Um humorístico e bem pertinente artigo de António
Bagão Félix, retirado do blogues. publico pt/Tudo menos Economia),
adaptando ao OE uma figura de estilo que tão grata foi à escrita
tantas vezes impressionista de Cesário Verde e outros escritores, em versos inesquecíveis que serviam para documentar a
figura de estilo com que brinca o articulista, no caos em que se vive hoje de
receios e intranquilidade, a merecerem a amálgama de sensações que com mestria
exemplificou.
E reforço a sua tese, relembrando autores da “melodia”
“gostosa” e “suave” - de tão “brilhante” e “perfumada” – em que a criatividade dos
autores se não dirigia a coisas tão prosaicas, como um OE, mas a figuras do
descritivo colorido, no caso de Cesário, do primeiro exemplo, colocado antes, ou
do descritivo terno, no caso de Garrett, colocado no fim, para melhor
enquadramento do gracioso e didáctico artigo de António Bagão Félix:
De Cesário Verde, in “Num Bairro Moderno:
… E fere a vista,
com brancuras quentes, ….
Bóiam aromas, fumos de cozinha;
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
Com o cabaz às costas, e vergando,
Sobem padeiros, claros de farinha;
E às portas, uma ou outra campainha
Toca, frenética, de vez em quando.
OE 2017 entre sinestesias
António Bagão Félix
Público, 3/9/16,
(
Consistindo a sinestesia na associação neurológica de percepções
relativas a diferentes
sentidos (do grego syn, “união” ou “junção” e esthesia, “sensação”, antónimo de anestesia, ausência de sensação), chegou à literatura
como um instrumento de estilo metafórico que combina sensações, sentimentos
e estados anímicos, por via da fusão de impressões sensoriais (visuais,
auditivas, olfactivas, gustativas e tácteis).
Podemos
senti-la em obras que nos ajudam a imaginar o ambiente e o enredo. A obra-prima
de Tolstoi, “Anna Karénina” é um empolgante exercício sinestésico, entre a cor
da seara ou da estepe, o som dos cavalos, a plasticidade das personagens, o
cheiro do campo e da cidade. Ou no Leopardo de Lampedusa ou de Visconti, as
cores, as sombras, os óleos, os sons que nos transmitem a Sicília poeirenta do
século XIX, os silêncios abraçando a aridez do ocre da terra.
Sem
por vezes nos apercebermos, utilizamos frases intuitivamente sinestésicas: «um
silêncio escuro, um olhar silencioso, um sorriso amargo, uma bofetada de luva
branca, uma luz macia, uma cor fria ou quente, um grito áspero, uma imagem de
fazer crescer água na boca, um doce afago e olhar de mãe, um som prateado, um
frio cumprimento, uma melodia de cores, uma chuva miudinha e morna, um perfume
doce, uma voz penetrante, um vermelho gritante.»
Aproxima-se
o Orçamento do Estado (OE) para 2017. Numa síntese sensorial de tacto, visão,
audição, paladar e olfacto, não é difícil antever duas conclusões antagónicas. Para
uns, será um OE suave, claro, harmonioso, quente e balsâmico. Para
outros, será um OE duro, obscuro, surdo, frio e fermentado.
A
discussão – essa – será áspera, lampejante, dissonante, salgada e ácida.
E para quem pague impostos, não haja ilusões: continuarão a ser pesados,
negros, moucos, amargos e pestilentos.
Os Cinco Sentidos
São belas - bem o sei, essas estrelas,
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:
Em toda a natureza
Não vejo outra beleza
Senão a ti - a ti!
Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti - a ti!
Respira - n'aura que entre as flores gira,
Celeste - incenso de perfume agreste,
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti - de ti!
Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão... mas é de beijos,
É só de ti - de ti!
Macia - deve a relva luzidia
Do leito - ser por certo em que me deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar noutras delícias
Senão em ti! - em ti!
A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos num confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.
Almeida Garrett, 'Folhas Caídas'
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:
Em toda a natureza
Não vejo outra beleza
Senão a ti - a ti!
Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti - a ti!
Respira - n'aura que entre as flores gira,
Celeste - incenso de perfume agreste,
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti - de ti!
Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão... mas é de beijos,
É só de ti - de ti!
Macia - deve a relva luzidia
Do leito - ser por certo em que me deito.
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar noutras delícias
Senão em ti! - em ti!
A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos num confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.
Almeida Garrett, 'Folhas Caídas'
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