sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Parabéns a você



Parabéns a você
Eu também achei um espectáculo extraordinário de criatividade e beleza, o da abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, na representação coreográfica da história brasileira, de efeitos miméticos deslumbrantes, e na simpatia do seu povo, que as canções de velhos conhecidos foram acompanhando, e até na contenção de um presidente autoproposto, ao ser vaiado pelo seu povo, mas ultrapassando com dignidade esse problema. Realmente, como informa Miguel Esteves Cardoso não se tratava da rígida impecabilidade da abertura dos Jogos em Pequim há oito anos ou do carácter vistoso, mais barroco, em Londres há quatro, mas naquilo que eu vi, foi de autêntica maravilha e, sim, calor humano. Por isso, transcrevo os dois textos de homenagem – de M. E. Cardoso e de Alexandra Lucas Coelho, que encontro neste Público de domingo, 7/8, associando-me à sua efusão, para com um povo criativo e amável. Colorido sempre.

Os jogos em festa
A festa de abertura dos jogos olímpicos não foi fantástica: foi humana e real e deslumbrante. Não foi uma prova de força ou de coordenação. Foi uma festa. As pessoas divertiam-se, contavam histórias, cantavam, dançavam mas, sobretudo, estiveram juntas, gloriosamente juntas. Acontecia tudo ao mesmo tempo — ou parecia acontecer — mostrando uma organização formidável, capaz de contar com a liberdade das pessoas. Em Pequim viu-se um exercício de precisão. Em Londres viu-se uma série de peças de teatro. No Rio viram-se pessoas em festa, a fazer a festa para todo o mundo lá estar também.
Batemos os pés, cantámos também. Tínhamos sido incluídos. Não estávamos só aqui, a milhares de quilómetros. Também estávamos lá. Obrigados pelo convite. Obrigados pela abertura. Obrigados pela extraordinária partilha de talento, alegria e irmandade. Que pena tivemos daqueles que repetiam que a festa tinha sido feita por um décimo do que tinha sido gasto na de Londres. Foi estranho que não tivesse sido dez vezes menos divertida, não foi? Na festa de Danny Boyle a única parte comovente foi a sequência musical no fim, porque os britânicos têm muito jeito para a música popular. Os brasileiros, pelos vistos, também têm. Tem pelo menos uma boa canção do Ary Barroso, não é? E aproveitaram-na bem, não aproveitaram?
Críticos preconceituosos com opiniões pré-fabricadas: vão dar banho à foca, está bem? Ou fiquem mais um bocadinho. Pode ser que mudem de ideias. Muitos já mudaram...

Meu coração brasileiro
Alexandra Lucas Coelho
1. Salve Elza Soares, que aos 79 anos, no centro do Maracanã, cercada de cinquenta mil pessoas e três mil milhões em directo, fez do Canto de Ossanha o mais poderoso dos funks. Ela, que em jovem swingante já se tinha ligado para sempre à afro-oração de Vinicius de Moraes; a mulher de Manuel Garrincha que tanto drible aprontou nesse estádio, e não só; a musa do vozeirão que ainda no ano passado lançou um álbum de vanguarda chamado Mulher do Fim do Mundo. Salve, nesse Agosto de 2016, depois de tudo o que lhe aconteceu, e de tudo o que aconteceu nesse último ano no Brasil: Vai! Vai! Vai! Vai! / Amar! / Vai! Vai! Vai! Vai! / Sofrer! / Vai! Vai! Vai! Vai! / Chorar! / Vai! Vai! Vai! Vai! / Dizer!
2. Salve Paulinho da Viola, em cujos pés mora o milagre do passo miudinho, em cujas mãos mora o violão do samba, em cuja voz ficou na noite de sexta-feira o hino do Brasil, pele negra, cabeça branca, a simplicidade de sempre. Gigante pela própria natureza.
3. Salve Wilson das Neves, que aos 80 anos, com uma caixinha de fósforos, foi toda uma bateria, convocando os mestres, Cartola, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, Pixinguinha, Clementina de Jesus, Ismael Silva, Ary Barroso, e aquele menino inacreditável do lado, asas nos pés. O nome dele é Thawan Lucas da Trindade, mora numa favela da Zona Oeste do Rio de Janeiro. Quando a cerimónia acabou, disse aos jornalistas que não ficou nervoso, não, porque tendo oito anos já samba faz quatro, e o sonho dele é sambar na Mangueira. Salve Vila Kennedy, a favela de Thawan, que assistiu a tudo pela tevê, fazendo churrasquinho.
4. Salve Gilberto Gil e Caetano Veloso, cantando a Sandália de Prata, puxando as baterias das escolas de samba para dentro do Maraca, esse batimento que todo junto é de parar o coração, maior força percutiva do planeta. E salve Caetano por ter levado para os bastidores do Maraca aquele cartaz dizendo FORA TEMER.
5. Salve a soberania da beleza que fez sofrer durante quatro horas Michel Temer no seu lugar de usurpador, sentado ao lado do Comité Olímpico, depois de pela primeira vez o nome do presidente do país organizador não ser anunciado na abertura, e de durante os poucos segundos em que Temer se levantou para declarar abertos os jogos ter sido vaiado. Um repórter no local mediu 105 decibéis de vaia.
6. Salve o 14 Bis de Santos Dumond descolando do Maracanã, sobrevoando virtualmente o Corcovado e a Guanabara, irritando estado-unidenses mundo fora, pelo braço de ferro de quem inventou o avião. Só sei que foi bonito, e, enquanto eles corriam para o Twitter a protestar, a gente cantava o Samba do Avião. 
7. Salve Tom Jobim, divino maravilhoso, projectado naqueles cubos de favela que eram o fim da passarela, tal como no fim do Sambódromo tem o morro. E depois de Tom, muitas caras. Salve essa escala em que, ao longo de quatro horas, se viam caras, olhos, bocas, cabelo, pele, e não formigas formando quadros sumptuosos.
8. Salve os cinco mil voluntários que eram parte dessas caras, desses corpos, e, depois de tudo o que aconteceu nesse ano no Brasil, foram o faquir sambando em cima dos cacos.
9. Salve Jorge Ben, Ben Jor, Benjor, que nem precisa de cantar para todo o mundo ficar cantando Pois é / essa é a razão da simpatia / do poder / do algo mais / e da alegria.
10. Salve os quatro milhões de escravos africanos à custa dos quais Portugal fez a colonização do Brasil. Salve as ocas dos índios entretecidas com luz antes de 1500. Salve os mortos que falta honrar, e os vivos, negros, índios, que continuam a ser mortos.
11. Salve as curvas de Niemeyer projectadas no chão do Maraca, e inspirando o palco branco. Salve uma Brasília que botasse os ladrões para fora e deixasse as curvas para o samba.
12. Salve os removidos de Jacarepaguá, da Vila Autódromo ou da primeira favela do Rio de Janeiro. Os feridos, os mortos, os desaparecidos na violência de toda a contagem decrescente para a Olimpíada, as dezenas de milhares de operários que a construíram. Eles pagaram o custo. Salve os milhões que não viram nem a luz dos fogos-de-artifício. Salve quem continuou protestando e foi gaseado pela polícia.
13. Salve A flor e a Náusea de Carlos Drummond de Andrade, ecoando sobre o Maracanã, pelo globo: Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia, rompe o asfalto.
14. Salve os melhores onze mil atletas do mundo trazidos de bicicleta, e os media dizendo que a cerimónia foi menos sumptuosa que Pequim, menos mediática que Londres. Foi completamente brasileira. 
15. Salve Vanderlei Cordeiro de Lima, o maratonista que em Atenas 2004 foi impedido de ganhar a medalha de ouro porque, quase no final, um maluco irlandês, apocalíptico, ex-padre, avançou pela pista e o empurrou para a multidão que assistia na berma, cortando o ritmo do derradeiro sprint. Sexta-feira, Pelé teria sido a escolha mais evidente para acender a pira olímpica, tal como há quatro anos em Londres fora escolhido para a passagem de testemunho, ao lado de Renato Sorriso, o gari (homem do lixo) que se tornou célebre sambando com uma vassoura. Mas, como Pelé ficou doente, em 2016 coube a Vanderlei acender a pira olímpica, que então virou um sol.
16. Salve Jorge Alberto Gomes, 14 anos, carioca da Mangueira, que a seguir recebeu a chama cá fora e acendeu a Pira do Povo em frente à Igreja da Candelária, onde em 1993 oito meninos da idade dele e um pouco mais velhos foram executados pela polícia militar. Aí vai ficar a chama nos próximos 17 dias.
17. Salve Luiz Melodia abrindo tudo com Aquele Abraço do Gil: o Rio de Janeiro continua sendo. Noite de sexta-feira era madrugada onde estou, Jerusalém, e até os locutores da televisão aqui não se continham, tentavam cantar, ou diziam só Uau! E, dando para ver tão bem as caras lá no Maracanã, porque mesmo a esta distância de seis fusos horários não eram formigas, quem assistiu comigo à versão matinal pasmava da música, da gente, do geral. Salve o Brasil, depois de tudo o que lhe aconteceu, ocupando o mundo com beleza.

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