Era o Nicolau Tolentino que
numa das suas sátiras – «A Função», mais especificamente - mostrava a
variedade panorâmica das ruas citadinas e da sociedade que tão caricaturalmente
ele soube desenhar. É certo que pouco isto tem a ver com o tema do excelente
estudo de José Pacheco Pereira «Ascensão e queda da privacidade - que
me faz lembrar, também, diferentes situações em que vivi, de maior
promiscuidade na adolescência, na casa do Estado com quatro divisões, o quarto
dos pais comunicando com o nosso e da nossa avó, mas a verdade é que nunca isso
afectou o nosso gosto de viver, miúdas que éramos, sem preconceitos de
privacidade, embora, com a morte da nossa avó, e o casamento de uns primos que
viveram algum tempo connosco, e cujo quarto, mais independente, comunicava com
a sala de jantar, tivéssemos podido, a minha irmã e eu, ocupá-lo com direito a
cama individual, estante e secretária, onde estudávamos ou fingíamos isso,
muitas vezes os livros de empréstimo, escondidos na gaveta, preenchendo
livremente – mas de ouvido à escuta - as fictícias ocupações de estudo. Os
quatro “aposentos” comunicavam com a varanda traseira, por sua vez ligada à
cozinha, que ficava do lado de lá do quintal, onde também se situavam o quarto
de banho nosso, o do criado e o seu quarto de dormir. Havia ainda uma escada
para o terreno das nossas muitas correrias e brincadeiras, do lado de trás
desse espaço vital. A nossa casa ficava
no meio de outras duas, por sua vez ligadas à frente entre si, por larga
varanda, cada uma, contudo, com direito à sua porta de entrada, sem qualquer
promiscuidade, pois. Outras casas habitei, cá e lá, com direito a privacidade, a evolução da arquitectura burguesa trabalhada em função da habitabilidade não promíscua, o que dependia, de resto, do agregado familiar. Mas a família
era vasta, a nossa última casa, em África, tinha a sala comum, o quarto dos
dois filhos mais velhos, com dois beliches, o outro dos mais novos também com dois
beliches mais pequenos, e a cama da Paulinha, o nosso quarto, a cozinha, e as
escadas de trás e da frente. Três anos de um viver não promíscuo mas de amor,
pertencíamos a uma burguesia que pagara os beliches a prestações. A Paula tinha
14 anos quando veio para cá, fê-los no dia de ontem, tal como há 42 anos, em
que levámos os restos da sua festa aos soldados que ocuparam o Rádio Clube de
Moçambique, na véspera da tal mudança, que
a expressão assustadora da senha Galo! Galo! na mesma Rádio, que nos acordara
na manhã seguinte, mostrara ironicamente como fora fátua tal ocupação, com a
multidão a envolver esses soldados corajosos.
42 anos posteriores de
privacidade de empréstimo, numa casa grande, com muitos quartos onde se viveu e
cresceu com privacidade relativa, na
independência e respeito pelo “livre alvedrio” de cada um, “isento,
forro, poderoso”, mas também com o natural respeito pelas regras, o que fez que
nenhum de nós possa fazer alguma vez parte dos que estarão sob a alçada da
invasão abusiva da tal privacidade nos tempos de hoje, segundo o mesmo artigo
de P. Pereira, com o Estado controlador, no caso de finanças mal paradas. De
resto, realmente, o Big Brother segundo George Orwell, tornou-se assustadoramente castrador, longe vai o
tempo em que se vivia com direito a um espaço de liberdade, José Pacheco
Pereira o informa, de forma drástica, como é seu hábito, e científica que
também é. E como a Paula o admira, aqui vai o seu artigo, já atrasado, pois que
foi ontem e não hoje o seu dia dos parabéns a você. E já agora, também a
quintilha de “A Função” de Nicolau Tolentino,
onde se insere a expressão do título que tal artigo de Pacheco Pereira logo me fez acolher
de uma memória que vai sendo cada vez menos promíscua, a desaparecer nos
horizontes, e que a Internet permite, por vezes, recuperar:
Então, já quando em cardume
Sai gente da Fundição,
Como sabeis que é costume,
E já as vizinhas vão
Pedir às vizinhas lume…
Tema de uma deambulação que
Cesário retomaria, tempos depois, nos seus passeios em liberdade, mais
seriamente meditada do que, naturalmente, a da sátira tolentina, percuciente e
burlesca, de simpatia bonacheirona:
Voltam os calafates, aos
magotes,
De jaquetão ao ombro,
enfarruscados, secos;
Embrenho-me, a cismar, por
boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se
atracam botes. (O Sentimento dum Ocidental)
Ascensão e queda da
privacidade
Público,
14/05/2016
Demorou
mais de 200 anos para uma parte importante da população ocidental conquistar
não só um direito à privacidade, como condições para o exercer de facto. Não foi uma conquista
generalizada, seguia uma fractura social. Os mais ricos, mas também a classe
média e remediada, podiam usufruir de condições de vida que incluíam a
intimidade e um módico de privacidade, embora os mais pobres continuassem a ter
uma vida promíscua, sem “espaço” para ter privacidade.
De igual modo, a situação
não era idêntica nas cidades e no campo, nas cidades e nas aldeias. Este
processo acompanha a criação de uma sociedade “burguesa”, centrada nas cidades,
com casas e janelas com cortinas, várias divisões e diversificação dessas
divisões. Não viviam amontoados, nem com a rua a entrar-lhes em casa. Nas
aldeias, a privacidade era muito menor, vivendo as pessoas num espaço pequeno,
em que o grau de interacção era muito maior, e em que “todos sabiam tudo sobre
todos”. Durkheim estudou este tipo de espaços sociais e os tecidos de vida
que implicavam.
Muito do mundo “burguês”
nos séculos XIX e XX assentava na privacidade e isso permitiu mais identidade e
liberdade. As pessoas podiam escolher mostrar-se ou esconder-se e,
romances como a Anna Karenina de Tolstoy, ou Madame Bovary de Flaubert,
muitos dos contos de Tchekov e do teatro de Ibsen ou Stindberg, só são
possíveis nestes novos espaços protegidos da promiscuidade. As personagens que
se movem nesses espaços, tem identidade e liberdade, a começar pela de fazer
“asneiras” e para se desviarem do comportamento dominante, podem desenvolver
relações diferentes, mesquinhas ou nobres, sem escândalo público e sem sanção
social imediata. Amores, paixões, adultérios, abandonos, traições,
entraram na literatura no novo espaço da casa “burguesa”.
Com a melhoria das
condições de vida de parte considerável da população, aumentou esse espaço
privado. Mas, insisto, uma parte ficou e fica de lado, quando se habita em
pouco mais de um quarto e uma cama, e se faz tudo no mesmo espaço. É por isso
natural que o valor da privacidade estivesse muito associado a quem tinha a
possibilidade de a ter. Os pobres têm toda uma outra lista de necessidades
antes da privacidade, mas quando uma família sai de uma barraca e vai para um
pequeno apartamento num bairro social, é o “espaço” a primeira coisa que refere
em entrevista.
Hoje tudo isto está a
andar para trás, a privacidade, as suas condições e o seu valor, estão a ser
postos seriamente em causa e é preciso ter cada vez mais riqueza e poder para
garantir alguma privacidade, débil que seja. O que se está a passar é que duas forças
poderosas estão a minar a conquista da privacidade e a ideia de que “ninguém
tem nada a ver com o modo como vivo a minha vida”, desde que não cometa crimes.
Essas duas forças são o estado
moderno e a sociedade urbana dos nossos dias, num processo que se
desenvolve dos mais jovens para os mais velhos. O estado actual, e estou a
falar do estado democrático e não totalitário, está cada vez mais a arrogar-se
o direito de espiar a vida de todos os cidadãos, a começar por essa parte vital
que são as suas comunicações, mas também todos os aspectos da sua vida
quotidiana. Há duzentos anos, um inglês não tinha qualquer documento de
identificação, podia deslocar-se para onde entendesse, mesmo para países em
guerra com o seu, podia fazer do seu dinheiro o que entendesse, sair com ele,
entrar com ele, colocá-lo num banco ou num colchão, podia contratar, comprar e
vender apenas limitado pelas regras comerciais existentes, podia praticamente
fazer tudo que a lei não impedia. Essa forte pulsão anglo-saxónica para
considerar que o estado não tem o direito de saber de mais sobre a vida de quem
quer que seja e ou controlar os seus cidadãos, ainda não desapareceu, mas está
muito erodida.
As escutas sistemáticas
feitas por quase todos os grandes países democráticos, com relevo para os EUA,
o Reino Unido, de todas as comunicações, insisto de todas as comunicações,
muito para além da lei, representam uma ameaça à privacidade sem paralelo no
passado. O pretexto é o terrorismo, mas é mau pretexto, porque
a maioria dos crimes de terrorismo recentes são particularmente desleixados em
matéria clandestina, usam métodos muito pouco sofisticados, e, se não fossem
erros clamorosos dos serviços de informação e das polícias e a substituição de
técnicas de intelligence, como a chamada humint pela aparente facilidade da
espionagem electrónica generalizada, teriam sido detectados.
No caso português, o
estado arroga-se, principalmente no fisco, a utilização de processos
absolutamente invasivos da privacidade, sem ninguém mexer uma palha, enquanto,
como todos sabemos, não vê os offshores que lhe passam à frente. Quem tiver acesso a um
portal das finanças e consulte as facturas lá registadas, pode saber tudo sobre
a vida de qualquer cidadão, muito para além da luta contra a evasão fiscal. Por
que razão mesmo medidas timoratas como as que foram propostas de passar factura
sem identificar os produtos, mas apenas a sua categoria para efeitos fiscais
(em vez do livro A ou B, a indicação de Produto categoria A), não foram aceites?
O que há hoje no Portugal democrático mais próximo de um estado totalitário é o
comportamento da Autoridade Tributária, mas, como a cultura de privacidade
nunca foi muito forte entre nós, tudo se consente ao estado em nome de uma
suposta eficácia e necessidade.
Se somarmos a isso, todos
os devices electrónicos que aceitamos usar quando clicamos na “aceitação das
condições” e que implicam a criação de perfis comercializáveis, indicações de
localização, por aí adiante, a que se somam as câmaras de vigilância em locais
públicos, os contadores electrónicos de consumo que permitem a cada momento
saber se está alguém em casa, ou não, a lista é infindável e muito preocupante.
Já estivemos mais longe de usar chips no corpo como os cães.
Somemos agora a esta lista,
mudanças de mentalidade e de comportamento social, bem patentes nos mais
jovens, que não atribuem valor à protecção da sua privacidade e assumem
atitudes de exposição de si próprios nas “redes sociais” de que, muitas vezes, mais
tarde se vem a arrepender amargamente. Esses comportamentos são incentivados
pelas empresas de telecomunicações que somam nos seus aparelhos múltiplos
mecanismos, quase sempre desnecessários, para controlar a vida alheia com fins
comerciais e outros.
Os jovens são o primeiro
mercado e a força impulsionadora. Eles utilizam o telemóvel
como instrumento de controlo (como os adultos já fazem sistematicamente) e não
de comunicação. “Onde estás?” é a pergunta canónica, que pode agora ser feita
24 horas por dia. Eles “vivem” todo o dia em linha, com mensagens, SMS,
telefonemas, entradas no Facebook, colocação de fotografias, numa
presentificação da sua vida que vai muito mais longe do que o efeito de
“aldeia”. Eles usam os relógios “inteligentes” como se fossem detectores de
mentira, através do ritmo cardíaco. Todos passam agora a ser sempre eternamente
presentes, e não é difícil saber, como nas aldeias, a vida de cada um.
As alterações de
sociabilidade que já existem nas “redes sociais” e no uso de telemóveis,
relógios e aplicações “inteligentes”, a que se virá somar a “internet das
coisas”, com os seus carros que comunicam trajectos, frigoríficos que
encomendam comida, e roupa que consulta o médico se quem a usa tiver febre,
anunciam um “mundo novo” muito pouco amável para o valor da privacidade.
Com a introdução de devices que actuam sobre o nosso corpo, sobre o
sistema nervoso, então aí há um problema sério com enormes repercussões
sociais.
Todos estes aparelhos são
excelentes quando usados por quem percebe certas fronteiras éticas e de
civilização. Mas eles são como as drogas e a manipulação química do nosso
corpo. Talvez nos façam mais felizes a curto prazo, mas fazem-nos menos
humanos. Bem sei que isso hoje não conta para nada, mas, como nas distopias, quando
as máquinas nos atacarem, ver-se-á se fomos ou não longe demais.
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