Eu acho que tudo o que se
aponta no nosso primeiro ministro não é mais do que o espelho de um povo onde
há quem ateie fogos por puro gozo contemplativo, sendo tal feito referenciado
na nossa imprensa televisiva, serenamente, objectivamente, sem qualquer
inflexão de voz que aponte um “aqui d’el-rei que se trata de crime de
lesa-pátria”. Não, num mundo de cada vez maior banalização dos desvios de vária
ordem - mas também de feitos cada vez mais extraordinários, de que estes jogos
paralímpicos cuja inauguração em solo brasileiro estou a seguir pela televisão,
são exemplo, terminando em girândolas várias de luzes e a canção “É preciso
saber viver”, adaptável a todos estes atletas que vencem olimpicamente a precariedade
dos seus condicionalismos – tal canção também se adapta como uma luva ao nosso
primeiro ministro, cujo retrato vem excelentemente esboçado por João Miguel
Tavares no texto que segue. Esse, sim, um verdadeiro ginasta nos jogos de contorções
e driblagens mais que olímpicos na sua governação de doçura sorridente e desafiante,
com o merecido divertimento final, arrumados que deixa os seus conterrâneos,
como sempre, esperando pacientemente o seu Godot.
Matou
o país e foi ao cinema
Público, 06/09/2016
António
Costa desenvolveu uma admirável técnica – podemos chamar-lhe “o sorriso
confiante” – em que nem sequer precisa de mentir descaradamente.
Eu já estou fartinho de ver as luzes das câmaras reflectidas
nos dentes sorridentes de António Costa, mas o povo – e inúmeros comentadores –
ainda não. Nos últimos dez meses descobri, com algum espanto, a existência de
uma correlação insuspeita entre a área de esmalte exibida por um político e a
sua popularidade, que parece ser independente da qualidade das palavras que
usa, das notícias que dá e das acções que pratica. António Costa desenvolveu
uma admirável técnica – podemos chamar-lhe “o sorriso confiante” – em que nem
sequer precisa de mentir descaradamente. Ele apenas desvaloriza o que é mau,
sobrevaloriza o que é bom, e utiliza a técnica do sorriso confiante para
ignorar o péssimo futuro que nos aguarda. Espantosamente, funciona.
Ou
melhor: funciona até o péssimo futuro se transformar num péssimo presente,
claro. Mas num país com uma conhecida incapacidade para planear e antever,
ter como primeiro-ministro um homem cuja grande vocação é a arte do desenrasca
e uma gestão altamente habilidosa do presente tem esta consequência: o país vai
andar por aí cantando e rindo até uma nova e profunda crise lhe cair em cima.
Isto parece-me bastante óbvio, mas já dizia o bom Orwell que é preciso uma luta
constante para ver aquilo que está à frente do nosso nariz. A malta prefere
não ver. Prefere ser optimista. Prefere o sorriso confiante. Basta ler
os jornais para nos depararmos com as três regras da política portuguesa para
totós: falar do passado é sempre mau (ainda que não haja outra forma de
aprender com os erros); propostas para o futuro é sempre bom (ainda que sejam
pura aldrabice); gerar esperança é essencial (ainda que não haja qualquer razão
para estar esperançado).
Para
os portugueses mais à esquerda, e respectivos comentadores, não interesse tanto o
que se diz mas como se diz. É a paulabobonização da
política nacional. António Costa pode estar a desgraçar-nos, mas pelo menos
desgraça-nos com alegria e etiqueta. Passos Coelho até pode estar certo
nas suas previsões catastrofistas, mas para quê ser tão negativo? O país não
estava já tão mal com ele? Agora continua igualmente mau, mas com melhor
disposição. Para quê tanta rezinga? Só porque o crescimento não descola,
o investimento afunda e a dívida dispara? Ora, ora, não nos vamos aborrecer com
isso, que o défice está controlado. Só porque a UTAO alerta para as “pressões
orçamentais” do segundo semestre? Ora, ora, olhai os lírios do campo, que não
trabalham nem fiam, e não andeis ansiosos, a dizer o que havemos de comer ou
que havemos de beber, porque António Costa sabe que precisais de tudo isso.
Não
temais, pequeno rebanho: basta ter fé no socialismo e valorizar esse anúncio
permanente a um dentífrico em que está transformado o nosso primeiro-ministro. Não
há stress, não há nervos, não há preocupações – o nosso homem em São Bento é supercool. Os
americanos têm “No drama Obama”, nós temos “Não fica sem resposta
Costa”. António Costa desvaloriza tudo, ultrapassa tudo e explica tudo,
ainda que as suas explicações tratem os portugueses como se tivessem a idade
mental da minha filha Rita: “A recomendação da UTAO é a que qualquer médico
dará a todos nós: ‘Não abuse dos doces, senão isso fará mal à sua saúde’.” Ora
aí está a resposta macroeconómica por que o país ansiava. Bravo. E a verdade é
esta: a minha filha Rita, que tem quatro anos, não percebe Passos Coelho, mas
percebe António Costa. Desconfio que seja essa a razão da sua popularidade.
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