”, contra um Castilho, que a cegueira e a
qualidade linguística tornavam alvo da consideração geral, embora o ataque de
Antero, sério e educado, lhe mostrasse a necessidade de modernização dos
conceitos literários a que o velho mestre se opunha, no seu conservadorismo
protector de uma literatura mais que ultrapassada, quando outros caminhos se ofereciam
a essa Geração de Setenta que tanto daria que falar.
O
desbragamento da linguagem é antigo, já a primitiva comédia clássica o
utilizara, para riso dos espectadores, Rabelais, Gil Vicente, igualmente o
usaram, mas por intermédio das suas personagens burlescas, quantas vezes, é
certo, representativas de figuras reais, para riso franco da plateia ou do
leitor, que facilmente as descodificavam. Assim são as personagens do Eça, no
riso irónico da crítica indirecta, que não encontramos nos escritos
neo-realistas, cujo azedume intervencionista comparamos ao que se processa hoje
nos media, em que nem o próprio Ricardo Araújo Pereira escapa a uma confrontação
grosseira e malcriada, que não abona a favor do seu espírito.
Este
artigo de António Valdemar, mostra, todavia, o alcance de um panfleto tão
acutilante, além de revelar o retrato de um homem – Júlio Dantas – bem sórdido
no seu oportunismo vivencial, que eu inteiramente desconhecia. Reli o Manifesto
de Almada, um dos iniciadores do “vale tudo”, na literatura como na sociedade,
esta cada vez mais livre e descontrolada, que vai assassinando todos os valores, sem comedimento, assassinando a própria Terra.
Manifesto Anti-Dantas,
atualidade e permanência
António Valdemar, Jornalista e investigador
Público, 12/08/2016
O Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros, insere-se
na linha de intervenção da geração do Orpheu ao introduzir uma nova literatura
e uma nova estética e, ao mesmo tempo, ao proceder à contestação de
personalidades consagradas nas instituições oficiais. Publicado há
um século — que este ano se completa —, e tendo falecido Júlio Dantas há mais
de 50 anos, será legítimo falar em atualidade e permanência de um texto
visceralmente panfletário, relacionado com figuras e acontecimentos
pontuais, eventualmente sujeito ao esquecimento e à erosão do tempo?
É
evidente que Júlio Dantas permanece ligado a uma época e às suas
circunstâncias, mas, além disso, constituía um modelo social, cultural e
político que não se extinguiu. Já existia antes e continuou a
existir depois. Eça de Queiroz já ridicularizara e exautorara o conselheiro
Acácio, o Pacheco, o Dr. Margaride, o Gouvarinho, o Steinbroken, o conde de
Abranhos, o boticário Carlos e outros símbolos da presunção oficiosa e da
mentalidade conservadora. Que, aliás, também, se deparam na Bíblia, no teatro
de Plauto, nos autos e nas farsas de Gil Vicente...
Almada
Negreiros tinha 23 anos. Encontrava-se na força da vida. Havia sido
"diretor artístico" e colaborador do Papagaio Real, semanário
monárquico de sátira política. Pertencia, com Fernando Pessoa, Mário de
Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor, entre outros, ao grupo do Orpheu, que,
ao surgir em março de 1915, desencadeou os maiores protestos. Numa
crónica na Ilustração Portuguesa, Júlio Dantas fora um dos muitos que execraram
o Orpheu, juntando-se aos psiquiatras que consideraram paranoicos os
colaboradores da revista.
O
Manifesto Anti-Dantas não é, apenas, um ajuste de contas e a escolha de um bode
expiatório. Traduz o conflito de gerações e integra-se numa corrente literária
e artística com orientação estética de rutura. Em 1913, Fernando
Pessoa já se pronunciara contra a poesia de Afonso Lopes Vieira a propósito da
publicação de Bartolomeu Marinheiro e, no mesmo texto, não deixou também de se
distanciar de Júlio Dantas: "os homens do Portugal de amanhã",
"educados na estupidez", "terão por Shakespeare o Sr. Júlio
Dantas e por Shelley o Sr. Lopes Vieira".
O
pretexto imediato do Manifesto Anti-Dantas resultou da estreia, a 21 de outubro
de 1915, no Teatro Ginásio da peça de Júlio Dantas Soror Mariana. Almada
era um dos que patearam a peça e, no dia 25, no jornal A Lucta, dirigido por
Brito Camacho, reduziu a Soror Mariana a uma "baboseira teatral" e
apontou Dantas como um "homem cuja mediocridade inchada de egotismo o
levou a comparecer em cena, ao chamamento de meia dúzia de claqueurs,
ignorantes e ineptos".
Mas
a ofensiva implacável viria no Manifesto. Dantas estava no auge da celebridade.
Com a Ceia dos Cardeais projetou-se através da Europa e das
Américas e estendeu-se até ao Japão. A Ceia dos Cardeais, logo após a primeira
representação, pelos maiores atores, constituiu um sucesso de livraria. Houve
cinquenta edições, mais de 200 mil exemplares; traduções nas mais diversas
línguas e duzentas e cinquenta imitações e paródias, em Portugal e no Brasil. A
última de José Vilhena não sei se já foi publicada.
Além
de Júlio Dantas, Almada disparou ataques a muitas outras figuras públicas da
literatura, do teatro, da pintura, da escultura e do jornalismo. Contudo, a
investida a Júlio Dantas tinha, igualmente, uma forte componente política.
Atingia o Júlio Dantas que passara, sem hesitações, de um regime para outro, da
Monarquia para a República. A transição política também se refletia na
trajetória literária — a ligação ao poder, aos sucessivos governos, às
respetivas cúpulas partidárias.
Costumo
resumir o êxito de Júlio Dantas através das seguintes peças: A Ceia dos
Cardeais, para deslumbrar a família real e ter acesso ao paço; Um Serão nas
Laranjeiras, ao pressentir a decomposição e queda da Monarquia; Santa
Inquisição, para a I República e agradar a Afonso Costa; Carlota Joaquina, para
desmistificar o Integralismo Lusitano; Frei António das Chagas, para o Estado
Novo, empenhado na reconciliação do Estado com a Igreja. Em 1945, ao irromper o
MUD (e a situação começou a estremecer), Dantas fez uma versão da Antígona. A
oposição revia no tirano e detestável Creonte o tirano e detestável Salazar.
Não
se registaram sinais de mudança. Júlio Dantas assinou o protesto fabricado na
União Nacional e no Diário de Notícias, contra o "obviamente,
demito-o" (Salazar), declarado, sem papas na língua, por Delgado, em 1958,
na apresentação da candidatura à Presidência da República.
O
ponto final das versatilidades políticas e literárias de Dantas verificou-se em
1960. Tinha 86 anos. Já fora substituído na Presidência da Academia por Reynaldo
dos Santos. Mas não deixava de intervir. E aceitou subscrever, ao lado dos
representantes da oposição democrática, a candidatura de Aquilino Ribeiro para
Prémio Nobel da Literatura. Tinha plena consciência de que se tratava de um
expediente para conseguir repercussão internacional, de modo a arquivar o
processo-crime devido aos ataques cerrados ao regime e ao próprio Salazar no
romance Quando os Lobos Uivam. E no âmbito do centenário do Infante D.
Henrique, que se comemorava na altura, Salazar avançou com uma amnistia que
abrangeu Aquilino e o libertou das picardias do Tribunal Plenário (da acusação
inquisitorial do Ministério Público por Lopes de Melo que, após o 25 de abril,
ascendeu ao Supremo Tribunal de Justiça), das garras da PIDE, de um julgamento
vexatório com pena suspensa ou efetiva.
Por
tudo isto, Júlio Dantas foi tudo ou quase tudo o que quis e que é possível um
intelectual exercer em Portugal: diretor e professor do
Conservatório, comissário do Governo no Teatro Nacional, inspetor superior das
Bibliotecas e Arquivos, deputado, dirigente partidário, ministro de várias
pastas. Desempenhou, episodicamente, funções de médico da Guarda Municipal em
Lisboa, antecessora da Guarda Nacional Republicana. Desejou ser médico da Casa
Real, mas não havia lugar vago. Estavam preenchidos por António Lencastre e
Thomaz de Mello Breyner.
Ser
médico terá facilitado a adesão à República, durante as horas de expectativa
revolucionária. Em vez de ir aos banhos de São Paulo, onde estava reunido o
futuro governo provisório, com grandes personalidades da Maçonaria, deslocou-se
a cavalo à Rotunda, oferecendo os seus serviços clínicos aos militares e aos
civis armados da Carbonária. Está referido e documentado por Machado Santos no
relatório acerca das fases do processo que conduziu à proclamação da República
em 5 de outubro de 1910.
A
Júlio Dantas faltou-lhe, apenas, ser Presidente da República, Prémio Nobel e
cardeal. Soube adaptar-se às conjunturas políticas. Reunia as
condições essenciais. Era filho de um general e sobrinho de outro general.
Vestia com gosto. Sabia o que era um smoking e uma casaca. Nunca teve caspa na
gola do casaco nem, muito menos, as unhas sujas.
Mas
a maior parte dos dirigentes e responsáveis institucionais também o repescava,
porque sabia cumprir a liturgia do poder, oficiar o cerimonial do Estado e
conduzir o funcionamento de uma academia. Era um ritualista exímio. Um
cenógrafo da língua para todas as situações, as mais solenes e as mais
insólitas.
Almada,
ao fazer a desmontagem dos ecletismos políticos (e faltava assistir a
mais 50 anos de oportunismo), pôs o dedo na ferida: "Dantas
é um habilidoso e um ciganão, (...) um pantomineiro. Para ter chegado aonde
chegou basta não ter escrúpulos, nem morais, nem artísticos, nem humanos. Basta
usar o tal sorrisozinho, basta ser muito delicado (...) e ter olhos meigos
(...) Basta ser Judas. Basta ser Dantas."
Seja
como for, o Manifesto Anti-Dantas, de Almada Negreiros, alertou uma ou duas
gerações, a do Orpheu e a da Presença, e mesmo depois disso, para outros Dantas.
Antes dele, Castilho foi um Dantas do século XIX. A carta de Antero de
Quental Bom Senso e Bom Gosto, publicada, em 1864, contra António Feliciano de
Castilho e seus discípulos, não se restringiu à luta de gerações literárias mas
à denúncia da promiscuidade do elogio mútuo.
E
quantos outros Dantas temos conhecido tão solícitos e ávidos de protagonismo,
mas sem a inteligência e a cultura de Dantas? Infelizmente, o que nos tem
faltado são manifestos de Almada contra os Dantas, e cartas de Antero contra os
Castilhos. Justifica-se, portanto, a atualidade e permanência do Manifesto
Anti-Dantas. O panorama que se nos depara é confrangedor: poetas e
escritores em santa aliança e sagrado conluio, numa descarada troca de
panegíricos. Mas é mais angustiante e deplorável em relação à política, aos
partidos e à banca. As palavras incendiárias e as sínteses fulminantes de
Almada Negreiros no Manifesto Anti-Dantas começam a ser insuficientes para
desmascarar a progressiva confusão de valores e princípios com interesses e
negócios.
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