Também nas línguas o fenómeno do desleixo na
pronúncia das palavras foi causa de evolução linguística e muitos fenómenos
fonéticos - assimilações, dissimilações, aféreses, síncopes, apócopes, próteses,
palatalizações, nasalizações, assimilações... estão na base da formação das línguas românicas.
Para justificar a evolução linguística em função desse fenómeno de desleixo
que tem a ver com as características dos povos invasores dos romanos e dos
povos de origem nos respectivos territórios, eu costumava explicar, quando
leccionei, ao chegar, por exemplo, ao fenómeno da palatalização do cl-, pl-
e fl-, (lt. clamare, planu-, flamma), as variantes novilatinas:
palatalização em português ch e em espanhol ll, vocalização do l
em i no italiano, manutenção erudita dos grupos consonânticos no francês. A
dada altura, com o Renascimento, as línguas enriqueceram-se, com a leitura dos
clássicos, retomando as formas eruditas de muitas palavras e estruturando a
língua através das regras gramaticais. Como curiosidade, data de 1536 a
primeira gramática portuguesa, de Fernão de Oliveira, sendo a seguinte,
de João de Barros, de 1540.
E assim, as línguas se foram estabilizando, e
julgo que mantendo a escrita e a pronúncia, apesar da evolução natural, causada
por diversos factores e influências. Julgo que, nessas outras línguas a
deformação não se fez tanto sentir como na nossa, e recordo um programa de Bernard
Pivot a que costumava assistir na TV5, de campeonato de ortografia
de França e até do mundo, com ditado de palavras contextualizadas no discurso,
por vezes bem difíceis, e em que havia sempre excelentes resultados, que me faziam pensar
quanto seria eficaz um programe dessas por cá, tão estimulante, e comprovativo
de espírito pátrio.
Mas não. Por cá fazem-se acordos
achincalhantes da língua, ninguém está interessado em preservá-la, o próprio
primeiro ministro, que também pronuncia acórdos e competividade, não pretende
destruir o AO 90, já o disse, como pormenor insignificante na sua obra
de construção pátria. Como bem diz Bagão Félix, havemos de continuar com os
abortos dos “acórdos” na boca de ministros e acompanhantes, ou
com as “competividades” também muito ministeriais. Habituados que
estão os governantes a comer dos orçamentos, dispondo deles a seu bel-prazer, porque
não hão-de comer eles as sílabas nas haplologias, na pressa das justificações
dos seus actos?
Divertamo-nos com o humor de Bagão Félix e
esqueçamos, uma vez mais, os versos de António Ferreira a Pedro de Andrade
Caminha, que enveredava pelo espanhol, já nessa altura, como outros fizeram:
(…) Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
A Portuguesa língua, e já onde for.
Senhora vá de si, soberba e altiva.
Se téqui esteve baixa e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor. (…)
A Portuguesa língua, e já onde for.
Senhora vá de si, soberba e altiva.
Se téqui esteve baixa e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor. (…)
Acentos sem assento
Público, 9 de setembro de 2016
Neste apontamento transcrito do jornal "Público"*,
o economista e professor universitário português António Bagão Félix critica o uso de certas
formas de pronunciar e escrever, que se instalam à revelia da norma-padrão.
A
relação dos portugueses com os acentos não é pacífica, sejam eles
agudos, graves ou circunflexos. E, já agora, também não é boa com
alguns assentos, mais os lavrados do que os sentados. Já dizia Machado de Assis que «escrever é uma
questão de colocar acentos».
Há
dias, a selecção portuguesa jogou
com a equipa do rochedo britânico de Gibraltar, certamente
para preparar os difíceis jogos de apuramento para o Mundial 2018 em que enfrentará as Ilhas Feroé e Andorra. Pois nesses
dias, antes e durante a gloriosa vitória lusa,
não houve vivalma nas televisões que tivesse pronunciado bem a palavra Gibraltar. Este nome
não tem origem anglófona, antes deriva do árabe (corruptela de Jabal-al-Tariq,
que significa monte de Tariq). Em vez de acentuarem a última sílaba,
todos a transformaram em palavra grave pronunciando-a como “Gibráltar”.
Felizmente que Trafalgar, outra palavra que é de origem árabe e não
inglesa, já só faz parte da história, senão lá teríamos que gramar nos
noticiários “Trafálgar” em vez de “Trafalgár”.
Estes
são erros que, pela insistência, se tornaram “normais”. Já Horácio dizia nas suas Epístolas que “uma
vez lançada, a palavra voa irrevogável.” E de tal sorte que, quando certas
palavras são bem pronunciadas, é como se fossem mal ditas (e quase malditas…).
Outro exemplo bem consolidado é Flórida em vez de Florida. Tal qual –
saindo agora da geografia – quando em vez de se dizer acordos com
o o fechado (ô) , se prefere erradamente pronunciar com esta vogal
aberta (acórdos). Será que a moda vai chegar aos “abórtos”?
Já
no domínio da saúde há, entre várias, três palavras que são, amiúde, mal
pronunciadas: hepatite, bactéria e vacina. Se quanto a
esta última, o costume de abrir o a da antepenúltima sílaba que
é átona (vácina) é mais regional do que nacional, quanto às outras duas,
as televisões e a maioria dos profissionais de saúde preferem o esplendor da
“acento tónico” deslocalizado, “hepátite”. Caso ainda mais
estranho, é ouvir-se “bàctéria”, ou seja como se tivesse dois acentos,
quem sabe se para melhor eficácia antibiótica…
O
velhinho acento circunflexo vem
ficando reduzido a uma insignificância e, em alguns casos (dos quais o novo
AO está absolvido), simplesmente despedido como nas palavras paroxítonas terminadas
em duplo o. No futebol, por exemplo, teria que escrever: abotoo a
bota, enjoo com os truques de certos jogadores, roo as
unhas em alguns jogos, moo o juízo depois de uma
derrota, abençoo a sorte que, por vezes, é preciso ter. Mas
não voo como a águia, nem leiloo o meu cartão
de sócio.
Enfim,
uma plétora de erros ou alterações a despropósito, perdão pletora.
Fonte
Texto publicado na rubrica "Tudo menos Economia" do jornal Público, em 6/09/2016,
escrito conforme a norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.
Sobre o autor
Economista,
professor universitário português, várias vezes chamado a exercer funções
governativas. Comentador e colunista em diversos órgãos de comunicação
portugueses, é autor, entre outros livros, de Do lado de cá
ao deus-dará (2002), e O cacto e a
rosa (2008), Prefácio
sobre a "origem do conto do Vigário" de Fernando Pessoa (2011)
e Trinta
árvores em discurso directo (2013). Sobre o autor, mais aqui.
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