terça-feira, 23 de agosto de 2016

Gato escondido…



Uma estranha notícia, ocupando duas páginas – 30/31 - no Público de 5/8, revela um quadro de Edgar Degas - «Portrait de Femme» - pintado sobre outra figura da mesma mulher, em posição invertida, que foi modelo de Degas entre 1869/70. Quando, em 1937, o quadro foi exposto pela primeira vez em Melbourne, ele já apresentava uma mancha preocupante, sintoma de deterioração de tintas causada por secreto factor. Ao ser apresentado novamente na mesma Galeria Nacional de Vitória, em Melbourne, numa exposição sobre Degas, cerca de oitenta anos depois, ele vinha acompanhado da foto escondida da modelo e da sua reconstituição obtida através de uma técnica de fluorescência de raios X. A descrição dessa técnica revolucionária foi publicada na revista Scientific Reports em 4/8/16, e constitui uma extraordinária revolução científica de um interesse apaixonante que o artigo de Nicolau Ferreira tão vivamente apresenta.
Gosto de Degas, a reprodução do seu quadro “Les repasseuses” acompanha-me desde que iniciei as tarefas que incumbem ao ser adulto, de embelezar a casa, cuidar desta e da família e trabalhar para sobreviver. Um quadro muito conhecido, enquadrado num ambiente de desgaste e trabalho que oferece a dose de piedade própria da época de objectividade e realismo crítico que impregnavam igualmente a literatura da segunda metade do século XIX, tão expressiva em Cesário Verde, que especialmente estudara.
Mas o artigo de Nicolau Ferreira logo me chamou a atenção para o extraordinário feito científico de detectar mazelas nos quadros, como se faz nos seres humanos, em técnicas analíticas que levarão longe a descoberta. As fotos que acompanham o artigo, e que não reproduzo, encontrei-as na Internet igualmente, em maior quantidade ainda.
Um autêntico policial captador de mistérios no abismo da história, o desenvolvimento científico. Aonde iremos chegar?

Revelada mulher escondida num quadro de Edgar Degas
05/08/2016

Obra de pintor francês foi analisada usando técnica avançada de raios X, permitindo recriar as cores de uma pintura escondida. Método que permitiu comparar a evolução técnica de Edgar Degas.
À esquerda, o retrato de uma mulher desconhecida, visto pelos olhos humanos; e à direita, o retrato oculto da modelo Emma Dobigny, que está virado de cabeça para baixo em relação à pintura feita posteriormente
David Thurrowgood

As biografias de Edgar Degas (1834-1917) descrevem-no como um artista interessado em pintar o sujeito humano, principalmente as mulheres. Nas suas obras encontram-se bailarinas, cantoras de cabaret, vendedoras de chapéus, imagens da vida boémia e artística parisiense. Em Portrait de Femme (Retrato de Mulher), o observador vê uma mulher de cara cheia, com um vestido escuro e um tecido negro a cobrir-lhe a cabeça. O quadro pertence à Galeria Nacional de Vitória, em Melbourne, na Austrália, desde 1937. Já na altura, a obra revelava mais do que o que se via à superfície.
“A mulher desconhecida está sentada, debruçada, à beira de uma conversa, os seus olhos estão vivos, com interesse. A concentração com que ouve um interlocutor que está fora de cena foi captada em pinceladas rápidas e hábeis, que estão de acordo com o estilo que o pintor tinha no final da década de 1870”, diz a descrição do quadro, datado entre 1876 e 1880, que consta no site do museu australiano. Mas, “os méritos intrínsecos [do quadro] são difíceis de apreciar devido ao infortúnio de outra composição se revelar numa mancha escura ao longo da cara da mulher sentada, desfigurando este retrato cativante”.
Quando a obra foi apresentada pela primeira vez ao público australiano, a 6 de Agosto de 1937, esta mancha já era uma preocupação dos críticos de arte. Quase 80 anos depois, uma nova exposição na Galeria Nacional de Vitória com mais de 200 quadros de Edgar Degas inclui agora uma reconstituição da composição que está escondida em Portrait de Femme. Graças ao uso de uma técnica de fluorescência de raios X, uma equipa de investigadores conseguiu obter uma imagem com as cores muito aproximadas da pintura escondida, identificando a modelo retratada pelo pintor francês.
O artigo científico sobre este trabalho, que aliou uma tecnologia de ponta ao estudo da arte, foi publicado ontem na revista Scientific Reports. Segundo os autores, a técnica poderá ajudar a confirmar a autenticidade de outras obras de arte.
Embora Edgar Degas não se visse como um impressionista, muitos historiadores de arte colocam-no neste movimento, conhecido por nomes como Claude Monet e Pierre Auguste Renoir. Este grupo de artistas franceses transformou a pintura na segunda metade do século XIX ao escolher como objecto as paisagens naturais e as do quotidiano, e dando mais importância à cor e à luz do que às linhas e aos contornos. Assim, criaram obras que, apesar de menos detalhadas, se aproximavam mais da forma como observamos a realidade do que as pinturas feitas anteriormente.
Durante a década de 1860, a Academia de Belas-Artes de Paris recusou os quadros destes pintores. Por isso, na década seguinte, Monet, Renoir, Degas e muitos outros artistas formaram uma associação. Em 1874, essa associação organizou a primeira de várias exposições com os seus trabalhos, que iriam marcar o início do impressionismo.
O quadro Portrait de Femme e a composição escondida de Edgar Degas foram pintadas durante aquele período. Desde 1922 que se identifica o contorno da figura escondida no quadro, uma consequência da degradação dos pigmentos da pintura a óleo.
No passado, uma imagem de raios X já tinha dado aos historiadores de arte alguma informação sobre a pintura escondida, revelando uma jovem. “Fotografias a infravermelho da tela mostram ainda que aquele era um esboço traçado com delicadeza e cuidado, reminiscente do estilo clássico que Degas usava por volta de 1860, quando o seu trabalho venerava os antigos mestres da pintura”, explica-se no texto do museu. A cara da jovem está de cabeça para baixo: ou seja, Edgar Degas pintou este primeiro retrato e alguns anos depois, entre 1876 e 1880, virou a tela ao contrário para pintar o novo retrato.
Elemento a elemento
Isto era tudo o que se sabia. Agora, as imagens obtidas pela equipa de Daryl Howard, do Sincrotrão Australiano, em Clayton, permitiram ir mais longe e revelar a identidade da misteriosa figura feminina. “As composições iniciais que foram escondidas por trabalhos posteriores, dão informação importante sobre as obras de arte e os artistas”, lê-se no artigo da Scientific Reports. “Elas podem revelar a evolução de um artista e ter um valor incalculável para a atribuição da autoria de um trabalho.”
Para isso, os cientistas usaram um sincrotrão, uma máquina que envia feixes intensos de raios X para o quadro, provocando uma reacção de fluorescência, e permitindo analisar a pintura a um novo nível. E trabalharam com um detector de fluorescência de ponta. “As imagens de fluorescência por raios X de alta definição funcionam através de uma digitalização rápida da imagem do quadro, que é atravessado por um feixe de raios X”, explica ao PÚBLICO Daryl Howard. “É necessário um detector de raios X capaz de trabalhar muito rapidamente.”

(Quadro a ser examinado numa poderosa máquina de raios X e a imagem resultante desse exame)
A imagem demorou 33 horas a recolher, criando uma documento com 31,6 milhões de píxeis. “Somos capazes de identificar os pigmentos de metais a partir de uma fluorescência característica”, explica ainda o cientista. A equipa conseguiu assim dividir a imagem de fluorescência em 11 imagens diferentes, cada uma mostrando a distribuição de um único elemento químico – do cálcio, do manganésio, ferro, cobalto, zinco, mercúrio, crómio, níquel, cobre, arsénio e bário.
Depois, os cientistas associaram cada elemento químico a um pigmento, relacionado com o local onde estava situado na pintura escondida e as tintas usadas na época. O zinco, por exemplo, está no local da face, mas também na orelha e no cabelo. “O zinco estaria mais provavelmente na forma de pigmento branco de zinco, que se tornou muito usado após 1845”, explica o artigo.
Fazendo este tipo de associação com os 11 elementos químicos, a equipa definiu a paleta de cores que o pintor terá usado no esboço encoberto. A informática fez o resto, uma espécie de tradução imediata dos elementos químicos para as cores. E voilà! Obteve-se uma imagem a cores da jovem mulher, onde os tons castanhos e pastel se destacam, ao contrário dos amarelos, verdes e tons mais escuros da pintura que é visível aos olhos humanos.
“A ‘falsa’ imagem a cores resultante é a representação plausível do trabalho do artista naquele período”, lê-se no artigo, que aponta a identidade da mulher retratada. “Propomos que seja um retrato, previamente desconhecido, da modelo Emma Dobigny, cujo nome real era Marie Emma Thuilleux, que foi modelo para Degas entre 1869 e 1870 e é descrita como uma modelo favorita de Degas e de outros artistas franceses deste período.”
Segundo a literatura científica, o pintor francês tinha um apreço especial por esta modelo. Os autores defendem que talvez por isso tenha havido uma “insatisfação” por parte Edgar Degas em relação ao resultado do esboço, o que terá levado o pintor a abandonar a obra a meio. De facto, uma leitura minuciosa da imagem de fluorescência revelou várias tentativas de pintar a orelha de Emma Dobigny, que surge um tanto ou quanto pontiaguda, explicam os autores.
Toda esta informação permitiu à equipa de Daryl Howard apontar o ano de 1869 como a data provável do retrato da modelo.
Para os autores, esta técnica oferece “uma probabilidade muito maior de identificar os pigmentos correctos quando comparada com as técnicas de análise não invasivas convencionais”. A equipa espera que o seu uso se dissemine e seja aplicado nos estudos de confirmação de autoria de pinturas, já que “revela informação estilística e sobre a composição dos elementos [químicos], cuja reprodução é improvável por pessoas que tentem copiar um trabalho”.
Para já, a nova imagem permitiu observar as mudanças artísticas de Edgar Degas entre 1869 e 1880, já que a “transformação da paleta de cores usada e da técnica está claramente documentada”, revelando assim um quadro que é uma prova viva da evolução de um dos grandes pintores do século XIX.

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