Uma estranha notícia, ocupando
duas páginas – 30/31 - no Público de 5/8, revela um quadro de Edgar
Degas - «Portrait de Femme» - pintado sobre outra figura da mesma
mulher, em posição invertida, que foi modelo de Degas entre 1869/70. Quando, em
1937, o quadro foi exposto pela primeira vez em Melbourne, ele já apresentava
uma mancha preocupante, sintoma de deterioração de tintas causada por secreto
factor. Ao ser apresentado novamente na mesma Galeria Nacional de Vitória, em
Melbourne, numa exposição sobre Degas, cerca de oitenta anos depois, ele vinha
acompanhado da foto escondida da modelo e da sua reconstituição obtida através
de uma técnica de fluorescência de raios X. A descrição dessa técnica
revolucionária foi publicada na revista Scientific Reports em 4/8/16, e
constitui uma extraordinária revolução científica de um interesse apaixonante
que o artigo de Nicolau Ferreira tão vivamente apresenta.
Gosto de Degas, a reprodução
do seu quadro “Les repasseuses” acompanha-me desde que iniciei as tarefas que
incumbem ao ser adulto, de embelezar a casa, cuidar desta e da família e
trabalhar para sobreviver. Um quadro muito conhecido, enquadrado num ambiente
de desgaste e trabalho que oferece a dose de piedade própria da época de
objectividade e realismo crítico que impregnavam igualmente a literatura da
segunda metade do século XIX, tão expressiva em Cesário Verde, que
especialmente estudara.
Mas o artigo de Nicolau
Ferreira logo me chamou a atenção para o extraordinário feito científico de detectar
mazelas nos quadros, como se faz nos seres humanos, em técnicas analíticas que
levarão longe a descoberta. As fotos que acompanham o artigo, e que não
reproduzo, encontrei-as na Internet igualmente, em maior quantidade ainda.
Um autêntico policial captador
de mistérios no abismo da história, o desenvolvimento científico. Aonde iremos
chegar?
Revelada
mulher escondida num quadro de Edgar Degas
05/08/2016
Obra de pintor francês foi analisada usando técnica
avançada de raios X, permitindo recriar as cores de uma pintura escondida.
Método que permitiu comparar a evolução técnica de Edgar Degas.
À esquerda, o retrato de uma mulher desconhecida,
visto pelos olhos humanos; e à direita, o retrato oculto da modelo Emma
Dobigny, que está virado de cabeça para baixo em relação à pintura feita
posteriormente
David Thurrowgood
As biografias de Edgar Degas (1834-1917) descrevem-no como
um artista interessado em pintar o sujeito humano, principalmente as mulheres.
Nas suas obras encontram-se bailarinas, cantoras de cabaret, vendedoras de
chapéus, imagens da vida boémia e artística parisiense. Em Portrait de Femme (Retrato
de Mulher), o observador vê uma mulher de cara cheia, com um vestido escuro e
um tecido negro a cobrir-lhe a cabeça. O quadro pertence à Galeria Nacional de
Vitória, em Melbourne, na Austrália, desde 1937. Já na altura, a obra revelava
mais do que o que se via à superfície.
“A
mulher desconhecida está sentada, debruçada, à beira de uma conversa, os seus
olhos estão vivos, com interesse. A concentração com que ouve um interlocutor
que está fora de cena foi captada em pinceladas rápidas e hábeis, que estão de
acordo com o estilo que o pintor tinha no final da década de 1870”,
diz a descrição do quadro, datado entre 1876 e 1880, que consta no site do
museu australiano. Mas, “os méritos intrínsecos [do quadro] são difíceis de
apreciar devido ao infortúnio de outra composição se revelar numa mancha escura
ao longo da cara da mulher sentada, desfigurando este retrato cativante”.
Quando
a obra foi apresentada pela primeira vez ao público australiano, a 6 de Agosto
de 1937, esta mancha já era uma preocupação dos críticos de arte. Quase 80
anos depois, uma nova exposição na Galeria Nacional de Vitória com mais de 200
quadros de Edgar Degas inclui agora uma reconstituição da composição que está
escondida em Portrait de Femme. Graças ao uso de uma técnica de fluorescência
de raios X, uma equipa de investigadores conseguiu obter uma imagem com as
cores muito aproximadas da pintura escondida, identificando a modelo retratada
pelo pintor francês.
O
artigo científico sobre este trabalho, que aliou uma tecnologia de ponta ao
estudo da arte, foi publicado ontem na revista Scientific Reports. Segundo os
autores, a técnica poderá ajudar a confirmar a autenticidade de outras obras de
arte.
Embora
Edgar Degas não se visse como um impressionista, muitos historiadores de arte
colocam-no neste movimento, conhecido por nomes como Claude Monet e Pierre
Auguste Renoir. Este grupo de artistas franceses transformou a pintura na
segunda metade do século XIX ao escolher como objecto as paisagens naturais e
as do quotidiano, e dando mais importância à cor e à luz do que às linhas e aos
contornos. Assim, criaram obras que, apesar de menos detalhadas, se aproximavam
mais da forma como observamos a realidade do que as pinturas feitas
anteriormente.
Durante
a década de 1860, a Academia de Belas-Artes de Paris recusou os quadros destes
pintores. Por isso, na década seguinte, Monet, Renoir, Degas e muitos outros
artistas formaram uma associação. Em 1874, essa associação organizou a primeira
de várias exposições com os seus trabalhos, que iriam marcar o início do
impressionismo.
O
quadro Portrait de Femme e a composição escondida de Edgar Degas
foram pintadas durante aquele período. Desde 1922 que se identifica o
contorno da figura escondida no quadro, uma consequência da degradação dos
pigmentos da pintura a óleo.
No
passado, uma imagem de raios X já tinha dado aos historiadores de arte alguma
informação sobre a pintura escondida, revelando uma jovem. “Fotografias a
infravermelho da tela mostram ainda que aquele era um esboço traçado com
delicadeza e cuidado, reminiscente do estilo clássico que Degas usava por volta
de 1860, quando o seu trabalho venerava os antigos mestres da pintura”,
explica-se no texto do museu. A cara da jovem está de cabeça para baixo: ou
seja, Edgar Degas pintou este primeiro retrato e alguns anos depois, entre 1876
e 1880, virou a tela ao contrário para pintar o novo retrato.
Elemento a elemento
Isto
era tudo o que se sabia. Agora, as imagens obtidas pela equipa de Daryl Howard,
do Sincrotrão Australiano, em Clayton, permitiram ir mais longe e revelar a
identidade da misteriosa figura feminina. “As composições
iniciais que foram escondidas por trabalhos posteriores, dão informação
importante sobre as obras de arte e os artistas”, lê-se no artigo da Scientific
Reports. “Elas podem revelar a evolução de um artista e ter um valor
incalculável para a atribuição da autoria de um trabalho.”
Para
isso, os cientistas usaram um sincrotrão, uma máquina que envia feixes
intensos de raios X para o quadro, provocando uma reacção de fluorescência, e
permitindo analisar a pintura a um novo nível. E trabalharam com um detector de
fluorescência de ponta. “As imagens de fluorescência por raios X de alta
definição funcionam através de uma digitalização rápida da imagem do quadro,
que é atravessado por um feixe de raios X”, explica ao PÚBLICO Daryl
Howard. “É necessário um detector de raios X capaz de trabalhar muito
rapidamente.”
(Quadro
a ser examinado numa poderosa máquina de raios X e a imagem resultante desse
exame)
A
imagem demorou 33 horas a recolher, criando uma documento com 31,6 milhões de
píxeis. “Somos capazes de identificar os pigmentos de metais a partir de uma
fluorescência característica”, explica ainda o cientista. A equipa conseguiu
assim dividir a imagem de fluorescência em 11 imagens diferentes, cada uma
mostrando a distribuição de um único elemento químico – do cálcio, do
manganésio, ferro, cobalto, zinco, mercúrio, crómio, níquel, cobre, arsénio e
bário.
Depois,
os cientistas associaram cada elemento químico a um pigmento, relacionado com o
local onde estava situado na pintura escondida e as tintas usadas na época. O
zinco, por exemplo, está no local da face, mas também na orelha e no cabelo. “O
zinco estaria mais provavelmente na forma de pigmento branco de zinco, que se
tornou muito usado após 1845”, explica o artigo.
Fazendo
este tipo de associação com os 11 elementos químicos, a equipa definiu a paleta
de cores que o pintor terá usado no esboço encoberto. A
informática fez o resto, uma espécie de tradução imediata dos elementos
químicos para as cores. E voilà! Obteve-se uma imagem a cores da jovem
mulher, onde os tons castanhos e pastel se destacam, ao contrário dos amarelos,
verdes e tons mais escuros da pintura que é visível aos olhos humanos.
“A
‘falsa’ imagem a cores resultante é a representação plausível do trabalho do
artista naquele período”, lê-se no artigo, que aponta a identidade da mulher
retratada. “Propomos que seja um retrato, previamente desconhecido, da modelo
Emma Dobigny, cujo nome real era Marie Emma Thuilleux, que foi modelo para
Degas entre 1869 e 1870 e é descrita como uma modelo favorita de Degas e de
outros artistas franceses deste período.”
Segundo
a literatura científica, o pintor francês tinha um apreço especial por esta
modelo. Os autores defendem que talvez por isso tenha havido uma “insatisfação”
por parte Edgar Degas em relação ao resultado do esboço, o que terá levado o
pintor a abandonar a obra a meio. De facto, uma leitura minuciosa da imagem de
fluorescência revelou várias tentativas de pintar a orelha de Emma Dobigny, que
surge um tanto ou quanto pontiaguda, explicam os autores.
Toda
esta informação permitiu à equipa de Daryl Howard apontar o ano de 1869 como a
data provável do retrato da modelo.
Para
os autores, esta técnica oferece “uma probabilidade muito maior de
identificar os pigmentos correctos quando comparada com as técnicas de análise
não invasivas convencionais”. A equipa espera que o seu uso se dissemine
e seja aplicado nos estudos de confirmação de autoria de pinturas, já que
“revela informação estilística e sobre a composição dos elementos [químicos],
cuja reprodução é improvável por pessoas que tentem copiar um trabalho”.
Para
já, a nova imagem permitiu observar as mudanças artísticas de Edgar Degas entre
1869 e 1880, já que a “transformação da paleta de cores usada e da técnica está
claramente documentada”, revelando assim um quadro que é uma prova viva da
evolução de um dos grandes pintores do século XIX.
Nenhum comentário:
Postar um comentário