O jornalista tem que escrever
sobre o 11 de Setembro de 2001, passaram 15 anos do ataque às Torres
Gémeas, muita tinta correu, a Internet dá larga conta, explica os motivos do
ódio contra a América, que protege Israel e interfere largamente na zona do
Médio Oriente, e a retaliação dos Estados Unidos, contra a Al-Qaeda, o Ossama
Bin Laden, e outros árabes que odeiam a nação poderosa e prometem mais torres a
abater…
O jornalista acha que foi tudo
dito sobre esse 11 de Setembro e cria uma história fictícia que poderia ser
real – uma história de amor paterno que poderia ter descambado em tragédia, se
circunstâncias da sua vida não tivessem sido obstáculo à concretização do seu
projecto de amor e responsabilidade educativa dos filhos, de que as viagens
fazem, naturalmente, parte.
Assim, porque tem que escrever
um mínimo de quatro mil e quinhentos caracteres
para a coluna do DN, de um 11 de Setembro americano, de que já tudo foi
dito, em que cerca de 3000 pessoas perderam a vida, de mistura com a sua ficção
do passeio a Compostela refere um 11 de Setembro português, de 1985, um
desastre ferroviário em Alcafache, com cerca de 150 mortos, coisa mínima para o
mundo, importante para nós, momentaneamente, apenas, no galgar de outras mais
circunstâncias que tudo relativizam – menos para as famílias atingidas.
A viagem a Compostela
preparada, badalada, transmitida com entusiasmo às filhas adolescentes,
medianamente seduzidas, não chegará a realizar-se, devido a circunstâncias das
banalidades torpes da vida que impuseram o desvio do dinheiro da viagem para outros
fins bem menos aprazíveis. Obstáculo que se verificaria posteriormente ter sido
uma bênção do destino, que dessa forma evitara provavelmente o desastre da
família, que regressaria, na viagem projectada, no mesmo comboio Celta que
fazia a ligação Vigo-Porto, cujo descarrilamento provocara mortes e feridos. E
o susto, e a incompreensão, e o alívio, e as mesmas perguntas que outros
fariam, de outros desastres que lhes poderiam ter sucedido a eles, porque
estiveram para ir, nos aviões que rebentaram, nos comboios que descarrilaram, ou
que qualquer motivo impedira de subirem às torres trespassadas…
Tudo já se dissera das Torres,
e dos motivos, e das consequências, e das retaliações. João Taborda Gama
relativiza os factos, mostrando como se repetem no mundo a cada passo, com
maior ou menor dimensão mas igualmente valiosos para o ser humano que os viveu
ou que o acaso fez deles escapar.
O seu sentido de humor e uma
sensibilidade de recusa ao espectacular das tragédias – a vida tendo, naturalmente,
todo um sentido trágico - o leva a criar
uma história doseada de humorismo e sentido dramático, com a necessária dose de
filosofia de vida sobre as manobras do destino que favorecem momentaneamente
uns tantos e retiram apoio a outros, na incompreensão humana dos “porquês”, e nas
inúteis propostas dos hipotéticos “ses”.
E isso me fez lembrar, talvez um
pouco puerilmente, na incompreensão da vida, o deslumbramento contido na chamada
“Cantiga da Garvaia”, atribuída a Paio Soares de Taveirós, por uma
Ribeirinha famosa, amante do nosso D. Sancho I, como declaração simultaneamente
de amor e escárnio, ao vê-la sem manto. Como a vida: deslumbramento e sofrimento,
amor e sensualidade em que vale a pena rir.
E João Taborda da Gama assim usa a sua veia humorística para
desmistificar o trágico, cumprindo a obrigação dos 4.500 caracteres, sem
falsear os dados. Com extrema elegância:
No mundo non me sei parelha,
mentre me for como me vai, ca ja moiro por vós e ai! mia senhor branca e vermelha, queredes que vós retraia quando vos eu vi en saia. Mao día me levantei, que vos entón non vi fea! E, mia senhor, des aquelha me foi a mí mui mal di'ai!, E vós, filha de don Paai Moniz, e ben vos semelha d'haver eu por vós guarvaia, pois eu, mia senhor, d'alfaia nunca de vós houve nen hei valía dũa correa. |
Caminhos de fé?
DN,11/9/16
Junho-agosto
de 2016. Vamos imaginar um pai que vendo as filhas mais velhas na beira da
adolescência, e a si empurrado cada vez com mais força para fora da dita,
decide que é desta, que é desta que vão fazer o Caminho de Santiago.
Estuda, planeia, cinco dias, de Valença a Santiago, só os quatro, ida e vinda
de comboio, que ele tem medo de aviões. Primeira semana de setembro, um Excel
todo bonito, com as viagens, as pernoitas, as etapas, diz a toda a gente,
chateia os amigos que já fizeram o caminho. Botas ou sapatos? Quantos
quilómetros por dia? O Caminho português ou o francês? Saída na sexta, regresso
na sexta, de dois a nove. Vai ser daquelas coisas que imaginamos que eles se
vão lembrar quando morrermos. Só nós as três e o pai, daquela vez, imagens que
se vão sobrepor ao quotidiano e aos horrores da conjugação do calendário e do
horário escolar, e o profissional, ou da sua desarticulação.
Depois
acontecem duas coisas. Uma, mais difusa, é aquele entusiasmo típico dos catorze
anos com tudo o que mete pais, e em especial uma coisa estranha de ir andar a
pé de um sítio para outro, "a procissão" como ficou conhecido aquilo
que até lá era apenas "a caminhada" depois da revelação, ou
descoberta, da natureza religiosa da coisa. O entusiasmo negativo, o
equivalente no parentês do conceito de juros negativos na economia popular,
preocupava apenas relativamente um pai que não é parvo. Bastaria montar uma
campanha de propaganda bem feita e com meios, tipo aquelas dos medicamentos
para a hepatite C, e seria debelado o spleen teen em dois tempos (oportunidades
para fotos no Instagram que iam bater os likes das amigas em roupa interior,
digo, de praia; promessa de guloseimas ao final do dia para dar forças; uma ida
à Decathlon para comprar material; a revelação de que, dado o peso, não ia dar
para levarmos livros, mas que os albergues teriam wi-fi).
Mas
aconteceu outra coisa. O tal pai das tais miúdas, que até se diz fiscalista,
entregou o IRS fora de prazo. Como se isso não bastasse - ia ser uma
vergonha se alguém descobrisse, ia ter de pagar multa e juros -, não leu uma
norma no Código do IRS que dizia que quem se atrasasse na entrega do IRS não
podia entregar o IRS em conjunto, como casal. Ora isso no caso daquele casal
era uma diferença astronómica. A norma, escondida, insidiosa, burocrática,
desproporcional, era claramente inconstitucional, uma selvajaria fiscal, uma
aberração que qualquer tribunal reconheceria, mas ia ser necessário pagar o IRS
agora e discutir depois. Para aprender a ter mais cuidado daqui para a
frente e entregar o IRS a tempo e ler o código de fio a pavio, o tal pai
decidiu pôr-se de castigo e cancelar a ida a Caminho de Santiago (iam ser as
suas únicas férias), dizer às filhas que afinal vamos precisar desse dinheiro
para outra coisa. O cancelamento foi recebido com a indiferença adequada,
talvez apenas um pequeno oh que sempre se solta para assinalar a posição
contrária, o lugar perante a barricada.
10
de setembro de 2016, sábado. É preciso escrever a coluna do DN, quatro mil e
quinhentos caracteres no mínimo. O texto vai sair a 11 de setembro e o impulso
é escrever sobre os atentados de Nova Iorque, mas já foi tudo dito, nada a
dizer de novo, de inteligente, problemas de quem já leu milhares de páginas
sobre a coisa. Um dos ângulos possíveis seria este: a 11 de
setembro de 1985 foi o desastre ferroviário de Alcafache. Morreram talvez 150
pessoas. Não se sabe ao certo. A crónica podia ser sobre isto, sobre os dois
onzes de setembro e sobre a morte e a sua representação psicológica e cultural,
o esquecimento de Alcafache e a hiperanálise de Nova Iorque. No fundo, a
ideia a ser testada era esta: 11 de setembro de 1985, no nosso país, com 150
mortos portugueses, cerca de..., ocupa um lugar na nossa memória coletiva
diferente do 11 de Setembro de 2001, um lugar com menos relevo, com menos
reportagens, menos conversas; não se trata de justiça ou injustiça relativa, de
respeitar ou não mais uns do que os outros mortos, mas de pensar isto, da
saliência relativa das coisas, e da causa dessa relevância diferente do ponto
de vista da comunidade. As vidas valem todas o mesmo - então por que razão umas
mortes, umas catástrofes, ocupam mais o espaço público do que outras? Mas a
ensaiar esse texto, essa ligação entre os dois onzes de setembro, o autor,
que sempre que pode anda de comboio para evitar o avião, não se esquecia do
acidente ferroviário da véspera, sexta dia dez, o comboio Celta, operado pela
CP e pela Renfe, que fazia Vigo-Porto, que tirou a vida a quatro pessoas e
feriu gravemente várias dezenas. Provavelmente, quase de certeza, o
comboio de regresso onde estariam o pai e as filhas se tivessem ido fazer a tal
caminhada-procissão. E que só não foram porque elas não queriam assim tanto,
porque ele se atrasou no IRS e porque alguém se lembrou de enfiar no código uma
norma abstrusa. E isso foi o suficiente para decidir escrever sobre isso, até
porque já não conseguia escrever sobre mais nada, tudo parecia ainda pouco
real, a sorte deles, o azar dos outros. Porquê o código, porquê o prazo, porquê
tantos caminhos. Porquê?
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