quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Eles fizeram greve

E eis que, na distracção do bolo de laranja a acompanhar a bica do meu atraso, a voz sonora da nossa amiga disparou sobre a greve no aeroporto, no arrebatamento habitual, que me pôs logo à procura do papel e da caneta no fundo do saco, abandonando o bolo: - Se quisessem passar bombas por ali, passavam à vontade e era um fartote.
Falava das greves da véspera no aeroporto e do caos em busca de aviões ainda disponíveis, com gentes sôfregas para apanhar algum a jeito - multiplicada por milhares, mas a milhares de léguas de distância dela, a imagem dos dois amigos Carlos e Ega na corrida final para o “americano” para os prazeres gastronómicos, remate desconcertante e poético das suas teorias niilistas sobre uma existência falhada, onde não vale a pena dar um passo para concretizar qualquer desejo, o que é logo contrariado pela realidade escarninha -"Então, para apanhar o Americano, os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia.”
Não, não se tratava de prazeres gastronómicos a conquistar, mas de fim de férias de retorno aos trabalhos, na sua maioria, que os explorados pilotos contrariavam marcando para essas alturas de ponta as greves das suas reclamações anuais.
E a nossa amiga continuava, desconhecedora destas lucubrações sobre os paralelismos e contrastes dos acontecimentos, reais e de fábula, acompanhando com a largueza dos gestos a ênfase das suas frases:
- Eu, quando vi tal gente a correr no aeroporto, pensei logo: Um doido que estivesse a ver – ou a viver – aquelas imagens, ia a casa buscar a bomba e era uma limpeza. Nunca tinha visto uma coisa daquelas. As cabeças vistas de cima a correr, para apanhar algum avião disponível… Pensei logo na bomba.
A minha irmã também ouvira, mas entretida com os seus jornais, não olhara o écran, no hábito destas cenas, que, com este novo governo de compinchas, em todo o caso, se têm mostrado menos relevantes.
A mim, mesmo que tivesse visto, não ocorreria tal ideia de bomba, conhecendo a pacatez do nosso povo, com os seus casos esporádicos de violência familiar, ultimamente, é certo, agravados, mas creio que por desavenças específicas e não pelos requintes ideológicos da moda. Mas a nossa amiga mostra bem a sua alma de artista ao focar o quadro das massas a correr, em aflição, inspirador de compositores de música ou de produtores de filmes, de poetas, romancistas, de pintores, ou mesmo só de fotógrafos, tão hábeis hoje, a captar as cenas das nossas emoções…
De resto, as greves agora acontecem em muitos lados, mesmo no Canadá, tudo gente branda que já se habituou a esperar tranquilamente por novo dia, segundo o lema francês “Tout passe, tout casse et tout se remplace”. A esperança é a última a morrer. E a democracia habituou-nos a respeitar as reclamações chantagistas em moda, seguidoras da teoria física da pressão:  pressão é uma grandeza que é quantificada através da razão entre a força (F) e a área (A) da superfície em questão, onde a força é aplicada….... Como temos uma área curta, ela exerce-se com mais força do que nas áreas mais vastas, embora a minha irmã ache que não é só questão de área mas de educação.
E a nossa amiga remata, muito obstinada nas sua ideias:  - Quando há greve não devia haver voos.
E a seguir, extasiada, no requinte nos seus conhecimentos mundanos, passou ao jogo entre o Sporting e o Porto: - Vai haver tanta polícia a tomar conta do ser humano, com os dragões e os leões…

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